20.5.12

a montanha mágica


É sempre um compromisso muito particular começar a ler um romance que se aproxima do milhar de páginas e pesa nas mãos. Abre-se o livro com a sensação de que um relacionamento de longo prazo se inicia, e que a experiência, para o bem ou para o mal, tenderá a deixar alguma marca, ao menos se o leitor tiver o tempo e a paciência de concluí-la.
Com suas 957 páginas na versão em português, traduzida por Herbert Caro, “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, é desses livros que exigem um disciplinado envolvimento do leitor. É um belo livro, um tour de force, mas é difícil não o ler com a impressão de que o tempo, um dos temas do livro, não lhe tem feito muito bem.
Mann fez um romance de idéias sem conseguir fugir de certo didatismo. É instigante na substância e conservador na forma. Personagens como Settembrini e Naphta, com seus longos diálogos, são veículos de teses, interessantes sempre, brilhantes muitas vezes, mas que parecem pairar acima do livro, lembrando-nos de quão inteligente e versátil é o autor. As conversas sobre espírito e corpo, sobre o “eu orgânico”, sobre razão e fé têm algo ao mesmo tempo de cativante e frustrante. Em muitas passagens, senti-me subestimado como leitor, não pelas idéias em si, mas pela solução fácil do diálogo sob medida, enxertado para dar voz a Mann. Estavam a serviço do autor, não da história que criou.
A estrutura convencional já se percebe de início. Narrado em terceira pessoa, o livro começa no presente, com a viagem do protagonista Hans Castorp ao sanatório de tuberculosos para visitar o primo, retorna ao passado para contar a vida pregressa de Castorp e volta a situar-se no presente de sua visita, que se transformará numa estadia definitiva.
Como romance de idéias, há muitas e boas. A doença como culto, que forma uma espécie de aristocracia da morbidez, do “quanto mais doente, melhor”, é um dos temas recorrentes e reflete o estado de espírito de um mundo europeu do entre-guerras em que predominava o sentimento de decadência e fim dos tempos. Há um desejo de prisão, de isolamento, em que ficar (internado) é ter liberdade (pg. 304). A morte é a companheira sedutora dos internados, embora Mann nos diga que “a nossa morte é assunto dos sobreviventes, mais do que de nós próprios.” (pg. 708)
Também o tempo em si é matéria central do livro. Mann fala-nos do tempo particular do sanatório, em que a paralisia e a monotonia parecem acelerar o ritmo da vida, numa reversão do senso comum de que é a riqueza de vivências e acontecimentos que adiantam a passagem do tempo. Há o tempo de cima, da montanha, do Sanatório Berghof, e o tempo de baixo, da planície, da vida comum. Algumas das melhores reflexões de Mann tratam da natureza inapreensível do tempo: “na imensa monotonia do espaço afoga-se o tempo. Onde reina a uniformidade, o movimento de um ponto a outro deixa de ser movimento. Onde isso acontece já não existe o tempo.” (pg. 730)
Há belas cenas, é verdade. Lembro-me das festas e banquetes no sanatório, da euforia febril dos doentes, da melancolia de Castorp. Difícil não se envolver com sua paixão pela enigmática Clavdia Chauchat (essa Cláudia “gato-quente” que é um misto sedutor de Europa e Ásia), mesmo quando Mann esgarça os limites do verossímil e coloca frases espirituosas em francês na boca de um liricamente limitado e circunstancialmente bêbado Castorp, diante da bela Chauchat: “l’échine qui descends vers la luxuriance double et fraîche des fesses”  (“a coluna que desce em direção à exuberância dupla e fresca das nádegas”). Pena que tudo se dilui um pouco na coleção infindável de personagens que chegam e partem do sanatório e nas múltiplas dissertações do autor. Talvez falte em Mann, como em Dostoievski, certo sentido da medida, embora a literatura hiperbólica e sentimental do russo sempre pareça mais charmosa que a literatura hipercerebral do alemão.