25.8.13

a odisséia


De forma mais velada e sutil do que Shakespeare faria com “Macbeth”, “A Odisséia”, de Homero, é uma história sobre a “hubris”, a arrogância do poder, o orgulho da vitória. A viagem tortuosa, quase interminável, que Odisseu/Ulisses faz de Tróia a Ítaca é a punição de uma egotrip anterior, da autoimagem de infalibilidade e onipotência de quem arquitetou e executou a tomada de Tróia. Poseidon lança a maldição sobre Odisseu porque o herói, não satisfeito em cegar o ciclope que o aprisionava na volta, quis dar-lhe uma lição de moral. Ao escapar, Odisseu, indignado com a morte de seus companheiros, impreca contra o monstro e não resiste à tentação de proclamar seu nome, apesar dos apelos dos demais sobreviventes para que se cale. O bravo herói, que se livra da prisão com a astúcia de sempre, é também orgulho e ressentimento. A nova vitória não pode ficar anônima. Precisa da palavra para afirmar o vencedor, mais uma vez. E a palavra será a queda. O ciclope descobre a identidade do inimigo e conta ao pai, Poseidon, que irá se vingar, com correntes, tempestades e tragédias, daquele que imolou seu filho.

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As agruras de Odisseu combinam vícios dos deuses e vícios dos homens. Há vileza e incompetência (e portanto falibilidade humana) no Olimpo e na Terra. A tripulação de Odisseu é particularmente anti-heróica. Demonstra suas fraquezas não apenas na fuga do ciclope ou na história do saco dos ventos, mas também na Ilha do Sal, em que os marujos não resistem à tentação de comer os animais. Na Grécia de Homero, há os vícios dos grandes – deuses e heróis – como a “hubris”, a prepotência, a vaidade, e os vícios dos pequenos – os homens em geral – como a cobiça, a gula, a curiosidade. Mas até Odisseu, apesar de todas as suas virtudes de herói, peca por vícios menores, como a leniência na hora de evitar a insubordinação de seus homens. Em contraste com o mundo confuciano, oriental, da preservação das hierarquias (Imperador-súdito; pai-filho; marido-mulher), o mundo grego é o da subversão das hierarquias pelo triunfo da individualidade (herói contra deus; homem contra herói).

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Mais do que a Ilíada, que é narrada de forma mais direta e “neutra”, “A Odisséia” é uma história sobre histórias. É uma narrativa sobre narrativas. O envolvimento do leitor se dá pela intermediação de um narrador que assumidamente diz contar uma história. Ou de um herói que resolve contar sua história dentro de outra história. Enquanto “vemos” o filho Telêmaco agir, mantemo-nos distantes, à espera do herói. Quando o próprio herói intervém para contar de si (ao falar de seus infortúnios a Alcínoo, rei dos Feácios) é que nos sentimos atraídos para o centro de suas fabulações. Não parece mera coincidência que Odisseu acabe por inventar um passado e um nome para si ao reencontrar Penélope, já de volta a Ítaca. Ele só conseguiu voltar à sua terra porque soube, por meio de histórias inventadas, testar os outros, estimular-lhes a curiosidade, guiá-los para onde queria. Fez isso com Penélope, Eumaeus e Laerte, pai do herói. Na Odisséia, a palavra é, ao mesmo tempo, queda e salvação.

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O capítulo final da Odisséia costura, de forma circular, irônica, moralizante, o ciclo iniciado pelo capítulo inicial da Ilíada. Se no começo desta, vemos Agamenon e Aquiles brigando (em torno da apropriação pelo monarca da “mais-valia” do trabalho dos guerreiros/saqueadores), no final da Odisséia vemos o espírito de Agamenon e de Aquiles reecontrarem-se no Hades, desta vez mortos, estéreis, pacificados. Apesar dos horrores do Hades, para Odisseu a vida não vale ser vivida a qualquer preço. Por isso havia desprezado a oferta de imortalidade que Calipso lhe fez. Para o herói, voltar para morrer vale mais do que viver sem voltar.