22.5.11

a queda da casa de Usher


“The Fall of the House of Usher”, de Edgar Allan Poe, é um conto clássico de horror. Poe não chegou a inventar o conto de horror, mas foi o primeiro grande escritor do gênero, com especial predileção pela fronteira entre a loucura e o sobrenatural, pela imbricação entre um estado-limite da mente e uma realidade inapreensível e aparavorante.
Em “A queda da casa de Usher”, o protagonista-narrador recebe uma carta do seu colega de infância, Roderick Usher, que agoniza e pede que ele se hospede em sua casa, para consolar-lhe o fim da vida. Usher faz parte de uma família reclusa e misteriosa, cujos últimos representantes – ele e a irmã, Madeline – convivem na mesma casa e parecem próximos da morte. Por piedade ou fascínio, o narrador acompanhará a queda final tanto da família como da própria casa, o que será precipitado pelo enterro em vida da cataléptica Madeline e por sua vingança contra o irmão.
Poe procura criar uma atmosfera de mistério e de terror – de limite entre o verossímil e o inexplicával – por meio do contraste entre o relativo destemor ou ingenuidade do protagonista e o ambiente viciado e fantasmagórico que o cerca. A tensão do conto sustenta-se na inexplicável permanência do narrador numa casa e entre personagens amaldiçoados. Roderick é uma espécie de bruxo que definha, marcado por castigos e mistérios, Madeline, um espírito sombrio que os ronda, e a casa, com vida própria, carrega os pecados e maldições milenares em sua escuridão e noite permanentes. O primeiro contato do narrador, ainda sobre seu cavalo, já antecipa tudo – a sombra e a queda – quando, impressionado pela sensação de incompreensão e pavor que a casa lhe inspira (“an utter depression of soul which I can compare to no earthly sensation more properly than to the after-dream of the reveller upon opium”), ele olha o seu reflexo no lago em frente na esperança de desfazer-se daquele sentimento e acaba por abalar-se ainda mais com sua imagem invertida. 
Poe é menos econômico em “The House of the Fall of Usher” do que em outros contos. Aqui temos um texto muito adjetivado, hiperbólico no uso do vocabulário, como se ele fizesse um esforço para nos transmitir a sensação e a atmosfera de mistério e horror. Ainda assim, é um dos seus grandes contos, com um poema precioso incrustado em sua narrativa (“The Haunted Palace”, “O palácio mal-assombrado”) e um final que excede os limites da verossimilhança e adentra o mistério, com a fusão entre literatura e realidade, entre a história que o narrador lê para Roderick e a história que Poe nos conta.

19.5.11

diário de um fescenino


Rubem Fonseca é, ou foi, um grande escritor, pela agilidade de romances como “A grande arte” ou “Bufo & Spallanzani” e principalmente pelo caráter antológico dos seus livros de contos, de “Lúcia McCartney” e “Feliz ano novo” a “O cobrador” e “Romance negro e outas histórias”. Foi quem melhor retratou o Brasil urbano das últimas décadas e, em particular, a violência da sociedade e das relações, sempre com mordacidade e o melhor humor. A cada novo livro, era um prazer lê-lo, e a dúvida eventual sobre se se tratava de uma literatura fácil ou maior, derivada da enorme fluência da leitura, dissipava-se sempre, a cada passagem genial, a cada achado, na certeza de que se tinha diante dos olhos uma das obras mais impressionantes da literatura brasileira das últimas décadas.
Seus últimos livros não têm como apagar o passado, mas mostram como o escritor parece ter perdido o rumo e se acomodado com uma literatura menor. É difícil saber o momento de parar, seja pela esperança de retomar o gume, seja pelo embalo da notoriedade e da pressão dos leitores cativos.
Exemplo evidente dessa decadência é o “Diário de um fescenino”. Romance na forma de diário, conta a história de Rufus, o escritor em crise (já começa pelo clichê), que, na impossibilidade de avançar no seu bildungsroman, passa a escrever um diário em que vai registrando suas peripécias amorosas e seus comentários sobre sua obra e sobre a literatura em geral. De permeio, há encontros e traições com diversas mulheres (Henriette, Lúcia...), o romance duplo com mãe e filha (Virna e Clorinda), uma estadia no manicômio para fazer uma investigação, uma trama mal ajambrada de uma cilada e de uma acusação de estupro e muitas citações dos mais diversos autores e dele mesmo. Nada necessariamente bom ou ruim, não fosse a excessiva leveza, a displicência com que Fonseca concebeu e escreveu sua história. Sempre um excelente criador de diálogos, ele peca até nisso, embora se ironize de modo perfeito: “Estou treinando a forma dialogada de escrever. Tenho um bom ouvido, acho que estou indo bem, mas depois, na minha ficção, pretendo usá-la com extrema parcimônia. O diálogo é sabidamente um recurso de escritores medíocres.” Um pequeno exemplo de que o ouvido do autor não funcionou é esse diálogo entre Rufus e Lúcia, uma atriz:

            “-- Se você sabe a resposta, por que pergunta?
            -- Estou com uma raiva.
            -- Deixa essa cena para o palco.
            -- Seus livros dizem tudo. Você me diz uma coisa que me deixa encantada e de repente vejo que está num dos seus livros, igualzinho, faz parte do seu arsenal de torpedos velhos. Eles não explodem mais, entendeu?”

Ou a frase dita ao amigo Pedro Martins:
“-- Sou um espalhador de sementes. A civilização, esse processo evolutivo que sofremos, não deve corromper nossa pureza animal.”

Há um tom vulgar que acanalha o livro, como se vê claramente no capítulo sobre a separação de Rufus e Lúcia (10 de abril), e de modo geral na descrição das relações do protagonista com cada uma de suas amantes. Está lá o velho macho narcisista de sempre, tão constante em sua obra, mas o que falta dessa vez é um pouco de graça e sutileza para falar do grosseiro e do vulgar, uma das marcas mais características de Fonseca.
O melhor do livro são, afinal, os comentários bem humorados sobre os escritores e algumas citações divertidas:

''Conforme minha experiência, esses fãs que escrevem para os escritores são todos perigosos. Um sujeito certa ocasião me enviou uma carta dizendo que havia seguido o meu exemplo e abandonado o emprego e a família para se dedicar à literatura. O cara estava maluco, que família eu abandonei? Quem me abandonou foi a família. E que merda de dedicação é a minha? Cinco livros? As mulheres são ainda piores. Idealizam o idiota que escreve, se apaixonam por um mito, esperam que ele realize seus delírios alegóricos. Os escritores são maus amantes, maus amigos, más companhias.''
(...)
“-- Por que você se tornou escritor?
            A única resposta inteligente para essa pergunta é aquela do Montalbán, tornei-me escritor para ficar alto e bonito.”
            (...)
“Wilde tinha razão quando dizia “A man’s face is his autobiography. A woman’s face is her work of fiction.”

Fonseca chega mesmo a discorrer sobre a “síndrome de Zuckerman”, que ataca os que confundem personagem e autor, como outro judeu além de Philip Roth, Woody Allen, também exploraria com graça em seu “Deconstructing Harry”:

“Zuckerman é um personagem de Philip Roth, que decide escrever um livro. Quando o livro é publicado, o inferno de Zuckerman começa. Os leitores, ao se encontrarem com ele, fazem-lhe as piores acusações: Zuckerman, como você foi dizer aquela coisa horrível da santa sua mãe, Zuckerman, você é um homem mau, chamar o seu melhor amigo de ladrão; Zuckerman, você é um nojento, nunca pensei que fosse capaz de fazer aquelas coisas... Os leitores acreditavam que o personagem do livro era o alter ego do autor e que tudo o que ele dizia no seu livro se aplicava a ele e aos seus amigos e parentes, era o universo. (Roth descrevu a doença mas, na verdade, sempre demonstrou que estava cagando para os que acreditavam ser ele o alter ego de seus personagens. Porém são raros os escritores que pensam assim.) Todo leitor padece desse mal, mesmo aqueles que tem como profissão a crítica literária.”

O humor de Fonseca mal compensa a fraqueza do policial, a trama frouxa das traições. São momentos mordazes, mas hoje raros, que fazem lembrar remotamente o autor cortante que um dia escreveu contos que atingiram alguns dos pontos mais altos da ficção na literatura brasileira desde Graciliano, Guimarães e Clarice.

17.5.11

o invasor de Shady Hill

John Cheever atinge outro ponto altíssimo com o extraordinário “The Housebreaker of Shady Hill”. Não há nesse conto o brilho da idéia da travessia das piscinas do bairro como metáfora da queda (“The Swimmer”), tampouco o elemento poético e agridoce na construção de um personagem-escritor mais real e vivo que os personagens de um romance, como o Bascomb de “The World of Apples”. A história é interessante pelo estranho desvio de Johnny Hake, que, com as contas penduradas e a incapacidade de falar do fracasso à mulher e aos filhos, sucumbe ao impulso de roubar as casas dos amigos na vizinhança, uma reverberação do roubo do dinheiro da carteira do pai, que mal viu em sua vida. O personagem tem o seu apelo, essa figura ao mesmo tempo inconseqüente – como no abandono do emprego – e amargurada com seus próprios vícios, a começar pelos tiques e o tremor provocados pela idéia e pela prática do roubo.
O que torna o conto especial não é, no entanto, a história ou o personagem, por mais sólidos que sejam, mas a genialidade dos comentários e reflexões de Cheever, seja como observação social, seja como análise psicológica. Cheever mostra neste conto uma dicção e uma inteligência sutil à altura de outro autor cuja marca é justamente a sofisticação intelectual, seu conterrâneo e contemporâneo Saul Bellow. Ler contos como “The Housebreaker of Shady Hill” é observar o trabalho de uma mente extremamente afiada na captura do que surpreende em nosso mundo moderno, urbano e narcísico.
Tome-se, por exemplo, a descrição de personagens, casais, famílias. Primeiro, a descrição inicial do protagonista: “My name is Johnny Hake. I’m thirty-six years old, stand five feet eleven in my socks, weigh one hundred and forty-two pounds stripped, and am, so to speak, naked at the moment and talking into the dark.” Ou do casal Warburton, as primeiras vítimas do protagonista: “The Warburtons are rich, but they don’t mix; they may not even care. She is an aging mouse, and he is the kind of man that you wouldn’t have liked at school. He has a bad skin and rasping voice and a fixed idea – lechery.” E do tipo de festas que os Warburtons costumam dar: “It was the kind of party where everybody has taken a shower and put on their best clothes, and where some old cook has been peeling mushrooms or picking the meat out of crab shells since daybreak.” Ou de sua mulher, Christina: “Now Christina is the kind of woman who, when she is asked by the alumnae secretary of her college to describe her status, gets dizzy thinking about the variety of her activities and interests. And what, on a given day, stretching a point here and there, does she have to do? Drive me to the train. Have the skis repaired. Book a tennis court. Buy the wine and groceries for the monthly dinner of the Société Gastronomique du Westchester Nord. Look up some definitions in Larousse. Attend a League of Women Voters symposium on sewers. Go to a full-dress lunch for Bobsie Neil’s aunt. Weed the garden. Iron a uniform for the part-time maid. Type a two and a half pages of her paper on the early novels of Henry James (…)”, e assim vamos tendo uma idéia não só de Christina, mas de toda uma sociedade em que circulam os protagonistas, seus amigos e a mente de Cheever.
É também particularmente tocante a maneira como o protagonista examina de longe sua mãe solitária (“I thought of her now without rebellion or anxiety – only with sorrow that all our exertions should have been rewarded with so little clear emotion, and that we could not drink a cup of tea together without stirring up all kinds of bitter feeling.”) ou suas próprias angústias, como ladrão amargurado (“I had committed adultery, and the word “adultery” had no force for me; I had been drunk, and the word “drunkenness’ had no extraordinary power. It was only “steal” and all its allied nouns, verbs, and adverbs that had the power to tyrannize over my nervous system, as if I had evolved, unconsciously, some doctrine wherein the act of theft took precedence over all other sins in the Decalogue and was a sign of moral death.”
Talvez o final da história, com a reconversão de Hake após o convite para voltar ao emprego que largara, seja um tanto fácil ou convenientemente feliz. Mas não altera o fato de que “The Housebreaker of Shady Hill” é um dos grandes contos de Cheever.

15.5.11

pastoral americana


Philip Roth é um grande narrador e um refinado comentarista da vida moderna. Seu “American Pastoral”, apesar de um pouco longo para a história que conta, é um belo livro, que relata o inferno vivido por uma família-modelo de classe média americana aparentemente a caminho do paraíso na terra e no céu. A superfície plácida do sonho americano esconde muitas vezes o fio da tragédia. “Pastoral Americana” é um título que ironiza e homenageia o romance clássico de Theodore Dreiser, “An American Tragedy”. 
O “Sueco”, Seymour Levov, é um judeu, que nasceu em bairro de classe média judia e prosperou nos esportes, como grande atleta, nos negócios, herdando a fábrica de luvas do pai, e no casamento, ou assim ele achava. Essa pastoral americana implode quando sua filha adorada e gaga resolve entrar para a guerrilha urbana nos EUA contra a Guerra do Vietnã e explode o correio local, matando um médico que lá passava. Daí para diante é um desenrolar de novas dores: vida clandestina da filha, novos atentados, internação da mulher, assédio de supostos companheiros da filha na guerrilha, personalidade intrusiva do pai-patriarca, agressividade do irmão, decadência da fábrica, adultério da mulher, reencontro com a filha, que vira uma “jaina” (seguidora do jainismo), tudo nas costas do inabalável e invulnerável “Sueco”. "Invulnerabilidade" que o leva ao câncer e à morte. O livro é um recontar circular, pelo colega de escola do irmão e fã, tornado escritor bem sucedido, da pastoral inicial e da tragédia final que fazem a vida do “Sueco”.
Roth é genial no trágico: cria situações sufocantes, como os encontros de Levov com os companheiros da filha que o chantageiam, o reencontro com a filha no quartinho sórdido, o jantar final com suas alfinetadas, crises e uma cena memorável de adultério. Ele só é maçante, e não poderia ser diferente, no banal: cansam um pouco as descrições das atividades do ramo das luvas de couro e as digressões sobre o concurso de miss da mulher do “Sueco”. Exasperam até, porque Roth leva ao exagero a técnica de criar suspense e curiosidade no leitor pela quebra da narrativa principal, para entremeá-la com reflexões do passado ou descrições exaustivas do presente.
Essa auto-indulgência se observa também em alguns diálogos. O tempo psicológico, com as reflexões dos personagens, atrasa o tempo das falas, e o que se ganha em densidade se perde em verossimilhança. Mas, do ponto de vista técnico, Roth usa brilhantemente a narrativa em estilo indireto livre (“free indirect style”), em que a voz em terceira pessoa se funde aos pensamentos e ações do protagonista. O texto é narrado em primeira pessoa por um escritor que  relata a vida do protagonista, o que na prática generaliza a terceira. Mas a terceira contamina-se pela voz em primeira pessoa do protagonista, fechando o ciclo. A técnica é sutil, provoca empatia com o personagem, embora não seja muito fácil criar identificação com um protagonista socialmente correto ao ponto da auto-anulação, como o “Sueco” Levov.
“Pastoral Americana” é um bom exemplar da inspirada biblioteca legada pelos escritores judeus norte-americanos do pós-Guerra. Se Roth não atingiu aqui a altura de um Bellow ou de um Singer, juntou mais um romance à sua lista de grandes livros.

13.5.11

el Sur

Sobre o seu conto “El Sur”, o último do livro “Ficciones”, Borges diz no prólogo: “es acaso mi mejor cuento; básteme prevenir que es posible leerlo como directa narración de hechos novelescos y también de otro modo”.
“El Sur” é a história de um funcionário de biblioteca pública, Juan Dahlmann, neto de um pastor evangélico de origem alemã e de um militar que morreu romanticamente, alvejado por índios de fronteira. Juan afeiçoa-se mais pelo passado do militar e tem veleidades de gaucho urbano, saudoso de um sul que nunca viveu. Um dia, retornando à sua casa, fere-se no rosto com uma aresta de porta e adoece, com septicemia. Será internado e o acompanharemos sem saber se o que experimenta – a reclusão no hospital, a alta, a viagem ao Sul, as imagens do trem, a refeição num bar, a provocação, o duelo que o reconcilia com sua idealização do gaucho – é de fato algo que vive ou apenas um sonho ou delírio de doente. Juan é um alter-ego de Borges, o burocrata fascinado pela mitologia gauchesca, pela virilidade dos duelos, mas que mal poderia empunhar a faca (“su esgrima no pasaba de una noción de que los golpes deben ir hacia arriba y con el filo para adentro”).
Borges nos intriga no conto por induzir-nos a esperar uma solução aparentemente surpreendente, mas no fundo previsível (a de que tudo não passa de um delírio, à espera de que Juan volte a si) ou uma solução engenhosa e labiríntica a seu estilo (um eventual corte na cara durante o duelo imaginado/rememorado fecharia o ciclo do delírio ao fazer-nos retornar ao momento original do ferimento do rosto na porta), mas acaba por negar-nos um e outro. Concebe um final aberto, de expectativa em relação tanto ao resultado do duelo como à sua natureza mesma, realidade ou alucinação.
O que mais fascina em "El Sur" é a elegância com que é escrito, com belas passagens, especialmente sobre a viagem de trem, com seu toque nostálgico e ligeiramente onírico. Começa na cidade, após a saída do hospital (“La ciudad, a las siete de la mañana, no había perdido ese aire de casa vieja que le infunde la noche”), e segue pelas imagens da janela do trem (“y todas esas cosas eran casuales, como sueños de la llanura. (...) Todo era vasto, pero al mismo tiempo era íntimo y, de alguna manera, secreto”).
Embora menos espetacular em sua fantasia do que outras histórias de Ficciones, “El Sur” tem uma delicadeza e um tom contido, de trama e de linguagem, que nem sempre se encontram nos contos mais imaginosos de Borges.

11.5.11

cidade de vidro

Não sei se esperava demais – pela crítica quase sempre favorável a Paul Auster e pela alegada ousadia do autor no tratamento dos romances policiais - mas o fato é que o li “City of Glass” (“Cidade de vidro”) com leve gosto de desilusão, com a sensação de uma expectativa traída. O livro é facilmente legível, traz algumas boas iéias sobre identidade e autoria, diverte às vezes, mas talvez não ofereça muito mais do que isso. A legibilidade de Auster parece derivar de pouco caso: a impressão é de um texto construído sem grande esmero, de partes artificialmente amarradas, com soluções inverossímeis.
Daniel Quinn é um escritor renomado que, após perder a mulher e o filho, resolve abandonar sua obra e identidade. Torna-se o escritor de romances policiais William Wilson, mais interessado em vagar por Nova York do que em cultivar círculos sociais ou literários. Atende o telefone um dia – é engano, chamada para o detetive Paul Auster – mas resolve assumir a identidade e a tarefa que pedem a Auster: proteger um ex-“menino-lobo”, ameaçado de morte pelo pai, um teólogo desequilibrado que isolara o filho do mundo e da linguagem. Para o pai, a mensagem de Deus lhe chegaria pela boca do filho, numa língua especial, caso o menino não fosse contaminado pela linguagem dos homens. Quinn/Wilson/Auster, não satisfeito com ter assumido várias identidades, passa também a viver o papel dos personagens de seu caso.
Caso que, na verdade, não se resolve. Mal se sabe o que aconteceu: apenas que o pai teólogo acabou se matando e que o filho perseguido desapareceu. Não interessa. O que interessa para Auster é construir um jogo de espelhos de identidades, em que o escritor já duplo assume traços das personalidades envolvidas na história. Acontece a Quinn o que Auster lembra ter acontecido a Quixote: o desejo de assumir o papel dos cavaleiros que renegava nos romances de cavalaria. O autor/personagem assume novas identidades, para desmoralizá-las ou não.
Auster joga também com a vertigem da autoria. Quem narra, em terceira pessoa, é um conhecido de Quinn e do personagem Paul Auster, que também aparece no livro (não é detetive, mas o próprio escritor). Ocorre que a figura do narrador, comentando a dificuldade de contar a história, só intervém ao final, como se até então a narrativa fosse neutra, irrefutável, e, a partir de então, enigmática, ardilosa, já que o quarto limpo com o caderno no meio não parece ter abrigado um Quinn recluso, isolado, mimético do menino-selvagem Peter Stillman. Não será, portanto, este aparente narrador o próprio Quinn, assumindo nova identidade, após ter forjado a história do Quinn ermitão? É um jogo vertiginoso, em que a identidade do autor passa de personagem a personagem (Auster, Quinn, Wilson, Auster, Stillman, narrador, Quinn…), e não parece ter fim ou sentido.
Será esta uma construção genial do autor? Uma história em que o escritor assume a personalidade daqueles a quem costuma dar vida, dos próprios personagens, numa reversão dos papéis tradicionais, em que o autor apenas dá vida aos personagens, sem tomá-las de volta?
Talvez sim, se Auster não tivesse de fazer tantos malabarismos, tantos esgarçamentos da narrativa, que retiram a consistência e a credibilidade da trama. Incomoda a freqüente inverossimilhança das soluções: o tempo irreal da entrevista com o menino Peter Stillman, por exemplo, ou a espreita meses a fio, no beco, quase sem sono ou comida, sem higiene alguma, como bicho, do até então razoavelmente normal escritor/detetive. Mais do que inverossímeis, soluções como esta soam tolas: bastaria que Quinn subisse ao apartamento do cliente para saber se tudo estava bem. Não é o que ocorre porque a espreita sem sentido é um artifício usado por Auster para justificar a posterior reclusão de seu personagem, que repete a experiência de seu cliente. A essa altura, Auster abandona a verossimilhança e cria um mundo de enigmas e perguntas sem resposta: o novo recluso é alimentado sabe-se lá por quem (uma mão invisível) e vai perdendo a luz do dia sabe-se lá como.
A verossimilhança é uma das bases do gênero romance e das principais formas de narrativa, do conto ao cinema. Ao suplantá-la é preciso estabelecer um corte radical com as expectativas que se têm ante uma trama tradicional, o que foi feito com brilho por autores como Lewis Carroll ou Kafka. O abandono apenas parcial e seletivo do rigor da verossimilhança pode parecer, em contrapartida, um arremedo, principalmente se é lido como um instrumento incidental do autor para adaptar a realidade da história às suas idéias. Soa falso quando o escritor renuncia à disciplina de construir uma aparência de realidade, a verossimilhança, somente nas situações e momentos em que não consegue estabelecer cursos da ação que sejam ao mesmo tempo consistentes com suas idéias e verossímeis como narrativa. Na literatura, talvez possam prosperar tanto a fidelidade à verossimilhança quanto a sua destruição deliberada, mas dificilmente o seu abandono parcial por incapacidade de mantê-la do começo ao fim.
Outro artificialismo na narrativa de “City of Glass” é a introdução de digressões eruditas. Os casos dos homens lobos, o Novo Mundo, as passagens bíblicas e as reflexões teológicas, as intenções de Quixote e Cervantes, tudo parece sobressair como um corpo estranho, como enxertos didáticos e injustificados dentro do romance. Também chamam a atenção alguns clichês: Quinn gosta de olhar as formas criadas na fumaça do cigarro pela luz que entrava; a mulher do cliente beija o suposto detetive para provar não ser frígida, como deixara transparecer seu marido; Quinn quer proteger o jovem Stillman como vingança pela morte de seu próprio filho. E a apelação, de gosto duvidoso: Quinn sentado ao vaso e recebendo uma chamada telefônica no momento em que um “turd” (um “cagalhão”) era excretado.
Ainda assim, Auster intriga. Menos pela história ou pelo estilo do que pelo impulso de fazer metaliteratura.

10.5.11

axolotl


“Axolotl” é um conto fantástico-existencial de Julio Cortázar. É a história de um homem que visita o Jardin des Plantes de Paris e entra numa espécie de transe de identificação com os axolotl que habitam o fundo do aquário. Pensei inicialmente que o elemento fantástico do conto começava com a própria invenção desse animal de nome asteca, mas os axolotl existem realmente, são uma forma híbrida de peixe e lagarto que passeia com patas de lagartixa e nada com ondulações de serpente. O fantástico está em que o visitante pensa descobrir o sentido profundo desses animais, que seriam encarnações mudas, mas conscientes, de algo mais secreto e misterioso – uma natureza humana aprisionada, um antigo domínio do mundo.
A graça do conto está na maneira como Cortázar o constrói. Narrada em primeira pessoa, a história vai revelando aos poucos a transformação viviva pelo narrador, que da observação dos animais passa à identificação e finalmente à encarnação de um axolotl. O narrador se transformará no axolotl que ele observa, ou seja, a descoberta do sentido profundo daquele animal é que o animal é o observador mesmo, que em dado momento passa a pensar e a olhar de dentro do aquário.
Cortázar faz isso de maneira sutil e elegante. Vai introduzindo frases que prenunciam a transformação, comentários que já indicam o pensamento de um axolotl humano: “Los axolotl se amontonaban en el mezquino y angosto (sólo yo puedo saber cuán angosto y mezquino) piso de piedra y musgo del acuario.” Prepara-nos para o final redentor, em que o pensamento humano, axolotlano, migra para dentro do aquário, enquanto aquele que observa de fora, o visitante de sempre, parece perder seu sentido e sua sensibilidade, como uma máscara sem rosto ou pensamento.
É inútil querer decifrar todos os possíveis sentidos por trás dessa idéia engenhosa de Cortázar. O conto vale pela idéia fantástica em si, pelo transe do visitante que encontra uma mensagem profunda no rosto triangular e nos olhos transparentes do axolotl: “Su mirada ciega, el diminuto disco de oro inexpresivo y sin embargo terriblemente lúcido, me penetraba como un mensaje: ‘Sálvanos, sálvanos.’ Me sorprendia musitando palabras de consuelo, transmitiendo pueriles esperanzas.”

8.5.11

Funes, el memorioso


A segunda parte do livro “Ficciones”, de Borges, chama-se “Artificios” (1944). Começa com um conto ironicamente memorável, “Funes el memorioso”.
É a história do uruguaio Irineo Funes, que o narrador não viu “más de tres veces”, “la última en 1887...”. No primeiro contato, soube que era um rapaz “mentado por algunas rarezas como la de no darse con nadie y la de saber siempre la hora, como el reloj.” De volta a Fray Bentos, anos depois, foi informado de que “lo había volteado un redemón en la estancia de San Francisco, y que había quedado tullido (“aleijado”), sin esperanza.” O rapaz vivia recluso e, ao saber que o narrador estudava latim e recebeu alguns livros, pediu-lhe emprestado “cualquiera de los volúmenes”, acompanhado de um dicionário “para la buena inteligencia del texto original, porque todavía ignoro el latín.” O último e mais importante dos encontros entre os dois ocorre quando o narrador vai à casa de Funes para reaver os livros, pois, com a notícia da morte do pai, partiria de Fray Bentos de volta à Argentina. Foi nessa ocasião que Funes contou sua história.

“Me dijo que antes de esa tarde lluviosa en que lo volteó el azulejo, él había sido lo que son todos los cristianos: un ciego, un sordo, un abombado, un desmemoriado. (...) Al caer, perdió el conocimiento; cuando lo recobró, el presente era casi intolerable de tan rico y tan nítido, y también las memorias más antiguas y más triviales. Poco después, averiguó que estaba tullido. El hecho apenas le interesó. Razonó (sintió) que la inmovilidad era un precio mínimo. Ahora su percepción y su memoria eran infalibles.”

Funes deu-lhe exemplos do que recordava, muitos exemplos, como as muitas caras de um morto em um longo velório: “sabía las formas de las nubes australes del amanecer del treinta de abril de mil ochocientos ochenta y dos y podía comparalas en el recuerdo con las vetas de un libro en pasta española que sólo había mirado una vez y con las líneas de la espuma que un remo levantó en el Río Negro la víspera de la acción del Quebracho. (...) Me dijo: Más recuerdos tengo yo solo que los que habrán tenido todos los hombres desde que el mundo es mundo.”
Essa idéia fantástica dá a Borges a oportunidade de deflagrar, como numa vertigem, a discussão de outras idéias e fantasias geniais. Discorre sobre um sistema de numeração inventado por Funes, em que cada número seria representado por uma palavra distinta, sem qualquer relação lógica com as anteriores; sobre um idioma em que “cada cosa individual, cada piedra, cada pájaro y cada rama tuviera un nombre propio” (pareceu muito geral a Funes, já que ele não só recordava cada folha de árvore, de cada monte, mas também cada uma das vezes em que a havia percebido ou imaginado); sobre a idéia de que “talvez todos sabemos profundamente que somos inmortales y que tarde o temprano, todo hombre hará todas las cosas y sabrá todo.”
O narrador despede-se de Ireneo Funes depois da aurora, tendo visto finalmente o seu rosto, que lhe pareceu “monumental como el bronce, más antiguo que Egipto, anterior a las profecías y a las pirámides. Pensé que cada una de mis palabras (que cada uno de mis gestos) perduraría en su implacable memoria; me entorpeció el temor de multiplicar ademanes inútiles.”   
Funes é um personagem extraordinário, metáfora da existência, do conhecimento total e da ignorância, afinal, como diz Borges, “pensar es olvidar diferencias, es generalizar, abstraer.” Impressiona não só pela memória total, mas pelo sentido total, que tudo capta, nada deixa escapar. Como personagem, Funes é o contraponto da biblioteca da Babel, que também a tudo abarca e compreende. Eis a história do curioso uruguaio Irineo.

7.5.11

el desbarrancadero


Se a função da literatura fosse a de edificar, o escritor colombiano Fernando Vallejo seria um praticante da anti-literatura. Seu romance com tintas autobiográficas “El Desbarrancadero” mistura uma brilhante violência verbal com um anti-humanismo militante que revolta e encanta ao mesmo tempo.
Vallejo nasceu em Medellín, e a primeira pergunta que vem à cabeça é se alguma outra cidade do mundo poderia produzir um escritor tão desencantado da vida e da humanidade. Medellín era a cidade mais violenta do mundo, com uma taxa de 140 homicídios por ano para cada cem mil habitantes (São Paulo, com toda sua violência, chegava a apenas 50). Nesse ambiente onde a vida é tão barata, onde é "mais fácil contratar um assassino de aluguel (“el sicario”) do que uma babá", Vallejo nasceu e cresceu, cercado de muitos irmãos em casa e de tiros e corpos pela rua.
Se em “La virgen de los sicarios”, Vallejo falava do inferno de sua cidade, neste “El desbarrancadero” ele conta as experiências de sofrimento e morte dentro de sua própria casa. É difícil saber o que há de verdadeiramente autobiográfico e de ficção no livro, mas o fato é que soa como um relato confessional de Vallejo a história em primeira pessoa de sua relação com a mãe fertilíssima (vinte filhos) e egocêntrica, com o pai sensível e estóico ao mesmo tempo, com o irmão aidético que ele ama como a ninguém mais e que sempre foi seu maior companheiro nas investidas homossexuais para aliciar as “bellezas” (os rapazes bonitos). A fotografia na capa da edição argentina mostra o próprio Fernando e o irmão abraçados quando tinham 4 e 3 anos, e Vallejo chega a fazer referencia à essa foto ao longo do texto.
O livro é estruturado em torno da agonia e da morte dessas duas figuras maiores e mais amadas na vida do autor, o pai e o irmão, o que corresponde aos dois momentos em que o narrador/Vallejo retorna do México, onde vive, para reencontrar a casa de Medellín, o ego da “Loca” (a mãe) e o próprio fantasma da morte, que cruza à sua frente e dialoga abertamente com ele. Vallejo tenta convencer-nos de que a morte em si é o elemento central do livro, e ele mesmo, à certa altura, com o humor de um Brás Cubas, diz-nos que é um narrador já morto, que morrera ao telefone justamente no momento em que soube da morte do irmão, moribundo há tanto tempo: “Me encontraron con el aparato en la mano, azuloso, translúcido, rígido, cual un San José estofado tallado en madera. Como no alcancé a colgar, la llamada desde Medellín le costó a Carlos (outro irmão), que fue el que la hizo, lo que valía esa casa. Bueno, dicen, yo no sé, ni me importa. A los muertos nos importa un pito lo que cuestan o no cuestan las casas.”; “Y en ese instante, con el teléfono en la mano, me morí. Colombia es un país afortunado. Tiene un escritor único. Uno que escribe muerto.”
É no seu ir e vir entre a cidade do México e Medellín, no reaparecimento das lembranças, no reencontro com os pais e os irmãos, que Vallejo vai destilando seu ódio, suas ilimitadas diatribes contra tudo e contra todos. Impreca contra a Colômbia, os presidentes, a Igreja, o México (país das propinas e da corrupção), a Nicarágua (“un país de borrachos y de bueyes que se agota en Rubén Darío, el poeta”), o Papa, Deus, Cristo (“imbécil que volviendo la otra mejilla abolió de un sopapo la ley de tálion e instauró la impunidad sobre la faz de la tierra”), a medicina, os negros (“perezosos por naturaleza, para lo único que sirven (y no siempre) es para el sexo”), as mães (“No sé por que la gente se avergüenza tanto de las enfermedades y jamás de sus madres. (...) Una madre vale otra madre y se acabó. Para arriba o para abajo, para adelante o para atrás, esto es una sola y la misma mierda.”), as laranjas, a reprodução humana e o crescimento demográfico, o homem (“En todo niño hay en potencia un hombre, un ser malvado. El hombre nace malo y la sociedad lo empeora.”), a família, a vida (“Que fumara, que tomara, que fornicara, que viviera que para eso estaba. O qué! Vá a dejar uno de vivir por cuidar de um sida? La vida es un sida.”)
A imprecação é a marca, o cacoete, o estilo de Vallejo, aparecendo a cada duas frases. A agressividade é tanto mais eficaz e corrosiva porque misturada ao humor: “Detesto la samba. La samba es lo más feo que parió la tierra después de Wojtyla, el cura Papa, esta alimaña, gusano blanco viscoso, tortusoso, engañoso.” O humor não dilui a desilusão e a tragédia; torna-as mais fundas. Nem o irmão Darío, tão amado, lhe escapa: “Los horrores que me hizo a mí no tienen cuento. Cuando el eminentíssimo doctor Barraquer me transplanto una córnea, Darío de un guitarrazo en la cabeza me desprendió la retina!”
O ódio é para quase tudo, o amor para poucos. Além do pai e do irmão já mortos, só ama os animais, as ratas do prédio de Nova York onde trabalhou, os cães sacrificados de outro irmão: “Amo a los animales: a los perros, a los caballos, a las vacas, a las ratas, y el brillo helado de las serpientes cuando las toco me calienta el alma. En cuanto a los que se llaman a si mismos “racionales” – blancos, negros, verdes o amarillos – ah, eso ya sí es otro cantar, mejor dejemos así la cosa.” Como em Coetzee, para Vallejo o humano já está fundamentalmente perdido; resta dar consolo aos animais que sofrem apesar de sua pureza.
Vallejo faz uso de um estilo solto, circular, vai e volta no tempo, nas lembranças, conversa com o leitor, com a própria editora/revisora, para que não o censure em suas diatribes contra figuras e valores sagrados. Há no que escreve uma curiosa mistura de iconoclastia e moralismo, um ataque a valores tradicionais e humanistas, e ao mesmo tempo uma condenação à corrupção, à mentira, aos desmandos, à ambição, à venalidade dos políticos, do clero, do homem. Talvez poucos autores consigam alcançar esse paroxismo da violência verbal sem perder o encanto literário. Depois do realismo mágico de García Márquez, a Colômbia nos dá esse ultra-realismo herético e diabólico de Vallejo.

5.5.11

canção da tocha

“Torch Song” ("Canção da tocha" ou "canção de amor") é outro conto sublime de Cheever. É a história de duas almas de Ohio perdidas, cada uma a seu canto, com contatos bissextos, na solidão e na inconstância da Nova York dos anos trinta, quarenta e cinqüenta. Cheever não narra a vida dos dois. Dá-nos fragmentos de ambas por meio de flashes, por meio dos encontros, quase sempre ocasionais, que unem os dois amigos distantes, Jack Lorey e Joan Harris. Temos a visão de duas linhas paralelas, que cortam a mesma cidade, sofrem a mesma instabilidade emocional e se encontram de quando em quando, como se fosse necessário contabilizar perdas, atualizar decepções. Jack parece colecionar divórcios, e Joan, atrair e agüentar estoicamente, com um sorriso, parceiros exploradores e sórdidos. A impressão do começo é de que se unirão ao final, mas, ao longo do tempo, em lugar de comover-se com a conterrânea que sofre nas mãos dos homens, Jack, desempregado, pobre e doente, rejeita violentamente a ajuda e a companhia de Joan, que, numa espécie de revelação, lhe parece um anjo da morte. É um final que mais surpreende do que agrada, mas o conto como um todo e a maneira sutil, sofisticada, às vezes brilhante, como Cheever nos fala desses personagens e desse mundo novaiorquino de desilusão, dão um enorme prazer ao leitor.
A descrição do comportamento de um dos parceiros infelizes de Joan, o bêbado Hugh Bascomb (cujo sobrenome é, aliás, o mesmo de um escritor em outro conto de Cheever, “The World of Apples”), durante uma festa na casa de Joan, é simplismente antológica. Cheever ainda arremata com um comentário sobre a resignação dela: “Her voice remained soft, and her manner, unlike that of those Christian women who in the face of disaster can summon new and formidable sources of composure, seemed genuinely simple.”

os Maias

“Os Maias” é, entre tantas coisas, um passar de olhos afetuoso e crítico sobre Portugal, talvez mais melancolicamente crítico do que abertamente afetuoso. Há sim um carinho pelas coisas natais, um elogio ligeiro da espontaneidade, uma ternura por algumas paisagens, como a de Sintra, muito mais do que a de uma Lisboa tão presente, mas o que ressalta no livro é o tom de auto-ironia, uma certa vergonha desavergonhada dos vexames locais, dos arroubos sentimentais, das brigas patéticas, da bagunça no meio público, da indolência, da desordem, sempre contra o pano de fundo das civilizações supostamente mais altas, da fleugma do estrangeiro, dos setentrionais, em especial dos ingleses, personificados em tantas figuras, como Craft, Clifford, a governanta Sara, e mesmo por esse admirador da Inglattera onde viveu, que é o avô Afonso da Maia, com todo o seu estoicismo e urbanidade.

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A descrição inicial que Eça de Queiroz faz do Ramalhete, residência dos Maias em Lisboa, é inegavelmente elegante, mas soa hoje, já quase um século e meio depois, um tanto “literária” demais, com muita adjetivação, algumas metáforas que perderam força e sobretudo uma atenção maior ao dizer do que ao dito. Está ali o gênio, mas um tanto datado nesse tipo de descrição. Há melhores metáforas na descrição dos Olivais, residência de campo que Carlos comprou de Craft para abrigar Maria Eduarda.
De qualquer modo, muito melhor é o reencontro final com o Ramalhete, quando Carlos Eduardo da Maia e João da Ega retornam, cheios de melancolia, apenas para uma última espiada no casarão fechado. Quando se trata da descrição de ambientes ou lugares, Eça brilha mais na melancolia do que na glória.

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O tema central do começo de “Os Maias” é a decepção de um pai ante o filho. Afonso da Maia vê em Pedro, desde a infância, um filho fraco, dependente, inseguro de si, e não o perdoará por isso, especialmente após o casamento de Pedro com Maria, a bela filha de um ex-traficante de escravos açoriano. O desprezo de classe pelo casamento inadequado se junta às expectativas frustradas ante um filho que não estava à altura do pai, orgulhoso e inflexível no seu amor condicional. É muita bonita a cena da volta do filho à casa paterna, depois da traição da mulher. Afonso decepciona-se uma vez mais e, após o suicídio de Pedro, irá consolar-se com a vivacidade do neto, Carlos Eduardo, que – sente com as próprias mãos de avô – restauraria a virilidade, a dignidade dos Maias. É muito triste a decepção final de Afonso com o destino implacável, que também arrastará Carlos Eduardo a uma paixão impossível.

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Afonso da Maia, sobre a educação do neto, Carlos, a seu cargo:
“O latim era um luxo de erudito. Nada mais absurdo que começar a ensinar uma criança numa língua morta quem foi Fábio, rei dos Sabinos, o caso dos Gracos, e outros negócios de uma nação extinta, deixando-o ao mesmo tempo sem saber o que é a chuva que o molha, como se faz o pão que come, e todas as outras cousas do universo em que vive...
            -- Mas enfim os clássicos – arriscou timidamente o abade.
            -- Qual clássicos! O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessário ser são, e ser forte. Toda a educação consiste nisso: criar a saúde, a força e seus hábitos; desenvolver exclusivamente o animal, armá-lo de uma grande superioridade física. Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois... A alma é outro luxo. É um luxo de gente grande...”

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Eça, sobre Carlos Eduardo da Maia, ou sobre tantos de nós:
“... suas ambições flutuavam, intensas e vagas; ora pensava numa clínica; ora na composição maciça de um livro iniciador; algumas vezes, em experiências fisiológicas, pacientes e reveladoras... Sentia em si, ou supunha sentir, o tumulto de uma força, sem lhe discernir a linha de aplicação. “Alguma cousa de brilhante”, como ele dizia; e isto para ele, homem de luxo e homem de estudo, significava um conjunto de representação social e de atividade científica; o remexer profundo de idéias entre as influências delicadas da riqueza; os elevados vagares da filosofia, entremeados com requintes de esporte e de gosto; um Claude Bernard, que fosse também um Morny... No fundo era um diletante.”

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E sobre João Ega, seu alter-ego, ou melhor, sobre “O Livro do Ega”:
“O Livro do Ega! Fora em Coimbra, nos dous últimos anos, que ele começara a falar do seu livro, contando o plano, soltando títulos de capítulos, citando pelos cafés frases de grande sonoridade. E entre os amigos do Ega discutia-se já o livro do Ega como devendo iniciar, pela forma e pela idéia, uma evolução literária. (...) Bacharéis, contemporâneos ou seus condiscípulos, tinham levado de Coimbra, espalhado pelas províncias e pelas ilhas a fama do livro do Ega. Já de qualquer modo essa notícia chegara ao Brasil... E sentindo esta ansiosa expectiativa em torno do seu livro – o Ega decidira-se enfim a escrevê-lo.”

Deveria chamar-se “Memórias de um Átomo”, “tinha a forma de autobiografia” e seria “uma epopéia em prosa”, “dando sobre episódios simbólicos, a história das grandes fases do Universo e da Humanidade”. A ironia de Eça...

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Que delícia a briga de impropérios e sopapos – mais impropérios que sopapos, é verdade – entre Ega e Alencar. De um lado, o jovem realista, iconoclasta; de outro, o velho lírico romântico. Mais deliciosa ainda, e a nós tão familiar, é a rápida reconciliação, calorosa e emotiva. E Craft, o inglês, só observa: “Já presenciara, mais vezes, duas literaturas rivais engalfinhando-se, rolando no chão, num latir de injúrias; a torpeza do Alencar sobre a irmã do outro fazia parte dos costumes da crítica em Portugal (...).”

“O autor de Elvira deu um passo, o autor das Memórias de um Átomo estendeu a mão; mas o primeiro aperto foi guache e mole. Então, Alencar, generoso e rasgado, exclamou que entre ele e o Ega não devia ficar uma nuvem! Tinha-se excedido... Fora o seu desgraçado gênio, esse calor de sangue, que durante toda a existência só lhe trouxe lágrimas! E ali declarava bem alto que Ana Craveiro era uma santa! Tinha-a a conhecido em Marco de Canaveses, em casa dos Peixotos... Como esposa, como mãe, Ana Craveiro era impecável. E reconhecia, no fundo da alma, que o Craveiro tinha carradas de talentos!....
Encheu um copo de Champagne, ergueu-o alto, diante do Ega, como um cálice de altar:
            -- À tua, João!
Ega, generoso também, respondeu:
            -- À tua, Tomás!
Abraçaram-se. Alencar jurou que ainda na véspera, em casa de D. Joana Coutinho, ele dissera que não conhecia ninguém mais cintilante que o Ega! Ega afirmou logo que em poemas nenhuns corrria, como nos do Alencar, uma tão bela veia lírica. Apertaram-se outra vez, com palmadas pelos ombros. Trataram-se de irmãos na arte, trataram-se de gênios!...”

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Mas o diálogo, e a vileza que ali está, não fazem justiça a este personagem extraordinário que é o poeta Alencar, tão intenso em sua relação com a vida, os amigos e a literatura. Basta citar uma passagem em que se exalta de modo tocante:

“-- Sempre queria que ele provasse este bacalhau! Já que me não aprecia os versos, havia de me apreciar o cozinhado, que isto é um bacalhau de artista em toda a parte!... Noutro dia fi-lo lá em casa dos meus Cohens; e a Raquel, coitadinha, veio para mim e abraçou-me... Isto, filhos, a poesia e a cozinha são irmãs! Vejam vocês Alexandre Dumas... Dirão vocês que o pai Dumas não é um poeta... E então, D’Artagnan é um poema... É a faísca, é a fantasia, é a inspiração, é o sonho, é o arroubo! Então, poço, já vêem vocês, que é poeta!... Pois vocês hão de vir um dia desses jantar comigo, e há de vir o Ega, hei de vos arranjar umas perdizes à espanhola, que vos hão de nascer castanholas nos dedos!... Eu, palavra, gosto do Ega! Lá essas cousas de realismo e romantismo, histórias... Um lírio é tão natural como um percevejo... Uns preferem fedor de sarjeta; perfeitamente, destapa-se o cano público... Eu prefiro pós de marechala num seio branco; a mim o seio, e, lá vai à vossa. O que se quer, é coração. E o Ega tem-no. E tem faísca, tem rasgo, tem estilo... Pois, assim, é que eles se querem, e, lá vai à saúde do Ega!”
Pousou o copo, passou a mão pelos bigodes, e rosnou mais baixo:
            -- E, se aqueles ingleses continuam a embasbacar para mim, vai-lhes um copo na cara, e é aqui um vendaval, que há de a Grã-Bretanha ficar sabendo o que é um poeta português!...”

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Afonso da Maia, sobre o português: “O português nunca pode ser homem de idéias, por causa da paixão da forma. A sua mania é fazer belas frases, ver-lhes o brilho, sentir-lhes a música. Se for necessário falsear a idéia, deixá-la incompleta, exagerá-la, para a frase ganhar em beleza, o desgraçado não hesita... Vá-se pela água abaixo o pensamento, mas salve-se a bela frase.”
O neto, Carlos da Maia, contesta: “(...) E resta saber por fim se o estilo não é uma disciplina do pensamento. Em verso, o avô sabe, é muitas vezes a necessidade de uma rima que produz a originalidade de uma imagem... E quantas vezes o esforço para completar bem a cadência de uma frase não poderá trazer desenvolvimentos novos e inesperados de uma idéia.. Viva a bela frase!”

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A menção ao sexo entre Carlos da Maia e a Condessa de Gouvarinho dentro de um coupé de praça nos faz lembrar a relação de Emma Bovary com seu amante Léon dentro de uma carruagem a toda carreira na Rouen de Flaubert. Mas Eça não quer, trinta anos depois, copiar o francês. Trata-se apenas de uma evocação, uma lembrança ligeira, que talvez seja uma homenagem a Flaubert e à cena marcante de seu romance.
Já sobre Victor Hugo, o que fica é o comentário do senhor Guimarães, quando indagado sobre o escritor francês por João da Ega:
            “-- Esse, meu caro senhor, não é um homem, é um mundo!”

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Apesar do humor, da vivacidade, da aparente leveza, Eça nos oferece, com “Os Maias”, uma visão desiludida e fatalista de Portugal, da vida em família, da vida. Por trás da elegância e da graça dos personagens, há o fio condutor da tragédia, recorrente, que se abate sobre Afonso, sobre Pedro, sobre Carlos, três gerações de uma mesma família. Eça ironiza a si mesmo com o elemento folhetinesco do livro, a paixão entre os dois Eduardos, Carlos e Maria, entre os dois irmãos que não se sabiam irmãos: “E agora, pouco a pouco, subia nele uma incredulidade, contra esta catástrofe de dramalhão.” Tudo está preparado para o final agridoce, mais amargo que doce na verdade, sintetizado na frase de João da Ega: “Falhamos a vida, menino!” É um final bonito e melancólico, como o livro todo.
Portugal também é visto com lentes da desilusão, uma autocrítica ligeiramente amarga. Fatalismo que está um pouco na alma portuguesa, como na dor do fado.
Pela construção – que contrapõe o peso da vida de Pedro à leveza da vida de Carlos –, pela elegância do estilo, “Os Maias” não é senão um grande romance. Se há algo que reprovar, são características próprias do período, do romance longo de então, à Balzac: talvez um excesso de personagens, a convivência com algumas figuras, como Taveira, Siqueira, que mal aparecem, só com um traço, uma referência, um gesto, dizem algo rápido e logo somem, deixando-nos a sensação de casa abarrotada em dia de festa, em que não conhecemos ou não nos interessamos por muitos dos convidados. Mesmo no Ramalhete, há pouco espaço para tanta gente.
A grande lição de Eça talvez seja o mot juste, a graça, a elegância do escrever, que pode transformar uma banalidade em algo sublime. Eça é um mestre na pintura de reuniões sociais, na criação de tiradas, em seu humor fino e iconoclasta. É menos genial no retrato do amor: basta ver como são convencionais a declaração e o primeiro beijo entre Carlos e Maria Eduarda. 

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O alter-ego de Eça é, naturalmente, João da Ega, esse personagem efervescente. Espirituoso, brilhante, corrosivo, Ega tem todo o potencial para o gênio e a glória, mas dispersa-se na indolência e no prazer da vida, afinal tem mais vocação para a crítica cortante do que para a criação laboriosa. Nada escapa à sua iconoclastia: ele pode até defender a escravatura. É um talento perdido, como o de Carlos também, indeciso entre a medicina e as letras, entre o berço e o trabalho. Quando lhe perguntam por que não entra para a diplomacia portuguesa, Ega responde: “Por fim, em que consistia a diplomacia portuguesa? Numa outra forma da ociosidade, passada no estrangeiro, com o sentimento constante da própria insignificância. Antes o Chiado!”
Esse Ega muito mais emotivo que racional está na paixão pela Cohen, nas brigas com Alencar, na amizade por Carlos. É o que explica sua reação um tanto carola, nada iconoclasta, quando sabe do incesto inconsciente entre Carlos e Maria.
Fica aqui uma passagem que dá bem uma idéia de João da Ega:

“(...) Depois, no corredor, confessou a Carlos que, antes de ir ao Espanhol, queria correr ao Fillon, ao fotógrafo, ver se podia tirar um bonito retrato.
            -- Um retrato?
-- Uma surpresa que tem de ir daqui a três dias para Celorico, para o dia de anos de uma criaturinha que me adoçou o exílio.
            -- Oh, Ega!
            -- É horroroso, mas então? É a filha do Padre Correia, filha conhecida como tal; além disso, casada com um proprietário rico da vizinhança, reacionário odioso... De modo que, bem vês, esta dupla peça a pregar à Religião e à Propriedade...
            -- Ah! Nesse caso...
            -- Ninguém deve eximir, amigo, aos seus deveres democráticos!”

uma descida no Maelstron

“A Descent into the Maelström” é um conto de estilo fantástico de Edgar Allen Poe. Conta a visita do narrador a um pico na costa norueguesa, província de Nordland, de onde se avista um redemoinho de proporções gigantescas (uma milha de diâmetro), chamado Moskoe-ström, e a história do guia do narrador, um pescador que já havia enfrentado e sobrevivido ao redemoinho. O que há de curioso e original no conto é a construção da história em torno de um fenômeno natural ao mesmo tempo grandioso e permanente, como um furação com endereço próprio ou um vulcão em erupção ininterrupta.
O pescador e seus dois irmãos sempre pescavam nas proximidades do redemoinho (área mais rica em cardumes), mas só cruzavam seu perímetro nos breves intervalos de inatividade, que duravam cerca de quarenta minutos. No dia em que não foram capazes de atravessá-lo no tempo previsto – por conta de um furacão que parece ter vindo visitar o redemoinho... – foram engolidos pelas águas e começaram a girar aceleradamente em direção ao vértice do Moskoe-ström, de onde nada saía com vida. O pescador conta toda a agonia da descida, a morte dos irmãos, a perda do barco, e a inesperada salvação, ao prender-se a um objeto cilíndrico, os que mais custavam a afundar em direção ao centro.
Mais do que a aventura em si do pescador, o misto de pavor e admiração com que foi tragado pelas águas, a maneira como sobreviveu, e o impacto que o tornou imediatamente velho e grisalho, o que agrada no conto são as descrições da costa norueguesa e do próprio redemoinho. Como o impacto que o narrador tem ao avistar de cima o círculo imenso e incontrolável:
“The edge of the whirl was represented by a broad belt of gleaming spray; but no particle of this slipped into the mouth of the terrific tunnel, whose interior, as far as the eye could fathom it, was a smooth, shining, and jet-black wall of water, inclined to the horizon at an angle of some forty-five degrees, speeding dizzily round and round with a swaying and sweltering motion, and sending forth to the winds an appalling voice, half shriek, half roar, such as not even the mighty cataract of Niagara ever lifts up its agony to Heaven.”

4.5.11

no caminho de Swann


Não é trivial escrever sobre uma obra complexa como "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, procurar identificar o sublime e o novo, e ao mesmo tempo ter a consciência de que tanto já foi dito e nem por isso será possível esgotar sua riqueza.
Para Proust não é só a literatura que é uma criação do intelecto. Também a vida é uma espécie de representação mental, apreendida e criada pelos sentidos, pelas idéias, pela memória. Como diz Marcel, o narrador de “Du Côté de Chez Swann” (“No caminho de Swann”, o primeiro livro da Recherche), “celle de toutes les diverses vies que nous menons parallèlement, qui est la plus pleine de péripéties, la plus riche en épisodes, je veux dire la vie intellectuelle”. A realidade nunca parece ser vivida diretamente, mas sim por meio da interpretação que dela fazemos. As sensações e as reminiscências estão acima dos fatos, da cronologia usual, do aparentemente real e importante: a morte da tia Léonie pode ser contada “en passant”, como lembrança dos passeios de outono, ao passo que seus gestos insignificantes podem ser esquadrinhados como jóias, pelas marcas que deixaram na memória. O efêmero e a lembrança constituem realidades.
Se para Oscar Wilde a vida deve ser vivida como arte, para Proust a vida é apreendida por meio da arte. A arte é um espécie de código de leitura e de relação com a vida, sua realidade última. O Marcel narrador descreve seus personagens por meio de quadros, como a duquesa de Guermantes, enquanto Swann acha Odette bonita quando a vê como personificação de uma figura de Boticelli. Há em Marcel algo de Madame Bovary, no sentido de que a interação com a vida é intermediada por modelos, ou seja, é preciso uma idealização prévia, uma chancela da arte, para se amar o real. Por si só, Odette não desperta o desejo carnal de Swann; terá de intervir a pintura. A realidade decepciona, mas a imaginação e a memória fazem-na mais atraente.
Nabokov vê razões mais concretas e sexuais para a maneira como Proust constrói seus personagens. As pinturas como modelos de leitura da vida servem para esconder seu desejo pelo corpo masculino e sua indiferença pelo feminino. A evocação das obras, evitando a descrição direta, mascarava sua homossexualidade e, portanto, sua inabilidade em descrever os encantos de uma mulher.
Independentemente das razões do autor, o fato é que a arte “concebe” a vida, e não o inverso. O exemplo mais contundente desta inversão é o amor de Swann por Odette, que deriva em grande medida do estado amoroso proporcionado pela frase musical que ele adora e que reaparecerá diversas vezes. O poder da arte é tal que somente ela pode redimir a morte e o nada, como na belíssima passagem sobre o poder encantatório da música: “Peut-être est-ce le néant qui est le vrai et toute notre rêve est-il inexistant, mais alors nous sentons qu’il faudra que ces phrases musicales, ces notions qui existent par rapport à lui, ne soient rien non plus. Nous périrons, mais nous avons pour otages ces captives divines qui suivront notre chance. Et la mort avec elles a quelque chose de moins amer, de moins inglorieux, peut-être de moins probable.”

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O tema central da “Recherche” é o tempo. O tempo como matéria, não-cronológico. Como diz Nabokov, “the whole is a treasure hunt where the treasure is time and the hiding place the past.” Daí a importância da memória como fonte direta dos sentimentos, quase sempre induzida pelos sentidos e o contato com um objeto, como se um espírito do passado habitasse as coisas e pudesse ser recapturado. Os momentos mais intensos dos personagens são aqueles em que uma sensação se tranforma em sentimento, em que um estímulo sensorial desperta uma lembrança, uma imagem, como a madeleine de Marcel ou o tema musical de Swann. A memória não é apenas o motor da arte; é o substrato da realidade. Não surpreende que o quarto de infância de Marcel seja uma plataforma para o mundo vivido, o começo do mundo.
Esse mundo mental, auto-referente, vai além das imagens. É também o mundo das palavras. O nome do país, da cidade, é a própria fonte do lugar, melhor e mais vivo do que o país ou a cidade reais. Não há por que ir ao Champs Elysées se o Champs Elysées não foi lido nos livros, se não houve seu cultivo prévio por meio da imaginação.
Há muitos outros temas recorrentes em Proust. Ele disseca o amor maduro e o amor jovem, o ciúme como o duplo do prazer. Se “Combray” é um tratado sobre a memória, a infância e os sentidos, “Um amor de Swann” é um tratado sobre o amor e o ciúme. Proust é um obcecado do amor não correspondido. A base é o amor furtivo da mãe, representado pela angústia do pequeno Marcel à espera do beijo de boa noite. À maneira de Freud, Proust trata da questão da transferência do amor da mãe para outros. Tanto em Swann como em Marcel, a fugacidade do amor materno fundador será refletida na inapreensão do amor maduro, respectivamente de Gilberte e Albertine, em ciclos recorrentes de amor e ciúme, como temas musicais que se alteram um pouco, mas sempre retornam na sua essência.
Os personagens em Proust são vistos de múltiplos ângulos, de vários olhares, Odette, Swann, Vinteuil. Nunca são apreendidos de forma direta ou plena. A imagem social de uma pessoa é uma ilusão formada a partir de uma meia-memória, um meio-esquecimento (mi-mémoire, mi-oubli). Vemos os outros sempre por meio de outros. Talvez por isso alguns deles sejam memoráveis: a avó doce e debochada pela família; a tia-avó Léonie, esperando uma tragédia que a tornasse heroína; Françoise e sua mesquinharia; Legrandin e seu cretinismo; M. Vinteuil apequenado socialmente pela escolha sexual da filha.
Embora o retrato dos personagens seja quase sempre um sofisticado trabalho de construção psicológica, Proust também pode ser cáustico ao ponto da caricatura. Edmund Wilson atribui essa tendência à forte influência da obra de Dickens sobre Proust, que não escondia sua admiração pela literatura inglesa e norte-americana de maneira geral. Caricaturais não são apenas os Verdurin, que servem como contraponto para acentuar a angústia e a humilhação de Swann, mas personagens como Odette, cujos gostos risíveis traem certa misoginia do autor. Mesmo em seu momento cáustico e caricatural, Proust nunca deixa de ser brilhante como retratista.
E dessa genialidade ficam cenas inesquecíveis: a aflição inicial pelo beijo da mãe, a espera da camponesa, o encontro com o tio da prostituta (Odette), a visão da duquesa de verruga, os jantares de Verdurin, a angústia de Swann na noite, o seu amor torto (“l’idéal est inaccessible, le bonheur, médiocre”) e a sua desgraça por ter desperdiçado a vida ao amar quem não merecia, o sombrio no concerto na casa da Marquesa de Saint-Euverte, a aproximação de Gilberte e Marcel, o presente, o chamar-se pelo primeiro nome. São todas cenas de puro virtuosismo. Proust pode abdicar do encadeamento linear dos fatos, do suspense e da atração do leitor pela mera expectativa do acontecimento. Sua narrativa é circular, anti-climática e por isso ainda mais genial. O que prende não é o suspense, mas o sublime. Sua prosa reflete uma combinação de sensibilidade estética e de sofisticação de análise poucas vezes igualada na literatura.

o mundo das maçãs

Conto genial é “The World of Apples”, de John Cheever. É da sua fase mais madura, dos anos 70, fase da qual ele não se envergonha, ao contrário dos primeiros contos, que lhe parecem – só a ele – ingênuos e provincianos. Como Cheever diz no prefácio da sua coletânea de contos, “a writer can be seen clumsily learning to walk, to tie his necktie, to make love, and to eat his peas off a fork.”
“O mundo das maçãs” é o título da obra principal do protagonista, um velho poeta norte-americano de renome que vive numa villa em Monte Carbone, ao sul de Roma. O conto começa de forma irreverente e irônica, sem fazer justiça, como se verá ao longo da história, à dignidade e à grandeza do poeta: “Asa Bascomb, the old laureate, wandered around his work house or study – he had never been able to settle on a name for a house where one wrote poetry – swatting hornets with a copy of La Stampa and wondering why he had never been given the Nobel Prize.”
Cheever nos mostra primeiro a vida de Bascomb, em especial sua solidão, longe da mulher e dos amigos mortos, perto dos fãs que o visitam. “Of the four poetas with whom Bascomb was costumarily grouped one had shot himself, one had drowned himself, one had hanged himself, and the fourth had died of delirium tremens. (...) He had seen in Z – the closest of the four – some inalienable link between his prodigious imagination and his prodigious gifts for self-destruction, but Bascomb in his stubborn, countrified way was determined to break or ignore this link, (...)” Depois, nos conta o drama que Bascomb viverá. Durante um passeio por colinas e catedrais, na companhia de um admirador escandinavo, o poeta, ao aliviar-se num bosque, tropeça num casal fazendo amor e não consegue desfazer-se da imagem do casal, das costas peludas do fornicador e da repentina obsessão da obscenidade: “when he rejoined the Scandinavian he was uneasy. The struggling couple seemed to have dimmed his memories of the cathedrals”.
Acompanharemos Bascomb em seu drama, em sua incapacidade de livrar-se de pensamentos luxuriosos e de voltar à grandeza da sua poesia e dos seus temas (“obscenity – gross obscenity – seemed to be the only factor of life that possessed color and cheer”). Primeiro, procura consolar-se com sua empregada: “he thought he knew what he needed and he spoke to Maria after dinner. She was always happy to accommodate with him, although he always insisted that she take a bath. This, with the dishes, involved some delays but when she left him he definitely felt better but he definitely was not cured.” Logo Bascomb estará escrevendo poemas pornográficos que queima ao meio dia, fará uma viagem curta a Roma para mudar de ares, mas nada parece resolver seu dilema, restaurar sua dignidade serena.
A redenção virá por acaso e milagre, como uma travessia, um reencontro. Bascomb resolve fazer uma pequena peregrinação à imagem do anjo na igreja de Monte Giordano. No caminho, espiará o fascínio de uma família ante o poder de um revólver, deitará na grama, recordando o passado, caminhará ao lado de um cachorro com medo de raios (“he had never known an animal to be afraid of nature”), encontrará um velho satisfeito e abrigado da chuva (“he did not ask his soul to clap hands and sing, and yet he seemed to have reached an organic peace of mind that Bascomb coveted”), pegará carona em um carro, “hoping that this would not put a crimp in his cure”. Na igreja, encontrará o padre, depositará seu presente para o santo – uma medalha dada pelo governo soviético no aniversário de Lermontov – e pedirá a bênção divina a seus ídolos (Whitman, Hart Crane, Dylan Thomas, Faulkner, Fitzgerald, “and specially Hemingway”). Na volta, terá seu banho, sua purificação, diante de uma cachoeira: “It was a natural fall, a shelf of rock and a curtain of green water, and it reminded him of a fall at the edge of the farm in Vermont where he had been raised. He had gone there one Sunday afternoon when he was a boy and sat on a hill above the pool. While he was there he saw an old man, with hair as thick and white as was his now, come through the woods. He had watched the old man unlace his shoes and undress himself with the haste of a lover. First he had wet his hands and arms and shoulders and then he had stepped into the torrent, bellowing with joy. He had then dried himself with his underpants, dressed, and gone back into the woods and it was not until he disappeared that Bacomb realized that the old man was his father.”
Naturalmente, Bascomb fez o que seu pai fizera anos antes – despiu-se e banhou-se na cachoeira. “His return to Monte Carbone was triumphant and in the morning he began a long poem on the inalienable dignity of light and air that, while it would not get him the Nobel Prize, would grace the last months of his life.”
O conto é magnífico pela beleza da prosa e das reflexões de Cheever e, sobretudo, pela sua capacidade de criar, no espaço de um conto, um personagem complexo, vivo, que que nos emociona e nos faz desejar acompanhá-lo em outras histórias.

esaú e jacó

Que Machado de Assis foi, senão o maior, um de nossos maiores escritores, e que os romances de sua fase madura são o que de melhor escreveu, não há o que questionar. Mas será “Esaú e Jacó”, o seu penúltimo romance, que ao lado do precioso “Memorial de Aires” marca a fase mais filosófica do autor, um livro à altura dos demais?
“Esaú e Jacó” não nos dá nem uma grande história nem uma boa filosofia. A trajetória dos gêmeos e de Flora é um tanto aborrecida, e as reflexões esparsas sobre o tempo, embora interessantes, são quase sempre pouco costuradas ou justificadas pelo contexto. Já quase no fim de sua brilhante carreira, Machado parece escrever sem entusiasmo, imaginação ou disciplina; seguro de seu brilho, solta a pena, opiniático e leve, sem o rigor das obras imediatamente anteriores.
A história é simples e começa bem, com uma mistura de enigma bíblico e de profecia trágica grega. O título já faz antecipar a suspeita, evocando a usurpação da progenitura de Esaú por Jacó, que a pitonisa/mãe de santo lançará com sua mensagem críptica: os futuros gêmeos serão grandes, mas por que parecem brigar já no ventre da mãe? A idéia de gêmeos brigando antes de nascer é provocadora, ainda mais quando cercada pela aura de mistério de um pronunciamento vindo de um oráculo em pleno morro. Pena que a história da rivalidade entre Pedro e Paulo, entre o monarquista e o republicano, e do amor pela mesma mulher, Flora, se arraste sem maior graça e acabe de modo pouco convincente com a morte da moça, marcada pela angústia de não querer amar nenhum dos dois por não poder renunciar a nenhum dos dois. A trama sustenta-se numa dúvida insustentável, a de Flora, que não sabe quem ama e morrerá por não saber.
Machado não encanta com a história nem com seus artifícios e reflexões, brilhantes em outros livros. Começa com a justificativa para o texto, que é confusa; o livro seria a parte final do “Memorial de Aires”, um de seus cadernos, embora o próprio Aires apareça retratado em 3a pessoa, como um personagem externo a ele mesmo, e não como narrador de um diário, como no próprio “Memorial”. “Esaú e Jacó” seria, segundo Machado, uma história “escrita como pensamento interior e único”, o que justificaria seu tratamento em separado, mas não a mudança ilógica do foco de narração.
Machado é mestre no estilo conversacional, na conversa com o leitor, mas em “Esaú e Jacó” as paradas freqüentes para o bate-papo enfraquecem a trama sem colocar algo único e indispensável no lugar. Na verdade, as reflexões e conversas sobre as dificuldades do contar, sobre a estrutura do texto, sobre a escolha de palavras e de capítulos mal esconde o desinteresse da trama. Machado parece tão desinteressado quanto o leitor, e foge a todo momento de seus personagens. O excesso de digressões leves e o tom zombeteiro soam como se a própria história e os personagens não fossem sérios ou merecessem a seriedade do leitor. O problema é que, ao contrário do que diz no livro, nem Machado pode sacralizar o banal. A idéia de que “a mesma banalidade na boca de um bom narrador faz-se rara e preciosa” tem seus limites. O preço que Machado paga pela leveza é o de personagens rasos, para usar a categoria de Forster. A leveza de Machado costuma ser sublime por alguns aspectos de seu texto, a começar pela recusa ao naturalismo descritivo (descrever é enfadonho, ele nos diz), mas a leveza torna-se trivial quando o autor não consegue dar densidade aos personagens ou às idéias.
Há momentos de gênio, no entanto, afinal um Machado menor é ainda um Machado. Basta lembrar a cena em que Aires diz que ajudará Flora e faz o contrário, recomendando a Batista que aceite a presidência de província: ele o faz por sadismo, ceticismo, frieza, sabedoria? Há algo de enigmático na cena, que proporciona um grande efeito. “Esaú e Jacó” traz ainda elementos importantes e recorrentes em toda a obra do escritor, como a desilusão sutil com a mesquinharia (do irmão das almas com sua esmola de mil réis; de Santos com seus parentes; do vendedor de gravuras), com a curiosidade (de Natividade e de Santos) e com o oportunismo político (de Batista e sua mulher Cláudia). Há também boas reflexões sobre o tempo e o nada, sobre o tempo que não pode ser capturado, sobre a imortalidade. Pena que nem estes brilhos esparsos do bom e velho Machado consigam dar vida ao livro.