30.4.11

a Biblioteca de Babel


Entenda-se ou não como conto, chame-se de narrativa curta ou qualquer outro nome, o fato é que “A Biblioteca de Babel”, de Borges, é um exercício de imaginação. A Biblioteca é o universo, e se não é infinita, a questão é irrelevante, já que seus limites são inacessíveis ao homem. Não há existência fora dela, ela abarca tudo. Lá estão os homens e todas as possibilidade de combinações de 25 símbolos (22 letras, espaço, ponto, vírgula) em livros de quatrocentos e dez páginas, com todos os idiomas e formas criptográficas possíveis, distribuídos em salas hexagonais que se comunicam por meio de pequenos vãos com outras salas hexagonais ao lado e acima, como uma colmeia perfeitamente geométrica e sem fim. A grandiosidade do universo é melhor percebida na morte: a sepultuta dos homens ocorre no “ar insondável”, ao vento da queda do corpo no fosso que atravessa as colunas de hexágonos e nunca termina: “mi cuerpo se hundirá largamente y se corromperá y disolverá en el viento engendrado por la caída, que es infinita”. Borges aproveita sua Biblioteca para lançar outras imagens geniais, como a idéia do “livro cíclico de Deus”, cuja lombada envolve uma sala circular, ou do livro de folhas de espessura infinitesimal que poderia conter todos os livros; a idéia do falso predomínio do caos e da falta de sentido sobre a plausibilidade (já que mesmo a esmagadora maioria dos livros com combinações aparentemente aleatórias podem fazer sentido em linguagens que não dominamos, não havendo “un solo disparate absoluto”); “las interpolaciones de cada libro en todos los libros”; a busca pelos homens do livro sobre seu futuro entre tantos livros sem sentido e tantas biografias futuras falsas de si mesmo; a busca do livro que revela a origem do Universo/Biblioteca; a busca do livro que “sea la cifra y el compendio perfecto de todos los demás”...
            A Biblioteca de Babel é, ao mesmo tempo, a metáfora da vida de Borges, em que o mundo são os livros, e o melhor espelho de sua imaginação vertiginosa.

o Grande Gatsby


“The Great Gatsby”, de Scott Fitzgerald, é um belo livro, menos pela história, quase banal e folhetinesca, do que pela estrutura da narrativa e pelo estilo do autor. A trajetória de Gatsby, contada de forma linear, cronológica, soaria como um dramalhão, mas Fitzgerald a revela de modo tão envolvente e misterioso, que o personagem e, por extensão, o livro, ganham em dignidade e solidez.
Nick Carraway, midwesterner que, como Gatsby, migrou para a Costa Leste, apresenta-nos o protagonista em primeira pessoa. O vizinho enigmático, da mansão e das festas concorridas, aparece-nos aos poucos, do meio de informações contraditórias, fofocas, sugestões. Uma coincidência – o fato de que Carraway, além de vizinho de Gatsby, é primo da mulher que ele ama – permite o contato entre os dois e, mais tarde, a amizade. Gatsby revelará, então, seu passado pobre, a paixão por Daisy, a passagem pela guerra, o enriquecimento ilícito e os planos de reconquista da mulher que ama.
Seu destino será trágico. A paixão antiga por Daisy, antes frustrada pela diferença social, não será redimida pela fortuna, em razão do destino trágico dos personagens – o atropelamento da amante do marido de Daisy – e da rigidez das divisões de classe. Gatsby tornou-se milionário, mas, da mesma maneira que sua paixão do passado não pode ser esquecida, tampouco sua antiga condição social o será. A Sociedade em Fitzgerald é perversa, sacrifica os sonhos, a hipocrisia e a obsessão com a imagem social impedem o livre curso dos sentimentos. Este é um dos temas dominantes da literatura anglo-saxã do começo do século, como em D. H. Lawrence ou Henry James.
O mérito do autor é contar-nos essa história sem clichês ou pieguice. Fitzgerald usa um estilo circular, com detalhes de Gatsby que aparecem em tempos distintos, com graus de credibilidade também distintos. A moderação e o distanciamento de Carraway nos contaminam.
Há passagens marcantes. O primeiro capítulo, por exemplo, começa um tanto frio e desfocado, para terminar com a bela e enigmática aparição de Gatsby. A região de Ashheaps, com seus habitantes cinzentos e melancólicos, observados pelos olhos gigantes do “outdoor” do oculista, as festas de Gatsby e seu amor doentio são apresentados de forma sutil, nunca inteiramente direta, sempre com riqueza de símbolos e imagens. É um erro associar Fitzgerald a um estilo direto, jornalístico, hemingwayano; ele é um escritor circular, comentador, moralista no sentido amplo do termo.

29.4.11

Pierre Menard, autor do Quixote


“Pierre Menard, autor del Quijote”, da seção “El jardín de senderos que se  bifurcan”, do livro Ficciones, é um desses divertidos contos de Borges em que o argentino brinca com alguns de seus temas prediletos, os livros, a identidade, a autoria. O narrador busca defender a imagem de seu amigo Menard, recém-falecido, enumerando sua obra visível e, sobretudo, sua obra não-visível, composta pelos capítulos nono e trigésimo oitavo da primeira parte do Dom Quixote “y de un fragmento del capítulo veintedós.” Como diz o narrador, o objetivo de Menard não era transcrever ou copiar o Quixote, mas sim “producir unas páginas que coincidieran – palabra por palabra y linea por linea – con las de Miguel de Cervantes.” Borges diverte-nos com sua ironia ante a crítica, especialmente a excessiva contextualização (“el texto de Cervantes y el de Menard son verbalmente idénticos, pero el segundo es casi infinitamente más rico”), com seus jogos circulares e vertiginosos (é mais difícil compor o Quixote depois do Quixote, já que os fatos supervenientes, inclusive o aparecimento do Quixote, mudam o contexto histórico e as condições para sua elaboração) e com sua imaginação sobre a imaginação (“todo hombre debe ser capaz de todas las ideas y entiendo que en el porvenir lo será”).

coração das trevas

"Heart of Darkness", de Joseph Conrad, é incômodo pela ambigüidade. O que é, afinal, o “coração das trevas”? O mal, o mistério, a nossa essência sombria e oculta, a morte? Quem é Kurz? Uma espécie de deus, de diabo, de homem que viu a verdade, um iluminado, ou um homem comum, mas ardiloso, que se torna deus/rei de uma tribo de selvagens?
Talvez Conrad não quisesse responder essas perguntas. Faz parte da escuridão de que nos fala. O “heart of darkness” é também indizível.
A viagem rio acima é extraordinária. Para o narrador-comandante, Marlow, não é a busca de marfim, de prestígio ou de uma mera aventura pela África, ainda que este desejo o motivasse de início. É a busca de um sentido, da identidade de um homem que ele não conhece mas sabe que é singular. Ao cabo, embora seja quem o conhece melhor, nem Marlow compreende Kurtz e o sentido de sua liderança entre os nativos. A descoberta de sua aldeia com cabeças humanas espetadas em paus de cerca, com seus ruídos primais, com a relação anti-natural entre os brancos, com a expectativa de tragédia iminente, mais nos confunde do que ilumina.
O texto é complexo, como o objeto que descreve. Conrad usa as descrições da floresta sobrehumana para criar uma atmosfera sobrenatural, misteriosa, que esconde uma essência subterrânea e inatingível. Os personagens também são insondáveis. “Heart of Darkness” é um título perfeito para o livro.