31.12.11

guerra e paz - primeira parte


O que dizer de Liev Tolstói? Talvez o que mais impressione seja a sua capacidade de criar, à maneira de Balzac, um mundo próprio e auto-suficiente, vasto como a vida, todo um planeta extensamente povoado de personagens marcantes e seus, de tramas que vão e vêm como marés em toda a sua complexidade e inexorabilidade, de reflexões inteligentes sobre tudo e sobre todos. Em suma, uma monstruosa capacidade de escrever, de combinar a imaginação vertiginosa com a fluência absoluta da expressão, o divagar, o descrever, o narrar. Pode-se criticar uma parte ou outra de suas obras por ser previsível, ou mesmo dispensável. O que não se pode é desprezar o poder demiúrgico que poucos escritores como Tolstói tiveram de criar um universo.
Da leitura da primeira parte de “Guerra e Paz”, o que fica é justamente o assombro diante do inverossímil, inverossímil não na obra, que segue sem dor os cânones realistas e até históricos, já que se trata de um romance histórico, mas na fluência de Tolstói. Encerra-se a leitura do primeiro volume de mil páginas (eu tinha lido a versão francesa da Folio Classique, já que Tolstói escreveu várias partes em francês e não havia ainda a tradução do Rubens Figueiredo) com a impressão de que tudo ainda está no começo, de que o escritor desenterrou um mundo tão amplo e insondável, que aquilo é apenas uma amostra, um pedaço pequeno e visível de uma montanha.
Diversas histórias se cruzam – o desabrochar da bela Natacha, as dores do amor e da guerra para André, a relação entre o Príncipe Bolkonsky e a filha Maria, as danças e os bailes dos Rostov, o idealismo ingênuo de Nicolas, as dúvidas e a solidão de Pierre –, tudo contra o pano de fundo da guerra contra Napoleão, com os detalhes de cada batalha, da primeira salva alegre e ingênua do canhão, de cada movimento, cada paisagem vista na distância, na fronteira inimiga, cada ato de heroísmo ou tolice, cada dor da derrota. O romance não tem centro, é um vasto painel de uma época, de uma elite russa ao mesmo tempo afrancesada e em guerra contra a França, uma coleção intrincada de personagens marcantes e relações complexas que se constroem e desconstroem com o passar do tempo, com o deslocar de vidas e poderes entre Moscou, São Petersburgo, Austerlitz....
Se algo é referência maior talvez sejam as dúvidas do grande, gordo e benigno Pierre Bezoukhov, possível alter ego de Tolstói, com sua fortuna herdada, seu desprezo pela mulher ao mesmo tempo nobre e arrivista, seu fascínio súbito e naïve pela maçonaria, seu olhar perdido, sua inconveniente atração por Natacha:

“Pierre appartenait au nombre de ces hommes qui ne sont forts que quand ils se sentent absolument purs. Et depuis le jour où le désir s’était emparé de lui tandis qu’il se penchait sur la tabatière chez Anna Pavlovna, un sentiment inavoué de culpabilité paralysait sa volonté.”

É o personagem mais interessante de uma rede de personagens fascinantes, que falam e agem vivíssimos, com vida própria, uma das maiores virtudes de Tolstói. Basta um parágrafo para encher um personagem inteiro, um toque sutil que já diz muito, como essa breve descrição de Anna Pavlovna, anfitriã da festa que abre o livro:

“L’enthousiasme était devenu sa fonction sociale et il lui arrivait de se montrer enthousiaste alors même qu’elle n’en avait aucune envie, uniquement pour ne pas décevoir l’attente de ceux qui la connaissaient. Le sourire contenu qui jouait constamment sur le visage d’Anna Pavolovna, bien qu’il ne se harmonisât guère avec ses traits flétris, exprimait, comme chez les enfants gâtés, qu’elle avait conscience de ce charmant défaut dont elle ne voulait, ne pouvait et ne trouvait pas nécessaire de se corriger.”

Ou a descrição elogiosa do bom diplomata Bilibine (pg. 258), ou sutilmente irônica do militar Berg:

“Berg s’exprimait toujours avec précision, d’un ton posé et poli, et parlait uniquement de lui-même; quand la conversation roulait sur un sujet qui ne le concernait pas directement, il gardait calmement le silence, et il pouvait ainsi se taire pendant des heures sans en éprouver la moindre gêne, sans en provoquer chez les autres; mais aussitôt que l’entretien le touchait personnellement, il parlait d’abondance et avec un plaisir évident.”

Ou o hábito do sucesso no Príncipe Basile, tão astuto nas suas ações e tão seguro em seus ardis:

“C’était tout simplement un homme du monde qui avait réussi dans le monde et s’était fait de cette réussite une habitude.”

Tolstói é particularmente brilhante na descrição dos dramas interiores dos personagens, dos seus momentos de descoberta, dúvida ou perplexidade. Tome-se por exemplo, a esupefação de André com o seu próprio desejo de glória, em que se imagina capaz de tudo, de todos os sacrifícios, até da vida ou da família, em meio à desilusão da derrota em Austerlitz (p.435). Ou o misto de dúvida e de culpa que se apodera de Pierre no momento crucial em que é induzido pelo Príncipe Basile a pedir a mão de Helène, numa das cenas mais geniais do livro (p.353-354). Ao contrário de seu contemporâneo Eça de Queiroz, Tolstói constrói de modo magistral as cenas de amor e de anúncio de casamento, e são raros os trechos em que escorrega um pouco, e recorre a um clichê ou outro, a uma linguagem mais fácil do que o costume, como na hora de descrever a paixão que sente Natacha no momento em que avista André:

“La tête levée, les joues roses, essayant visiblement de contenir sa respiration haletante, elle le regardait. Et la vive lumière d’un feu intérieur auparavant éteint brillait de nouveau en elle. Elle était complètement transfigurée. De laide elle était devenu telle qu’elle avait été au bal.”

Logo em seguída, Tolstói corrige-se ao descrever o sentimento de André no momento em que decide casar-se:

“Le Prince André tenait ses mains dans les siennes, la regardait droit dans les yeux et ne retrouvait plus en lui le même amour. Quelque chose avait soudain basculé dans son âme: ce n’était plus l’enchantement poétique et mystérieux du désir, mais un sentiment de pitié pour sa faiblesse de femme et d’enfant, de crainte devant sa confiance et son abandon, et la conscience douloureuse et pourtant joyeuse du devoir qui le liait à elle à jamais. Le sentiment actuel, bien que moins lumineux et poétique, était plus grave et plus puissant.”

Um terceira cena genial de noivado reúne o cinsimo do pretendente e da pretendida, uma vez que Boris procura esconder certo sentimento de repugnância, ao passo que Julie parece exigir o que lhe cabe:

“-- Vous connaissez mes sentiments pour vous!...
Il n’était pas nécessaire d’en dire davantage; le visage de Julie rayonnait de triomphe et de vanité; mais elle obligea à lui dire tout ce qu’on dit en pareil cas, à lui dire qu’il l’aimait et n’avait jamais aimé aucune femme comme il l’aimait. Elle savait que pour les propriétés de Penza et les forêts de Novgorod, elle avait le droit d’exiger cela, et elle obtint ce qu’elle exigeait.”

Há outras cenas e passagens memoráveis no livro, como a caça das lebres e dos lobos, o papel de homens, cavalos e cachorros, a preparação, a coreografia no momento do bote, toda uma história à parte que já teria vida e luz própria (p.805-830).
Dizer que o livro só têm virtudes seria um exagero, já que há pontos da trama que pecam por certa inverossimilhança, por viradas ou reviravoltas que parecem atender mais ao oportunismo e à conveniencia do autor do que ao curso possível e esperado dos eventos. Como explicar que a intensa paixão de Natacha por André se transforme subitamente no enamoramento por Anatole? Nem a resistência da família de André nem a distância entre os dois parece dar conta do súbito desinteresse pelo amado, muito menos de uma paixonite por um Anatole tolo e vaidoso, tão diferente de André.
O que permanece do livro é, no entanto, a inteligência com que Tolstói constrói seus personagens centrais e descreve os dilemas que atravessam. Há um elemento de imponderabilidade na construção de algumas figuras (como é o caso de Pierre) que nos faz lembrar os personagens de outro genial conterrâneo seu, Dostoiévski. O que dizer do comportamento desse atormentado Pierre, que, no meio do maremoto emocional que envolve André e Natacha, dois de seus amigos mais próximos, consegue desenterrar o estranho sentimento que nutria há tempos, mais inconscientemente do que conscientemente, por Natacha e fazer-lhe uma críptica declaração de amor, inesperada até para ele mesmo? 

23.12.11

assassinato

Como o título já sugere, “Assassinato” (“Murder”) é um dos contos mais explicitamente violentos de Anton Tchekhov. Conta a relação entre Matvey e Yakov Terekhov, primo pobre e primo rico que convivem numa estalagem herdadada por Yakov, dividida ainda com a irmã e a filha de Yakov, Aglaya e Dashutka. 
O confronto entre os primos combina ressentimento financeiro e rivalidade religiosa, pois ambos têm pretensões a pastores e arrogam-se pobres poderes exegetas, que invocam contra o outro, especialmente Matvey, que insiste em perturbar as missas solitárias do primo com sentenças sobre atos e ritos heréticos de Yakov. 
Do ambiente sórdido que mistura culpas passadas, charlatanismo inconsciente, frio siberiano e ressentimentos, nasce o ódio que levará ao desfecho trágico, uma das cenas mais graficamente violentas que já encontrei entre grandes escritores como Tchekhov. O estilo nem sempre seco do russo ganha no clímax do conto uma precisão e intensidade que só realçam o desespero suave de Yakov ao final.

12.12.11

um punhado de pó


Com humor tipicamente britânico, Kingsley Amis teria dito que Evelyn Waugh é “a marvellous writer, but one of a sort peculiarly likely to write a bad book at any moment” (“um escritor maravilhoso, mas de um tipo que poderia escrever um mau livro a qualquer momento”). “A Handful of Dust” (“Um punhado de pó”), considerado um dos melhores romances de Waugh, não parece encaixar-se nem na categoria do maravilhoso nem na coleção de maus livros incidentais.
O romance combina um tanto artificialmente duas histórias de um mesmo personagem: de um lado, o fim do casamento do protagonista, em Londres, em razão do caso “extra-marital” (se cabe o eufemismo) de sua mulher; de outro, sua expiação e exílio no exótico, numa expedição à Amazônia. A sensação é de quebra: a história londrina é bruscamente interrompida para se dar início a um conto de viagem. O enxerto não chega a surpreender quando se lê a entrevista que Waugh concedeu à Paris Review: o escritor afirma que o ponto de partida do romance foi um conto seu que corresponderia à parte final do livro. Sua curiosidade ante o passado do personagem do conto o teria motivado a “completar” sua história de vida.
A história, aliás, é bastante simples. Tony e Brenda Last vivem a monotonia de seu casamento nos arredores de Londres, na casa gótica de Hetton em que Tony viveu sua infância e, já adulto, encontrou sua razão de viver. Brenda se apaixona por Beaver, londrino pobre, pretensioso e arrivista, e passa a viver em Londres, com a desculpa dos estudos de economia na faculdade. Com a morte do filho único dos Last, Brenda se separa de Tony, e este, desiludido, segue em expedição à Amazônia, o começo do conto enxertado. Lá torna-se o leitor cativo de um homem analfabeto, que o obriga a ler para ele textos de Dickens em voz alta e priva-o dos meios de voltar à civilização. Com a suposta morte de Tony, Hetton é herdada por seus primos, enquanto Brenda, sem dote a oferecer, é abandonada por Beaver e acaba por casar-se com um terceiro homem.
O que desagrada na construção da trama é a imotivação dos acontecimentos. O leitor não se convence de que deveriam ocorrer ou de que, uma vez concretizados, soam verossímeis. O caso entre Brenda e Beaver nasce do nada: não parece haver atração ou empatia entre os dois; é um caso descarnado, deserotizado. Waugh prefere descrever a casa de Hetton a criar uma atmosfera de envolvimento amoroso que pudesse desencadear o affair. A morte do filho, por sua vez, não provoca o impacto esperado em Tony ou em Brenda: reagem friamente, britanicamente demais. Tony tampouco se altera de modo passional com a descoberta da traição: até admite simular seu próprio adultério para facilitar o divórcio. Reagirá apenas quando descobrir que Brenda quer uma elevada pensão para “comprar” o casamento com Beaver, o que implicará a perda da casa de Hetton. E, ao cabo, o homem da pacata Hetton, daquele mundo provinciano, resolve ir para onde, tendo a seu dispor o mundo inteiro? Para a Amazônia, em busca de uma cidade indígena misteriosa. Nenhuma dessas situações convence.
Por trás das ações inverossímeis, circulam personagens desinteressantes, que não despertam simpatia ou empatia no leitor. No mais das vezes, causam aversão: o cinismo de Brenda, a ingenuidade de Tony. Não há, aliás, personagem razoável. A hipocrisia e o egoísmo reinarão em Londres ou na selva.
Se o livro envolve o leitor em algumas partes, o faz pela indignação, pela expectativa de que o autor corrija a história, dê a ela um pouco de credibilidade, como quando Tony finalmente se recusa a conceder o divórcio e uma alta pensão a Brenda. O próprio autor reconhece, na mesma entrevista da Paris Review, não dar importância à psicologia dos personagens: ele se diz interessado em acontecimentos, circunstâncias, diálogos. Ocorre que a psicologia se revela nos acontecimentos, e é a coerência dos eventos que dará forma à cabeça dos personagens.
“A Handful of Dust” é uma leitura fácil, com seus diálogos freqüentes e fluentes. Waugh encadeia com leveza pequenas cenas e diálogos. Mais longo é o “conto final”, que também tem seu charme, mas sobressai como um corpo estranho no romance. O conto foi uma forma divertida que Waugh encontrou para ajustar contas com o legado de Dickens: por ser brilhante e grandioso, Dickens tormou-se a prisão do inglês, leitor-prisioneiro, que dele não consegue libertar-se.
Infelizmente, o romance de Waugh não está à altura do velho Dickens nem do belo verso de T.S.Eliot que inspirou seu titulo.

28.11.11

fantasmas


Com a esperança de rever meu juízo crítico sobre Paul Auster, autor não pouco celebrado, li “Ghosts” (1986), o segundo romance/novela da sua Trilogia de Nova York. Ao fechar o livro, meu juízo perliminar sobre o autor tornara-se, infelizmente, uma convição: “Ghosts” consegue ser inferior a “City of Glass”, o primeiro livro da trilogia.
Em “Ghosts”, Auster reincide no jogo puramente abstrato da metaficção, sem maior capacidade de envolver o leitor para além do elemento (precariamente) lúdico de um enigma sobre existência/identidade/trama. A exemplo do que ocorre em “City of Glass”, um detetive/observador perde-se em sua própria obsessão pelo objeto observado (ou pela observação em si) e parece sair das escalas normais de tempo, espaço e comportamento sem convencer-nos da necessidade ou da graça de fazê-lo. Dessa vez, Blue é contratado por White para observar Black, e se deixa levar pela observação do nada, da rotina imutável e entediante de Black. Ao final saberemos que foi Black quem o contratou para que pudesse ser observado, para que pudesse constatar que ele estava vivo.
Como já disse o crítico James Wood, em belo apanhado sobre a obra de Auster, para que o jogo metaliterário praticado pelo autor funcione, para que haja graça e surpresa com o efeito de suspensão e de reflexão sobre a própria narrativa que ele propõe, o leitor precisa estar convencido da história que tem diante de si. E é isto que Auster não nos proporciona. Não nos envolve ou impressiona com a história que conta, a ponto de ser dispensável e anticlimático o truque narativo que, lá pelas tantas, ele nos aplica em seus livros.
Auster peca também por um estilo ruim – o texto descuidado, com clichês (“writing is a solitary business”/”escrever é um negócio solitário”), com imagens e metáforas fáceis (“a knowledge as sudden and irrevocable as the slamming of a door”/“um conhecimento tão súbito e irrevogável quanto o bater de uma porta”...) –, pela inserção de um eruditismo gratuito, didático – Thoreau, Whitman, Hawthorne – e pelo esgarçamento ocasional da verossimilhança, infelizmente sem arrebentá-la de vez, o que seria mais intrigante como proposta. Personagens aparecem como abstrações ou alegorias, a começar por seus nomes. Da mesma maneira que o jogo da narrativa dentro da narrativa e da troca de identidades não têm, em Auster, a mesma sutileza e precisão que em Borges, os personagens alegóricos de Auster não têm a pungência e a força dos personagens alegóricos de um Kafka ou de um Pynchon. Tramas (mal) subvertidas e personagens (mal) alegorizados não costumam combinar-se bem.
Auster vale pela legibilidade, pelo charme de alguns enigmas, pelo esforço do dénouement gracioso, mas não muito mais do que disso.

20.11.11

carta a uma senhorita em Paris


“Carta a una señorita en París” é mais um belo conto de Cortázar que transita entre o fantástico e o surreal. Como sugere o título, é escrito em forma de carta, endereçada a uma mulher que vive na capital francesa, amiga do narrador (ou narradora possivelmente, embora não seja uma questão relevante no conto), e cujo apartamento na calle Suipacha, em Buenos Aires, o missivista passou a ocupar por sugestão da proprietária.
O surreal é pressentido desde o começo, com a referência a objetos e nomes inventados: o jogo de violino e viola no quarteto de Rará, uma modulação de Ozenfant... Cortázar não tardará, no entanto, a revelar o que há de incomum no narrador (o fato de que vomita, de tempos em tempos, um filhote branco de coelho), mesmo porque parecerá algo previsível e até costumeiro conforme a narrativa avança e o fantástico se torna macabro:
“Cuando siento que voy a vomitar un conejito, me pongo dos dedos en la boca como una pinza abierta, y espero a sentir en la garganta la pelusa tibia que sube como una efervescencia de sal de frutas.”
A carta dedica-se em sua maior parte a descrever como o narrador convive com a anormalidade, como alimenta, faz crescer e se desfaz dos coelhos e como adaptou sua rotina ao apartamento da amiga. Os coelhos dormem de dia dentro de um armário, e o narrador solta-os e alimenta-os à noite, quando a empregada Sara, que de nada desconfia, está dormindo:
“Son diez, casi todos blancos. Alzan la tibia cabeza hacia las lámparas del salón, los tres soles inmóviles de su día, ellos que aman la luz porque su noche no tiene luna ni estrellas ni faroles.”
O que haverá de verdadeiramente inesperado e fantástico é a quebra da regularidade, a quebra de um rotina aparentemente normal, não fosse a origem dos coelhos. A tragédia será pressentida pelo fato de que o narrador perde o controle dos nascimentos, como se um limiar numérico fosse ultrapassado e deflagrasse o desastre:
“En cuanto a mí, del diez al once hay como un hueco insuperable. Usted ve: diez estaba bien, con un armario, trébol y esperanza, cuántas cosas pueden construirse. No ya con once, porque decir once es seguramente doce.”
A desgraça será dupla, e a destruição do apartamento a menor delas, num estilo que faz lembrar um filme B com animais aparentemente domésticos e domesticáveis insubordinando-se de forma violenta contra seus donos, o que não nos deixa esquecer certo gosto de Cortázar por fundir referências de baixa e alta cultura:
“Rompieron las cortinas, las telas de los sillones, el borde del autorretrato de Augusto Torres, llenaron de pelos la alfombra y tambiém gritaron, estuvieron en círculo bajo la luz de la lámpara, en círculo y como adorándome, y de pronto gritaban, gritaban como yo no creo que griten los conejos.”
A atitude macabra dos coelhos leva ao fim trágico, a morte dos coelhos e do próprio narrador (mais provável do que a de Sara), com seus corpos ensangüentados sobre a rua Suipacha: “Está este balcón sobre Suipacha lleno de alba, los primeros sonidos de la cuidad. No creo que les sea difícil juntar once conejitos salpicados sobre los adoquines, tal vez ni se fijen en ellos, atareados con el otro cuerpo que conviene llevarse pronto, antes de que pasen los primeros colegiales.” A carta bem pode ser, afinal, a carta de um suicida.
A graça do conto está no contraste entre o tom neutro, factual do narrador e o absurdo da situação que vive. Cortázar escreve-o com grande delicadeza. Há belas imagens sobre as menores coisas, desde a natureza dos pequenos coelhos (“y después tan no uno, tan aislado y distante en su llano mundo blanco tamaño carta”) ou à sua noite diurna dentro do armário (“en su cúbica noche sin tristeza duermen once conejitos”) até os objetos do apartamento emprestado (“me va calcinando por dientro e endureciendo como esa estrella de mar que ha puesto usted sobre la bañera y que a cada baño parece llenarle a uno el cuerpo de sal y azotes de sol y grandes rumores de la profundidad”).
Um conto macabro e belo, que faz jus à habilidade de Cortázar de naturalizar o fantástico e o surreal e de mostrá-los muitas vezes com um toque poético deliciosamente inadqueado para o tema que descreve.

14.11.11

a ilíada


O conflito entre Aquiles e Agamenom no começo da Ilíada é fundamentalmente um conflito derivado de uma “luta de classes”, em que Aquiles se insubordina contra a apropriação indevida pelo monarca da “mais valia” do seu trabalho de saquear os povos vencidos em guerra. Como diz Aquiles, “o calor e o fardo da luta recaem sobre mim, mas quando se trata de repartir o espólio, é você quem leva a maior parte”. Essa disputa deriva de uma dissociação entre poder e força, já que Agamenom detém o poder político como rei e Aquiles a força física. Ambas são concessões dos deuses, o poder de Agamenom, legitimado por Zeus, a força de Aquiles, conferida por Tétis.
Bela é a história da força e da fraqueza de Aquiles, de que não se faz menção na Ilíada. Sua mãe, a ninfa marinha Tétis, mergulhou-o no rio Styx, para fazê-lo imortal, mas teve de segurá-lo pelo calcanhar, que não foi banhado pelo rio mágico. O mesmo calcanhar que permitiu a ele não ser tragado pelo rio, revelou-se seu ponto fraco, que o levou à morte pelas mãos de Paris.

xxx

Tétis endossa o pleito de vingança de seu filho, Aquiles, que, de início, quer a derrota dos gregos contra os troianos para provar que ele é indispensável para os gregos. Zeus promete, de forma esquiva, indireta, atender ao pedido de Tétis. Hera, a Rainha do Olimpo, se insubordina contra o marido. Ele a ameaça com suas “mãos inconquistáveis”. Hefestus pede que ela se curve, e é escarnecido pelos outros deuses, que gargalham de seu desengonço, de sua imperícia. Zeus manda sonhos falsos e rumores para enganar o Rei Agamenon, inimigo de Aquiles, para que inicie uma guerra suicida. Todos os deuses tomam partido na guerra, de um lado ou de outro. E chegarão a batalhar entre eles mesmos por causa do conflito entre os homens. Nada mais humano, visceralmente humano, que o Olimpo.

xxx

Apesar do culto dos efebos e do homoerotismo masculino na Grécia antiga, não se pode, a julgar pela Ilíada, relegar a mulher a plano tão inferior quanto se imagina. O que é a guerra de gregos e troianos senão a disputa por uma mulher, Helena, seduzida pelo trojano Páris, que a rouba do grego Menelaus? Haverá outras razões para o conflito, é verdade, mas sua causa imediata é a posse de uma mulher, tanto que a trégua teria sido possível pela simples entrega de Helena, pelo simples acerto de contas entre marido e amante, não fosse a vileza dos deuses sedentos de guerra, como Hera, Afrodite e Atenas.
A própria desavença entre os gregos Aquiles e Agamenom, no começo, ainda que seja uma disputa pelo controle dos espólios de guerra, não deixa de reduzir-se a um choque de orgulhos de guerreiros que não querem perder seus respectivos butins, ou seja, as mulheres que capturaram. É verdade que Aquiles parece demonstrar todo seu amor mais do que fraternal por Patroclus, quando este morre pelas mãos de Hector, mas isto enseja o desfecho da guerra, não o seu deflagrar, que se dá pela disputa de mulheres.
A “Ilíada” é um livro sobre homens, sobre homens em guerra, mas há espaço também, ainda que secundário, para mulheres de temperamento e presença fortes. A principal delas é Hécabe, a mulher de Priam e mãe de Héctor, que sobressai em dois momentos, sempre tentando prevenir, sem sucesso, uma ação de quem ela ama. Não conseguirá dissuadir Héctor de lutar contra Aquiles; não conseguirá dissuador Páris de resgatar o corpo de Héctor em posse de Aquiles. Mas o desespero e a força de sua súplica têm uma dignidade e um apelo próprios. Diante do filho Héctor chega a expor o seio em meio às lágrimas: “Héctor, meu filho, ela gritou, olhe isto e tenha pena de mim. Quantas vezes lhe dei este seio e o acalmei com este leite! Lembre-se daqueles dias, filho querido.”

xxx

A guerra na Ilíada também pode ser vista, superficialmente, como um conflito gerado por lealdades familiares, ou melhor, pela fidelidade aos seus, mesmo quando são ineptos ou idiotas. Priam, rei de Tróia, apóia o filho Páris, que cometeu o erro fatal de seduzir a cunhada do rei inimigo. Agamenon, por sua vez, independentemente do interesse per se em conquistar Tróia, executará a vingança que o irmão, Menelaus, quer, traído que foi pela mulher Helena e pelo sedutor Páris.
A referência permanente aos vínculos familiares, às linhagens, é um traço de toda a Ilíada, em que os guerreiros são sempre identificados e apresentados como representantes de famílias, como descendentes. Basta ver como Enéias se apresenta diante de Aquiles no momento em que se preparam para a batalha entre os dois. Este é um elemento básico do mundo helênico, em que até os destinos -- a moira -- são transmitidos de geração a geração.

xxx

Homero, modesto, ao tentar narrar um momento da guerra de gregos e troianos: “Mas como posso retratar isso tudo? Seria necessário um deus para contar essa história”.
E os deuses da Ilíada não narram o passado; contam o futuro, por símbolos, como a águia que é ferida pela cobra que pretendia dar aos filhotes e solta-a dos céus sobre os soldados troianos como um aviso de que não conseguirão destruir os gregos e seus navios encurralados. 

xxx

Aquiles é o que se chamaria hoje de personagem mais complexo da Ilíada, mais distante portanto da forma estilizada, não-psicológica, que marca a caracterização de muitos mitos e heróis. Alterna orgulho e teimosia, bravura e egoísmo. Seu dilema é entre a vida curta na guerra, mas que seria imortalizada pela História, e uma vida longa, não abreviada, mas sem glórias. O exemplo mais evidente de sua mesquinhez é a ordem que dá a Patroclus, seu amigo mais próximo, de não avançar em direção a Tróia caso o curso da guerra fosse revertido, para que ele, Aquiles, pudesse ter a glória e o privilégio de ganhá-la, e de desfrutá-la com seu companheiro: “Como eu seria feliz se nenhum troiano sobrevivesse, nem um único, nem mesmo um grego, e nós dois sobrevivêssemos o massacre!”

xxx

Os homens da Ilíada não são muito mais do que representações dos desejos e caprichos dos deuses. Por meio de sonhos, encantos, impulsos, ilusões – ou mesmo pela intervenção física direta – os deuses manipulam os desejos e ações dos homens como num teatro de marionetes. Há muitos exemplos, como o de Patroclus, fiel amigo de Aquiles, que nunca o trairia por livre arbítrio, mas é induzido por Zeus a descumprir a ordem do amigo. Sua morte é preparada por outro deus, Apolo (“Num momento, o deus pode fazer um homem corajoso fugir e perder a batalha; noutro, pode lançá-lo à luta”). O mesmo acontece com Héctor, do lado dos troianos, que também é induzido a um destemor suicida. Quase todas as grandes batalhas -- entre Menelaus e Páris, Aquiles e Enéias, Aquiles e Héctor – são manipuladas ou resolvidas pela ação de um deus, quase sempre em favor do lado mais fraco, como nos três casos acima, em que a morte dos troianos ou é evitada ou adiada. O paroxismo da intervenção divina ocorre quando Zeus, receoso de uma rápida vitória dos gregos por conta do retorno e da ira de Aquiles, resolve liberar os demais deuses para se intrometerem na guerra, cada um ao lado de seu grupo favorito.
Invejosos dos homens, da sua mortalidade, os deuses irão premiá-los ou puni-los principalmente na medida de sua capacidade de adorar a divindade. Há espaço, no entanto, para a noção que parece mais moderna de que a atitude da divindade para com o homem depende do comportamento e dos valores morais do homem: “Há dias no outono em que o campo inteiro dorme escuro e oprimido sob um céu tempestuoso, e Zeus envia a chuva torrencial como uma punição aos homens. Sua raiva é despertada porque, independentemente do olhar ciumento do céu, eles fizeram mal uso de seus poderes, lançaram sentenças espúrias em público e escurraçaram a justiça.”
Mas à inveja mistura-se piedade nesses tão contraditórios e incertos olhos dos deuses quando se detêm sobre o homem e a sua condição. É o que se nota na perplexidade de Zeus ante a fuga triste dos cavalos divinos e imortais de Aquiles, após a morte de Patroclus: “Pobres bestas! Por que as oferecemos, vocês que não têm idade e são imortais, ao Rei Peleus, que está fadado a morrer? Queríamos que vocês compartilhassem os sofrimentos de homens infelizes? De todas as criaturas que respiram e rastejam sobre a Mãe Terra, não há nenhuma mais miserável que o homem.”

xxx

O sonho da arte – criar a vida – é manifestada de forma muito tocante e evocativa pelas mãos do deus Hefestus, na Ilíada, que forja um escudo novo para Aquiles, a pedido de Tétis, a mãe do herói. Homero descreve-nos as imagens entalhadas no escudo como uma obra viva, em que os acontecimentos se desenrolam no tempo (uma emboscada, um julgamento, uma guerra), as cores se transformam (o ouro, o negro) e a música se materializa. Como diz Homero, tão compassivo para com Hefestus, esse deus artista e aleijado, “o artista atingiu o milagre”.

xxx

Com a “Ilíada”, tem-se uma boa noção do que é a morte entre os gregos, a visão sombria que têm do além, do Hades. Não há paraíso, como os cristãos conceberiam mais tarde, não há ascensão, céu, mas sim o subterrâneo, a escuridão, a profundeza, algo mais próximo da idéia cristã de inferno. Os deuses mesmos, imortais como são, temem o Hades, e ele próprio, Rei dos Mortos, não quer expor suas câmaras de decomposição. Morrer é fazer a travessia, a terrível viagem, “viajar para a melancolia do oeste”, como disse o amargurado Aquiles, saudoso de seu amigo Patroclus.
Se a idéia cristã de céu e de paraíso não está presente entre os gregos, a de alma, a de espírito que sobrevive à morte, já era comum entre eles. O espírito de Patroclus visita Aquiles num sonho, e o herói então exclama: “Ah, então é verdade que algo de nós sobrevive mesmo no Salão do Hades, mas sem intelecto, só o fantasma e a aparência de um homem; por toda a longa noite, o fantasma do pobre Patroclus (e parecia com ele) esteve a meu lado, chorando e gemendo, e dizendo-me todas as coisas que devo fazer.”
Impressionantes são os funerais, e o maior deles na “Ilíada” é naturalmente o de Patroclus, organizado por Aquiles. O fogo é o elemento principal; é na fogueira altíssima que se consome o corpo e se extinguem os homens e animais sacrificados. E os sacrifícios oferecidos por Aquiles a Patroclus, que incluem animais e homens, são proporcionais a seu amor e a sua ira.
O lado menos sombrio e mais festivo dos funerais são os jogos, precursores dos jogos olímpicos, em que há provas e prêmios em torno da corrida de carruagem, do boxe, da luta armada, da corrida a pé, do arremesso de peso e de dardo, do arco e flecha. Aqui aparece um Aquiles generoso nos prêmios e judicioso nos seus julgamentos. 
 
xxx

A “Ilíada” se encerra com o encontro entre Aquiles e Priam, em que o herói grego entrega o corpo de Héctor ao rei de Tróia, para que ele possa realizar o funeral do filho em Ilium. É um dos pontos maiores da história, em que ambos, o herói e o rei, parecem mais do que nunca dignos da importância e do respeito que inspiram. Priam se arrisca a visitar o guerreiro furioso, ajoelha-se a seus pés, humilha-se ao beijar a mão daquele que matou seu filho, sempre com o intuito de dar ao filho o funeral que merece; já Aquiles tem a grandeza de conter sua fúria, de ver nos olhos de Priam o mesmo abandono e a dor que estão em si, e acaba por entregar o corpo de Héctor e de prometer uma trégua até que se concluam os funerais do seu adversário. Há uma clara idéia de nobreza no encontro entre estes dois personagens.
Mais do que a história do herói Aquiles, de sua tragédia ou a de qualquer outro personagem, a “Ilíada” é um livro de guerra, o relato de uma grande batalha, uma reflexão sobre a dignidade e a futilidade de guerrear. Não há comentários sobre estratégia ou tática, não há referência a fatores políticos ou econômicos que motivam um conflito, não há qualquer veleidade de se analisar “alta política”, a não ser que a expressão pudesse caracterizar as picuinhas e rivalidades do Olimpo. O que há é a recorrente descrição das batalhas, dos conflitos homem a homem, das intervenções dos deuses, o ir e vir da luta entre gregos e troianos, em que a sorte muda a cada momento, há avanços e recuos, ao ímpeto sucede o desespero, à vitória a derrota, e, sobretudo, há a morte, a morte em profusão, a morte que se multiplica e nada resolve. O correspondente moderno da guerra entre gregos e troianos é a Primeira Guerra Mundial, uma guerra sem avanços, sem solução, no equilíbrio das trincheiras, em que todos perdem, não há vencedores.
Na voz de Homero, se a dignidade das batalhas está na grandeza dos guerreiros, no seu desprendimento, no seu destemor, o ridículo da guerra, o seu horror, pode ser medido pela figura sombria, violenta e ignorante do seu deus, o deus da guerra, Ares. Não há nele inteligência ou dignidade; apenas a força bruta, imotivada, a força pela força. É ele quem melhor expressa a falta de sentido do conflito, que nasce de um ato tolo de sedução e caminha para o extermínio dos melhores homens, de um lado e de outro, como Aquiles e Héctor. Nesse aspecto, Homero é um narrador neutro. Ainda que saibamos que a vitória final será dos gregos, com a captura de Ilium, a dor e a tragédia não escolhem um lado apenas. A derrota é, em última instância, o destino dos dois lados, e é esta a herança e a lição maior da guerra.

6.11.11

garotos da fuzarca


“Garotos da Fuzarca”, que reúne contos e “histórias” de Ivan Lessa é, como não podia deixar de ser, uma bateria contra tudo e contra todos, um manual de iconoclastia e, muitas vezes, razão para uma boa risada. Não chega a provar que o filho de Orígenes Lessa é um escritor indispensável, como os comentários na contracapa e o prefácio de Millôr Fernandes nos obrigam a crer, mas não há dúvida de que seu humor nigérrimo, implacavelmente incorreto, muitas vezes preconceituoso, tem, apesar de tudo, a sua graça. Não é, no entanto, na tirada imprevista, que fuzila alguém, uma etnia ou uma nacionalidade inteiras, e que mistura referências culturais e populares as mais disparatadas, que o texto de Lessa é mais engraçado ou criativo. O melhor do autor é quando acerta no nonsense e na paródia.
Dois dos melhores contos do livro são “Como Bashir, a cabra, expulsou os demônios” e “Diários de Londres”. O primeiro é uma sátira impagável da devoção, islâmica nesse caso, em que o fervoroso seguidor de Alá, após transar com a filha do conhecido – com seu consentimento e mediante pagamento, “comme il faut” – presencia a descida do Inferno, dos diabos e gafanhotos que avançam com suas proezas sexuais e escatológicas. A mistura do fervor meticuloso (“Agachando-me com o natural cuidado de não dar as costas nem a frente para Meca, a túnica presa entre os quatro dentes que me restam na boca, comecei a obrar enquanto meditava sobre os ensinamentos do Profeta”) e das imagens gráficas e hiperbólicas (“Quatrocentos jatos de sêmen de fogo riscaram o ar e a inesquecível Bashir tombou como um folha de palmeira nas areias ora escaldantes de chamas diabólicas. Mas Alá, com sua providência, quis que os Demônios-Loiros se confundissem, pois, assustados com a súbita ejaculação, começaram a apontar e a disparar seus falos nojentos aos quatro ventos. Um dos Gafanhotos-Infernais, impregnados do líquido maldito, explodiu como explode por dentro o Homem quando este conhece Mulher”) criam um efeito cômico e uma heresia divertidamente carnavalesca.
Já nos “Diários de Londres”, Lessa leva a iconoclastia ao extremo, com toda a baixaria sexual, racial e moral, regada a humor cáustico e, apesar disso, ou por conta disso, com momentos divertidos. É uma festa de imagens e referências, com personagens improbabilíssimos e já cômicos no nome, como o Negro Ken, a Jovem Pat, o Doce Zulfa, reunidos num apartamento, quarto na verdade, de expatriados em Londres. Há um quê de Roberto Arlt de “Los siete locos”, o disparate como elo de um grupo de desviantes: “A Jovem Pat esfaqueou o Negro Ken. O Doce Zulfa, meditando sentado sobre uma bacia de chá de erva-cidreira, sorveu, por sucção anal, de um só – gole? – a infusão e disse que não agüentava mais nosso quartão em Earl’s Court. Eu acabara de me decidir a apoiar o PSD local, uma vez que este, assim como eu, nada representa ou ambiciona, a não ser a sua própria existência.”
Lessa também acerta em alguns contos mais convencionais, como em “Garotos da Fuzarca”, em que acentua a crueldade do estupro e da morte de Zefinha (atribuídos erroneamente ao negro Euclides), pela naturalidade como os narra e pelas referências banais ao cinema e à música, à Copacabana da época, à aparente inocência dos garotos e seus jogos de botões. Ou em “Senhor, tem pena de mim”, que, já críptico em suas referências ao Centro do Rio de Janeiro, é um conto do subentendido: um crime é cometido contra uma mulher, conhecemos alguns pensamentos do provável assassino, mas não temos acesso às circunstâncias da morte e a detalhes da vítima ou do próprio criminoso; o crime é um subtema distante do conto, que nada mais é do que um perambular pelas ruas do Rio.
Conto cruel e divertido é “A difícil arte de não escrever”, que já pelo título faz prever a bofetada na pretensão de escritores que deveriam reunciar ao ofício. O narrador do conto exerce uma tarefa muito mais complicada, a de tomar notas: “Aí está, pois: eu tomo notas. Livro é coisa de pobre; de gente que lê Veja; que escreve para publicação brasileira; que foi, é ou vai ser contratada pela Globo.” Suas notas, diz ele em alguma parte, são “chatas como um parágrafo de Autran Dourado”.
Mais leve na paródia, com humor menos negro, mas nem por isso menos eficiente, é o conto sobre Bolívar e seu cavalo Paco, “A espada de Bolívar, el Libertador de las Américas”. Entre outras aventuras, Simón senta-se a uma árvore de nachos ou faz uma promessa à Santa María de la Enchilada: “Nessas notas alegres – mi, sol, dó, fá, pa-ram-pan-pan – foram as Américas Liberadas”. O conto nelson-rodrigueano “Uma boneca ao relento”, sobre a esposa que “se oferece” para poder salvar o marido, também tem a sua graça, mas não o charme das histórias e o estilo do mestre que o inspira.
Ivan Lessa também é eficiente na evocação de um espírito de época, do período em que viveu no Brasil, quando certa melancolia se mistura à sua iconoclastia. “Perfeito roteiro para Londres” é uma coleção de frases e pensamentos soltos que formam um painel interessante na cabeça de um carioca dos anos 50. Há certa cacofonia brasileira, certa loquacidade, meio malandra, meio sem sentido, que soa bem, pela graça e pelo acerto. Neste caso, Londres é um pretexto, o lugar onde o carioca exorcisa sua carioquice. Nostalgia que não chega a neutralizar a militância de Lessa contra o Brasil e os brasileiros, ridicularizados até o último hábito, como nesta passagem de “Que fim levou o Edélsio Tavares?”: “Mas, como essas coisas de que nós, brasileiros, não conseguimos escapar – esta oscilação entre o passado e o futuro: a nostalgia da febre amarela e o regalar-se com a AIDS – tenho minhas ambivalências: ele me faz uma certa falta. Como me faz uma certa falta o garçom fanho, as mocinhas com barriguinha de feijão, o operário caindo do andaime, a testa suada do político dando vexame na televisão, os peixes morrendo na Lagoa Rodrigo de Freitas.”
Apesar do talento para o humor, Lessa pode ser chato, muito chato por vezes, com uma escrita espantosamente pretensiosa, hermética, auto-referencial, de onde não se tira ou compreende nada, como em “As convenções: as convenções” e em “Altos edifícios da noite”, que começa como paródia e termina como uma barafunda telegráfica. Lessa também chega, em algumas poucas vezes, a esforçar-se por ser cômico sem ter graça alguma, pela desmedida do escracho ou pela infantilidade da piada, como em “O bombonette” (sobre a relação entre o guerrilheiro torturado e o torturador), em “Carlos Zéfiro na região dos Lagos com Edélcio Tavares” (uma sátira ingênua de tão puerilmente pornográfica), e em “Algúrios a alguém algures no Algarve” (sobre um suposto brasileiro em Lisboa). A mistura de citações obscuras de música popular e cinema com uma linguagem ao mesmo tempo coloquial e cifrada mais irrita do que diverte, e tem-se a impressão de que o autor mais parece sofrer alucinações a toque de álcool (afinal até a Baía tem cor de conhaque) do que verdadeiramente querer atingir algo maior. 
O livro se encerra com “A bênção”, que bem pode ser uma paródia do “Samba da bênção”, de Vinicius de Moraes, só que aqui, em vez de agradecer aos músicos que o inspiraram, como o poeta, Lessa presta uma homenagem aos humoristas que admira, narrando o assédio que sofreu de todos eles quando lhe vieram pedir o autógrafo.

29.10.11

o leilão do lote 49


Como quase tudo na vida e na obra de Thomas Pynchon, “The Crying of Lot 49” (“O leilão do lote 49”), seu segundo romance, publicado em 1965, é ao mesmo tempo rocambolesco e enigmático, divertido e genial.
Oedipa Maas (que belo nome para uma protagonista) é chamada para fazer o inventário de seu ex-amante, Pierce Inverarity, recém-falecido. Em vez de uma mera execução de inventário, Oedipa, a exemplo do seu distante antecessor grego, desenrola, a sua revelia, toda uma trama de conspirações e pistas falsas, envolvendo organizações secretas, disputas centenárias entre couriers privados, diálogos cifrados em peças de teatro antigas, em bandas e letras de rock imaginárias... Pynchon é o mestre da ficção como torvelinho paranóico, em que personagens de nomes e personalidades altamente inventivas se entrechocam em labirintos de conspirações e manipulações que desnorteiam o leitor, no melhor dos sentidos.
Embora tenha sido desprezado por Pynchon, que na introdução do seu livro de contos, “Slow Learner”, renega o romance, “O leilão do lote 49” tem tudo que notabilizou o escritor norte-americano. As imagens ricas e em crescendo estão lá, como na minuciosa descrição dos restos humanos no interior dos carros comercializados por Mucho Maas, marido de Oedipa e dublê de DJ de uma estação de rádio, ou na cena de progressivo envolvimento, como num strip-tease ao revés, entre Oedipa e Metzger, que tenta seduzi-la exibindo o filme B em que fazia o papel de uma criança em fuga, enquanto lá fora, ao pé da janela do quarto do motel, uma banda de rock, “The Paranoids”, livremente inspirada nos recém-lançados Beatles (Pynchon escrevia em começos dos anos 60), toca a sua serenata histriônica. Pynchon carrega na riqueza simbólica do visual: vemos a cidade de cima, com sua geometria particular que antecipa o labirinto em que Oedipa cairá, vemos os objetos acumulados e cheios de histórias no fundo de um lago artificial de um complexo hoteleiro para mergulhadores, que esconde segredos de corporações e grupos mafiosos.
Também está no romance a inventividade da linguagem, como no gosto pelos trocadilhos, pelas letras de música absurdas, pelos nomes infames: Oedipa e Mucho Maas, Pierce Inverarity, Funch, Dr. Hilarious, Baby Igor, “Yoyodine”, Mike Fallopian, Manny Di Presso, “Fangoso Lagoons Security Force” (uma empresa de segurança formada por ex-atores de western e ex-policiais motociclistas de Los Angeles), “Sick Dick and the Volkswagens” (outra banda de rock), Winthrop Tremain... Ao gosto pela imagem que acumula simbolos, Pynchon soma o jogo da palavra que multiplica os sentidos, quase sempre com um ironia e humor. A peça de teatro do século XVII que ele inventa e que revela a origem das conspirações do grupo Trystero (“The Courier’s Tragedy”, de um suposto dramaturgo Richard Wharfinger) já é em si um conto impagável dentro do livro.
Pynchon faz tudo isso sem esquecer os personagens. A caracterização dos protagonistas, em contraste com as caricaturas hilárias que os cercam, faz lembrar a sofisticação psicológica de um retratista como Saul Bellow. Oedipa e Mucho, por exemplo, são pintados com uma sutil ambigüidade. Apesar de curto o livro, ao menos para os padrões pynchianos de romances em calhamaços, é difícil esquecer uma personagem “cool” como Oedipa Maas, em que certa serenidade sexy do começo vai dando lugar a um progressivo, mas ainda charmoso, desnorteamento diante da trama de conspirações que a encurralam.
“O leilão do lote 49” é uma boa introdução ao estranho mundo de Thomas Pynchon, em que o surreal, o paranóico e o lúdico têm o seu melhor encontro na literatura contemporânea.

20.10.11

a morte e a bússola


Além do gosto pelas narrativas curtas e pela poesia, Borges tinha em comum com Edgar Allan Poe a versatilidade de seus contos, do fantástico ao “gaucho”, do cômico ao policial. O quarto conto da seção “Artifícios” do livro “Ficciones” é um sofisticado conto policial, “La muerte y la brújula” ("A morte e a bússola"). Sofisticado porque Borges nos faz imaginar que terá uma solução mais ou menos previsível (as iniciais dos assassinados formariam o nome oculto de Deus), mas na verdade nos conduz a uma revelação mais sutil e engenhosa, em que os crimes são praticados não por inspiração de uma seita hasídica, mas tão somente pelo desejo do assassino de valer-se do acaso para criar uma armadilha de vingança.
O protagonista é o agente Erik Löonrot, mais dado a pistas e interpretações intelectuais dos crimes do que à busca de evidências banais. Saberemos ao final que é esta inclinação de Löonrot que será sua perdição, já que é dele que o assassino busca vingar-se, e usará os assassinatos em série como um chamariz para atrair o agente. Em lugar de formar um nome, como seria de esperar pelas pistas hasídicas deixadas pelo criminoso, a série de mortes formará um losango geográfico, que só Löonrot, em função de pistas que Borges nos vai revelando (os losangos em paredes e roupas, a idéia do tetragrámaton), conseguirá deduzir.
O desenho dos crimes (no caso, o losango) não deixa de ser uma solução interessante para a época em que Borges escreveu, em que assassinatos em série não haviam sido banalizados pelo cinema e pela televisão. O que agrada no conto, no entanto, é a idéia de construção dos crimes seriais a partir do acaso (a frase que a primeira vítima havia deixado sobre a máquina de escrever) e do desejo de envolver a vítima principal num labirinto que irá encantá-lo e conduzi-lo à própria morte. Nenhum assassinato terá tido execução mais literária, nenhuma dupla assassino-vítima terá sido mais borgiana, e é isso, esse elemento puramente lúdico, literário e labiríntico que encanta nesse belo conto policial.

16.9.11

servidão humana


“Of Human Bondage” (“Servidão humana”), de Somerset Maugham, é um clássico, se não da literatura com L maiúsculo, ao menos do gênero dos romances de formação (“Bildungsroman”), que narram a infância e a juventude do protagonista. Maugham era uma escritor talentoso, preciso sem ser chato e comovente sem ser piegas. Ao valer-se de sua experiência pessoal para escrever este romance autobiográfico consegue o máximo de autenticidade e lirismo. Como ele mesmo diz no prefácio, singularizando o livro como sua obra maior, escreve-se melhor sobre aquilo que se viveu.
Trata-se de um belo livro, pela densidade da construção psicológica do protagonista e pela singeleza das suas desventuras. Não chega, no entanto, a ser uma leitura que arrebata. Além da extensão considerável, há algo de pesado na estrutura do livro, talvez inevitável nos romances de formação: o texto é cíclico, desenvolve histórias parciais com seus clímaxes e anti-clímaxes, sem um grande eixo que aumente a expectativa e o envolvimento do leitor. Sucedem-se os diversos períodos da vida do protagonista Philip Carey, que correspondem, grosso modo, a atividades e lugares distintos, com histórias próprias: a infância em Blackstable, o colégio em Tercambury, a adolescência em Heidelberg, a contabilidade em Londres, a pintura em Paris, a medicina na volta a Londres. Cada momento tem sua trajetória, cujo fim exigirá do leitor novo fôlego para o recomeço.
Se há um “leitmotiv”, é a paixão obsessiva de Philip por Mildred, uma garçonete mortiça que despreza o cavalheirismo e a deformação física do protagonista. Ocorre que esta paixão e seus dissabores se circunscrevem ao segundo período em Londres, o último e mais longo do livro é verdade, mas sem que houvesse até então sinais de inclinações obsessivas do personagem ou de uma personalidade romântica. Talvez Maugham não quisesse antecipar nada, para realçar o caráter irracional, imprevisível e incontrolável da paixão que acometeria seu alter-ego. O que importa é que a relação de Philip com Mildred é, por sua tragicidade e irrazoabilidade, o que há de mais marcante no livro.
Se o leitor pode se ressentir do caráter cíclico do texto e das penosas travessias dos anti-clímaxes e recomeços, a elegância e a sofisticação de Maugham oferecem recompensas por toda parte. O capítulo LXXXVIII, sobre a força do elemento místico em um pintor como El Greco, é genial. Passagens mais simples também emocionam, principalmente na revelação do caráter do herói: “Philip found that Rose was quietly avoiding him. But he was not the boy to accept a situation without putting it into words” (pag.77). Maugham é, ao mesmo tempo, muito simples e muito elegante em seu estilo.
O interesse do livro vem também da posição do narrador. “Of Human Bondage” é narrado na terceira pessoa, mas a narração corresponde à de primeira pessoa. O narrador descreve as ações e os pensamentos do protagonista, mas nada, nem ação nem pensamento, dos demais personagens. Ao escrever um romance autobiográfico, Maugham sabe que só tem a dizer o que seu alter-ego viveu e sentiu, mas usa o artifício da terceira pessoa para distanciar-se dele e para tornar menos patética e sentimental sua trajetória. O efeito é certeiro, pois Philip Carey nos aparece tão real quanto comovente. 

27.8.11

manuscrito encontrado numa garrafa


Edgar Allan Poe é quase sempre hiperbólico no que escreve, o que, no seu caso, é antes uma virtude do que um defeito. Poe carrega na adjetivação, no uso de imagens e metáforas extremas para expressar o que está no limiar. Isso é particularmente perceptível nos seus contos que envolvem fenômenos da natureza que estão na fronteira do sobrenatural, ou já a ultrapassaram, como no exemplo de “A Descent into the Maelström” (“Uma descida no Maelstron”), já resenhado aqui.
Outro conto nessa linha é “Ms. Found in a Bottle” (“Manuscrito encontrado numa garrafa”), com que Poe, iniciando-se como contador de histórias, ganhou um prêmio de US$ 50 do “Baltimore Saturday Visitor”, em 1833. O narrador relata sua estranha experiência nos mares do sul. Seu navio, que partira de Java, é atingido por uma espécie de furacão de espumas, que mata todos os seus tripulantes, menos o narrador e um velho sueco. O navio será levado ainda mais em direção ao sul, à noite de um pólo navegável e onde, durante meses, não se pode conhecer o dia. Mais tarde, o navio entrará em novo redemoinho e, ao chocar-se com outra embarcação muitas vezes maior e mais pesada, o narrador acabará por cair nesse outro barco. A história centra-se na natureza misteriosa desse segundo navio, fantástico e antigo, onde tudo e todos são muito velhos, os tripulantes, os instrumentos, a madeira, o próprio navio, que faz lembrar um galeão espanhol de séculos anteriores. Os tripulantes, como fantasmas de outro tempo, não percebem a presença do intruso, que com eles não tem como interagir e limita-se a registrar em seu diário, no “manuscrito encontrado numa garrafa”, sua perplexidade, suas experiências e mais um abismo, agora de gelo, em que o navio misterioso sucumbirá.
Não é um conto à altura de “A Descent into the Maelström”. Não há em “Ms. Found in a Bottle” um evento único, cristalizador da história, mas uma sucessão de furacões e redemoinhos, o que fragmenta um pouco a narrativa e mina a própria credulidade do leitor, posta à prova a cada nova peripécia. Mistura-se o “sobrenatural” da natureza (os furacões, os redemoinhos, o pólo sul navegável) com o “sobrenatural” do homem (a sobrevivência do narrador, a tripulação fantasma) e o que se tem é um acúmulo de mistérios sem respostas, num conto que é sobretudo uma coleção de perguntas. Perguntas que, como todas as hipérboles de Poe, e apesar do charme das suas histórias, são sempre feitas com pontos de exclamação.

12.8.11

os ratos

Um homem – um funcionário público tão medíocre quanto sua vizinhança curiosa – tem um dia para conseguir os 53 mil réis que deve ao leiteiro, sem o que a mulher e o filho pequeno deixarão de receber, já no dia seguinte, o leite diário. Naziazeno é o seu nome e ele percorrerá as ruas da cidade, os conhecidos dos bares, a ante-sala do chefe na repartição, em busca da ajuda que o salve. Ao longo do dia, acreditará em soluções, ganhará e perderá na roleta, ouvirá sobretudo evasivas, ponderações, admoestações. Ao fim do dia, depois de tantas idas e vindas, de tanto cansaço nas pernas e humilhação no peito, um “esquema” que combina empréstimos de terceiros e penhor de um anel de um conhecido o salvará provisoriamente, para que novos dias longos e extenuantes como aquele possam reproduzir-se novamente. Para que novamente ele possa percorrer as ruas da cidade como um pequeno roedor em busca de migalhas, e chegar em casa com a tarefa cumprida, na hora certa para perder o sono e ouvir passinhos miúdos de ratos no forro do assoalho, prontos para roer o parco dinheiro duramente conquistado.
Essa é a história de “Os ratos”, esse romance angustiante de Dyonelio Machado. Não há muito prazer na leitura. A narrativa é tão desadornada, e a língua tão árida, quanto a jornada de Naziazeno. Não há adereço ou beleza, um parágrafo que impressione, tudo é miúdo e mesquinho como a moeda esparsa sobre o pires de café na mesa de cada bar que ele freqüenta. Dyonelio escreve sua história circular, seu mito de Sísifo, em que o herói vai e vem pelas ruas da cidade atrás de cada ilusão frustrada, como se percorresse um labirinto de ratos, com os passos incessantes e inúteis. A vertigem da humilhação, da alma aviltada, é especialmente bem retratada nos capítulos finais, em que o autor quebra a narrativa linear e a confunde com as lembranças cortadas e as alucinações de um Naziazeno siderado e insone. É a degradação final de um homem sitiado por ratos imaginários, por suas próprias misérias.

2.8.11

diário de um louco

Lu Xun (1881-1936) foi um dos maiores escritores chineses do século XX. Sua inteligência e aguda compreensão da realidade, sua projeção como intelectual íntegro e engajado, sua habilidade no conto e no ensaio são algumas das características que o notabilizaram. Nos anos vinte e trinta, período extremamente conturbado da história da China, Lu Xun foi uma referência de integridade, um dos homens mais admirados e respeitados pelo povo chinês.
Foi com alguma curiosidade que li seu “Diary of a Madman” (“Diário de um louco”), um conto de 1918, traduzido por William A. Lyell. Curiosidade por toda a riqueza de ressonâncias e referências que o título evoca: “Diary of a Madman” é também um belo conto/novela de Gogol, um filme com Vincent Price e um disco de Ozzy Osbourne, se é possível associar gêneros e artistas tão distintos numa mesma frase.
À semelhança do texto de Gogol, o conto de Lu Xun é a narrativa em primeira pessoa, na forma de diário, de um homem que vai revelando aos poucos seu desequilíbrio. Ele crê progressivamente que as pessoas que o cercam são canibais, prontos a executar o plano de matá-lo e degustá-lo. Há algo de Edgar Allan Poe na construção que revela aos poucos, com certo grau de morbidez, o desequilíbrio mental onde parecia haver lucidez e indignação, mas sem o brilho ou ao menos o frescor de Poe e Gogol, que escreveram quase um século antes. O melhor do conto são alguns passagens com frases curtas e cortantes, interpostas no meio da narrativa, que ao mesmo tempo quebram e dão um sentido de urgência a história: “Pitch black out. Can’t tell if it’s day or night. The Zhao family’s dog has started barking again. Savage as a lion, timid as a rabbit, crafty as a fox…” ("Breu lá fora. Não dá para dizer se é dia ou noite. O cachorro da família Zhao começou a latir de novo. Selvagem como um leão, tímido como um coelho, astuto como uma raposa..."). Ou quando o protagonista é encarcerado pelo próprio irmão, “The sun doesn’t come out. The door doesn’t open. It’s two meals a day.” (O sol não aparece. A porta não abre. São duas refeições por dia.")
São pequenas peças de lucidez e concisão, que não chegam a fazer do conto uma história memorável, mas dão uma graça à agonia mental do protagonista.   

23.7.11

o poder e a glória


A vida de Graham Greene parece ter sido tão extraordinariamente conturbada e internacional quanto os personagens e os cenários de seus livros. Os casos de adultério, as viagens, sua relação com o catolicismo, com o socialismo, sua busca do exótico, seu papel como espião inglês, seus problemas com o fisco, suas manias, sua angústia, tudo parece demasiado para uma única vida.
Até o anedótico em Greene intriga, como o fato de que esse homem de vida tão intensa se dava ao luxo de estipular o número de palavras que escrevia diariamente, como um cozinheiro desocupado a contar o número de grãos de arroz no prato de comida que prepara. Diz-se que, ao concluir o romance “A Burnt-Out Case”, Greene mandou um telegrama a uma amiga em que dizia, “FINISHED THANK GOD 325 WORDS SHORT OF ORIGINAL ESTIMATE” (TERMINADO GRAÇAS A DEUS 325 PALAVRAS MENOS DO QUE O PREVISTO).
A estranha mania com os números me soa tão humana e familiar, que só engrandece a figura de Greene. Li, com admiração, seu “The Power and the Glory”, onde aparece esse personagem genial do padre sem nome, angustiado com seus próprios pecados. Como o título sugere, o romance mistura dois dos temas favoritos de Greene, sobre os quais teria produzido seus melhores livros: política e religião. A mistura neste caso é conflituosa: o Governo de uma província no sul do México, no período anti-clerical dos anos 30, tenta eliminar o catolicismo e seus pregadores. Um policial inflexível, movido pelas idéias de revolução social e de supressão de uma religião anestesiante, persegue o último padre, um padre dilacerado por seus dois pecados, o alcóol e uma filha concebida numa noite de fraqueza. O fervor e o fanatismo do perseguidor nascem na ideologia; a dúvida e a falibilidade do perseguido germinam em meio à religião.
Greene conta a história de uma fuga para o nada. Como a religião que cultiva, a sobrevivência é para o “whisky priest” um hábito, uma tarefa que persegue sem convicção. Os pecados do padre o desencontraram de Deus. Ele mais teme do que crê no alto. Receia a morte como momento de danação e persevera na vida pelo inércia do ofício religioso e pelo pavor de prestar contas a Deus. O padre, a quem Greene não dá nome, não tem pouso em que possa descansar: na terra, tornou-se indesejado, já que o policial ameaça de morte os que souberem de seu paradeiro e não o revelarem; no céu, o espera a punição.
Esse padre criado por Greene é um personagem interessantíssimo; complexo, profundo, “round” como classifica Forster. Greene o constrói com a ambigüidade necessária: lhe é crítico, mas lhe dá humanidade. O padre não é um mero violador de uma religião perfeita e sagrada, que por isso deve pagar caro. O autor não o condena, da mesma maneira que não idealiza o catolicismo ao qual se havia convertido anos antes.
Greene é um mestre na criação de cenas envolventes, o que talvez explique sua incomum popularidade para um grande escritor. O livro, embora curto, tem pelo menos três momentos memoráveis. O primeiro é o cerco do vilarejo em que mora a filha do padre. Além do encontro dilacerante e passional com sua criação, o padre é inquirido pelo policial pela primeira vez, mas não é identificado. O segundo momento é o da compra do vinho e do desespero ante seu consumo inusitado por seus inimigos políticos. A impotência do padre comove. O terceiro é o de sua prisão como portador de álcool. A noite na cela infecta e abarrotada e a perspectiva de sua revelação são de uma angústia rara. Sua captura, por fim, é anti-climática, prevista pelo leitor e pelo próprio padre, que suspeitava da traição do mestiço que o perseguira. E Greene, com uma bela elipse e pelos olhos de um antigo conhecido do padre, nos faz acompanhar de longe a execução final.
Graham Greene domina com tanto desembaraço as técnicas de criação, que se permite criar personagens e tramas secundárias que não desenvolve, apesar de despertar a curiosidade do leitor. O que aconteceu com a família Fellows e, em particular, com a menina Coral, que dera abrigo ao padre e prometera vingança contra os perseguidores? E Mr. Tench, o outro inglês, partiria de vez do México? E que fim teria a filha do padre, tão interessante quanto Coral na sua precoce maturidade de 6 ou 7 anos? Principalmente as mulheres, as crianças fortes e enigmáticas de Greene, fazem o leitor perguntar por seu futuro, embora ele não responda.
Greene não é um escritor ousado estilisticamente. Mas escreve com sofisticação, seja pela agudeza com que disseca a psicologia torturada de seu protagonista, seja pela qualidade das metáforas que cria. Seu humor para imagens é precioso, como por exemplo na descrição do dentista Tench observando a boca cariada do chefe de polícia: “He stared moodily into the mouth as though a crystal were concealed between the carious teeth.” Ou na resignação do padre diante da morte: “He felt like someone who has missed happiness by seconds at an appointed place.”
O pecado do autor é seu indisfarçado preconceito etnocêntrico. O México de Greene não é um país; é o inferno. Corrupto, paupérrimo, sujo, povoado por sujeitos ignorantes e doentes. O clima e a paisagem são inóspitas. A beleza, inexistente. O México é personificado na figura do mestiço que engana e denuncia o padre: é um sujeito ardiloso, mesquinho, sem dentes e com febre.
Caricaturas à parte, John Updike talvez tenha razão ao julgar “The Power and the Glory” o melhor romance de Graham Greene.

18.7.11

fim de jogo


“Final del juego” é um conto de Cortázar em que três meninas – supostamente irmãs, vivendo com a mãe, a tia e o gato – têm como “reino” os fundos da casa, onde praticam o jogo de se fingirem de estátuas e de encenar “atitudes” (estados de espírito) para os passageiros do trem que passa sempre à mesma hora. São elas Letícia, a mais velha e mais meiga, com uma espécie de paralisia infantil que imobiliza as costas; Holanda e a narradora, ambas cúmplices na picardia, na energia e na graça que Letícia parece não ter.
Cortázar mostra-nos a vida familiar das meninas com uma verossimilhança psicológica e uma precisão de voz (da narradora em primeira pessoa) que comovem. Pela maldade das meninas com o gato, pelo desprezo pela mãe e a tia, faz-nos prever um jogo perverso e trágico, para na verdade mostrar apenas que se trata de personagens com os sentimentos, as fraquezas e a complexidade de qualquer jovem.
O jogo e a maneira como as três meninas o praticam – alternam-se sorteando quem será a imitadora da vez e o que encarnará – formam o centro do conto. Tudo se precipita quando um passageiro (um estudante) passa a lançar bilhetes da janela, comentando as estátuas e atitudes. Mostra-se particularmente fascinado por Letícia – “la más linda es la más haragana” (preguiçosa) – cuja deformidade se escondia na imobilidade das estátuas. Chega a pedir para encontrá-las, mas é recebido somente por Holanda e a narradora, já que Letícia não quer revelar-se na frente dele. É desse fascínio do menino por Letícia e do ciúme que provoca nas outras duas que nasce a tensão e a força da história.
O final é tão bonito quanto o resto do conto. Letícia faz chegar uma carta ao menino explicando sua condição e, como numa despedida do jogo, faz um gesto triunfal, catártico: “levantó los brazos como si en vez de una estatua fuera a hacer una actitud, y con las manos señaló el cielo mientras echaba la cabeza hacia atrás (que era lo único que podia hacer, pobre) y doblaba el cuerpo hasta darnos miedo. Nos pareció maravillosa, (...). No sé por qué las dos corrimos al mismo tiempo a sostener a Letícia que estaba con los ojos cerrados y grandes lacrimones por toda la cara.”
Ariel, o menino, a viu assim, uma vez mais, e no dia seguinte “cuando llegó el tren vimos sin ninguna sorpresa la tercera ventanilla vacía, y mientras nos sonreíamos entre aliviadas y furiosas, imaginamos a Ariel viajando del otro lado del coche, quieto en su asiento, mirando hacia el río con sus ojos grises.” 

9.7.11

um quarto só seu


Talvez esperasse um pouco mais de “A Room of One’s Own”, de Virginia Woolf. Baseado em duas conferências dadas na década de 1920, o livro é considerado um dos grandes ensaios da ficcionista. A verdade é que vale mais pela coragem e pioneirismo na defesa dos direitos da mulher e da mulher escritora do que por seus méritos propriamente literários.
A tese de Woolf parece tão simples hoje quanto era controvertida na época: as mulheres não são menos capazes do que os homens para a literatura; o que lhes falta são os meios; dê-se-lhes um espaço de privacidade (“a room of one’s own”) e uma fonte de renda, e elas farão tão boa literatura quanto os homens: “All I could do was to offer you an opinion upon one minor point – a woman must have money and a room of her own if she is to write fiction; and that, as you will see, leaves the great problem of the true nature of woman and the true nature of fiction unsolved.”
Woolf lembra que ela mesma só pôde escrever pelo fato de compartilhar um mesmo sobrenome com a tia rica que lhe deixou uma bela herança: “Indeed, I thought, slipping the silver into my purse, it is remarkable, remembering the bitterness of those days, what a change of temper a fixed income will bring about. No force in the world can take from me my five hundred pounds. Food, house and clothing are mine forever. Therefore not merely do effort and labour cease, but also hatred and bitterness. I need not hate any man; he cannot hurt me. I need not flatter any man; he has nothing to give me.”
Ela desenvolve a tese, e a enriquece com hipóteses e reflexões complementares. Seus protestos contra o preconceito são sempre agudos e certeiros, como é tocante sua indignação por ser impedida de permanecer na biblioteca da universidade que visita ou por não participar, na mesma universidade, do fausto exclusivamente masculino de regalar-se com a boa comida e a boa conversa, em torno dos prazeres dos sentidos. Para Woolf, o prazer dos sentidos, como no bom jantar que vislumbra em seu passeio no campus, parece ser fundamental para a sensibilidade literária. Tudo parece fabuloso no ambiente exclusivo e inacessível das universidades: “The organ complained magnificently as I passed the chapel door. Even the sorrow of Christianity sounded in that serene air more like the recollection of sorrow than sorrow itself; even the groanings of the ancient organ seemed lapped in peace.”
A capacidade de Woolf para a descrição e a metáfora por vezes aparece de forma sublime, como lampejos que despertam a audiência, como na descrição do British Museum: “The swing–doors swung open; and there one stood under the vast dome, as if one were a thought in the huge bald fore head which is so splendidly encircled by a band of famous names.”
Sobre literatura propriamente, Woolf começa suas reflexões com o contraste que estabelece entre a mulher real e a mulher construída pela ficção. A mulher da literatura é um ser à parte: "A very queer, composite being emerges. Imaginatively, she is of the highest importance; practically she is completely insignificant. She pervades poetry from cover to cover; she is all but absent from history. She dominates the lives of kings and conquerors in fiction; in fact she was a slave of any boy whose parents forced a ring upon her finger. Some of the most inspired words, some of the most profound thoughts in literature fall from her lips; in real life she could hardly read, could scarcely spell, and was the property of her husband."
Sobre as escritoras e seu potencial, ela defende a tese, hoje bastante óbvia, de que, oferecidas as mesmas condições, as mulheres poderiam ser tão boas quanto os grandes escritores. Poderia ter existido, por exemplo, uma irmã de Shakespeare tão brilhante quanto ele. O que constrangeu as mulheres foi, no entanto, não apenas a impossibilidade prática e a hostilidade alheia, mas também os grilhões mentais, os preconceitos assimilados e a própria auto-censura: “publicity in women is detestable. Anomymity runs in their blood”, o que explicava a adoção de nomes masculinos, como em Currer Bell, George Eliot e George Sand, e reforçava por sua vez a convenção de que só os homens eram capazes. Não era possível ser indiferente à indiferença, quanto mais à discriminação e à hostilidade, já que o artista é sensível demais para não se importar: “Literature is strewn with the wreckage of men who have minded beyond reason the opinion of others.” E a melhor literatura, segundo Woolf, é, como no caso de Shakespeare, a mais livre dos ressentimentos e queixas, que decorrem muitas vezes do preconceito e da hostilidade: “The reason perhaps why we know so little of Shakespeare – compared with Donne, or Ben Johnson or Milton – is that his grudges and spites and antipathies are hidden from us. We are not held up by some “revelation” which reminds us of the writer. All desire to protest, to proclaim an injury, to pay off a score, to make the world the witness of some hardship or grievance was fired out of him and consumed. Therefore his poetry flows from him free and unimpeded. If ever a human being got his work expressed completely, it was Shakespeare. If ever a mind was incandescent, unimpeded, I thought, turning again to the bookcase, it was Shakespeare’s mind.”
Sem espaço, sem dinheiro, sem apoio, contra vontades e preconceitos, coube à mulher, no máximo, algum sucesso no romance (Austen, Eliot, as irmãs Brontë), mesmo porque requeria, segundo Woolf, menos concentração e privacidade do que a poesia, a história e o teatro (Austen, por exemplo, escrevia em meio ao movimento da família, sem quarto próprio, sem que os visitantes percebessem). O que surpreende no caso delas é o alcance de suas obras sem que tivessem tido a vivência do mundo que é facultada aos homens: “She (Charlotte Brontë) knew, no one better, how enormously her genius would have profited if it had not spent itself in solitary visions over distant fields; if experience and intercourse and travel had been granted her. But they were not granted; they were withheld; and we must accept the fact that all those good novels, Villette, Emma, Wuthering Heights, Middlemarch, were written by women without more experience of life than could enter the house of a respectable clergyman.”
Ainda assim, haveria diferenças fundamentais entre elas, que dizem respeito justamente à capacidade de escrever sem se deixar contaminar pelo ressentimento, ou pela temeridade de escrever como os homens escrevem: “Only Jane Austen did it and Emily Brontë. It is another feather, perhaps the finest, in their caps. They wrote as women write, not as men write. Of all the thousand women who wrote novels then, they alone entirely ignored the perpetual admonitions of the eternal pedagogue—write this, think that. They alone were deaf to that persistent voice, now grumbling, now patronizing, now domineering, now grieved, now shocked, now angry, now avuncular, that voice which cannot let women alone, but must be at them, like some too–conscientious governess.” Austen teria logrado tanto justamente porque, mesmo não tendo o gênio de Charlotte Brontë, soube expressar-se com voz própria, feminina, “a perfectly natural, shapely sentence proper for her own use.”
Woolf defende de forma veemente a idéia de uma voz feminina própria, que é inacessível ao homem, incapaz de pronunciá-la, por oposição a uma voz masculina, inacessível à mulher. O que não signfica que o homem não tenha um elemento de imaginação feminina, e vice-versa. Certa capacidade para a voz andrógina seria uma das virtudes centrais do grande escritor: “Coleridge perhaps meant this when he said that a great mind is androgynous. It is when this fusion takes place that the mind is fully fertilized and uses all its faculties. Perhaps a mind that is purely masculine cannot create, any more than a mind that is purely feminine, I thought.” Também aqui o brilho de Shakespeare seria evidente, embora na boa companhia de outros autores: “One must turn back to Shakespeare then, for Shakespeare was androgynous; and so were Keats and Sterne and Cowper and Lamb and Coleridge. Shelley perhaps was sexless. Milton and Ben Jonson had a dash too much of the male in them. So had Wordsworth and Tolstoi. In our time Proust was wholly androgynous, if not perhaps a little too much of a woman.”
Woolf não chega a desenvolver uma das frases mais intrigantes do livro. Não sei se a compreendo, mas as palavras ressoam com força e certo mistério: “a book is not made of sentences laid end to end, but of sentences built, if an image helps, into arcades or domes” ("um livro não é feito de frases dispostas uma atrás da outra, mas de frases construídas, se uma imagem ajuda, em arcos e cúpulas"). É uma belíssima imagem, tão incompreensível quanto sugestiva.