12.11.12

Jerusalém


Abri “Jerusalém”, romance do português Gonçalo M. Tavares, com a melhor das expectativas. Um livro premiado de um autor freqüentemente enaltecido por sua obra de ficção e pela sensatez e conhecimento com que faz seus comentários sobre literatura. Fechei-o, no entanto, com a sensação de ter lido um bom escritor, mas de não ter me envolvido com seus personagens alegóricos nem me impressionado com os elementos inventivos de sua narrativa.
“Jerusalém” é a história de uma série de relações de opressão e violência. Personagens construídos quase como alegorias, como tipos ideais de sentimentos ou condições (Mylia, a oprimida; Theodor, o cerebral; Ernst, o amante louco; Hanna, a prostituta; Hinnerk, o violento; Kaas, o frágil) encontram-se e ferem-se em um meio marcado pela experiência do passado como catástrofe coletiva (a guerra; o Holocausto; a história do horror) e pela iminência da tragédia pessoal.
Gonçalo Tavares enreda os personagens numa narrativa que vai e volta em suas vidas e revela aos poucos, como num quebra-cabeça, os elementos quase sempre traumáticos que os unem. Há engenho na maneira como o autor nos surpreende e revela a trajetória de cada um, como quando descobrimos, já no capítulo 9, o que uniu Mylia e Ernst, tenuamente interligados no começo do livro e, antes, companheiros de hospício, perdidos no emaranhado de personagens e manias ao redor. Os títulos dos capítulos com combinações de nomes de personagens já antecipam essas relações e têm um apelo de concisão e elegância, embora a rearrumação dos nomes comece a parecer menos intrigante conforme se avança no livro.
Embora articulados de maneira engenhosa, os personagens de “Jerusalém” parecem descarnados, rasos. São antes veículos de dores e mensagens do que figuras de carne e osso literário. Ao analisar a obra de Thomas Pynchon, James Wood chama a atenção para as dificuldades e riscos na criação de personagens alegóricos. A ousada aposta de Kafka nem sempre dá certo quando não se é Kafka. Foi a sensação que tive ao ler a história de Mylia, Ernst, Theodor e demais personagens de “Jerusalém”. Sua natureza esquemática, opaca, nos impede o envolvimento. Acompanhamos suas histórias, mas por falta de empatia não as sentimos e vivenciamos. O próprio uso do tempo presente da narrativa, embora agilize a trama e dê um sentido de urgência e iminência ao registro de cada personagem, acaba por agravar a sensação de que os vemos de forma plana, estereotipada, vazios de conteúdo.
Também há certa artificialidade e caricatura na maneira como Gonçalo Tavares nos revala horrores já conhecidos. O problema de repetir em ficção a denúncia de horrores óbvios, como o Holocausto, a guerra ou a violência dos hospitais psiquiátricos, é que, por seu caráter extremo, tais flagelos não comportam ambigüidade e dúvida e não há como pintá-los em cores e tons variados. O uso do preto e do branco em literatura quase sempre assoma como esquemático. Veja-se, por exemplo, a seqüência de capítulos intitulados “Europa 02”: são descrições curtas de aspectos de uma espécie de prisão ou mundo kafkiano, que lembra um campo de concentração. O autor procura introduzir elementos inovadores na forma (a linguagem de manual, os subtítulos escritos na vertical da página), pela simples dificuldade de ser original ou ambíguo na própria matéria tratada.
Há passagens fortes no livro, que revelam uma aguda sensibilidade de Gonçalo Tavares para o tema da vulnerabilidade humana ou da violência. Especialmente marcante é a imagem de Kaas, o filho frágil e risível de Theodor, no momento em que ouve, na iminência da briga com um colega de escola, a frase mais ofensiva e humilhante que um garoto pode ouvir:

“(...) estavam assim os dois naquele instante único onde o contato físico violento é inevitável e quase imprescindível, quando subitamente o seu opositor, como que lembrando-se naquele momento de algo que se esquecera com os insultos trocados, parou, e afastando-se num movimento que em outras condições seria indiscutivelmente considerado como cobarde, afastando-se, então, disse, para Kaas: eu não posso lutar contigo.”

O mesmo Kaas, humilhado pela recusa do mais forte em espancá-lo, irá surpreender-nos com o gesto aparentemente gratuito contra a avó.
Algumas passagens iluminadoras no livro convivem com trechos e imagens desnecessários. Gonçalo Tavares é um escritor prolífico e, no romance, dá-nos a sensação de que quer aproveitar todo e qualquer pensamento seu. Há comentários um tanto ociosos (“uma mancha de tinta espessa, como se a tinta atribuísse a si própria a responsabilidade de tornar mais alto o tampo da mesa”); metáforas de gosto duvidoso (“havia, pois, em Theodor, a sensação de limpeza na própria vida, como uma empregada que tivesse acabado de tirar do lugar um móvel antigo que impedia, há décadas, o movimento rápido dentro de casa”); e até pleonasmos duplos (“uma espécie de azedume fixo permanecia constante”). Embora curto, “Jerusalém”, ao menos na edição portuguesa que li, da editora Caminho, ganharia com uma revisão mais rigorosa.