14.11.11

a ilíada


O conflito entre Aquiles e Agamenom no começo da Ilíada é fundamentalmente um conflito derivado de uma “luta de classes”, em que Aquiles se insubordina contra a apropriação indevida pelo monarca da “mais valia” do seu trabalho de saquear os povos vencidos em guerra. Como diz Aquiles, “o calor e o fardo da luta recaem sobre mim, mas quando se trata de repartir o espólio, é você quem leva a maior parte”. Essa disputa deriva de uma dissociação entre poder e força, já que Agamenom detém o poder político como rei e Aquiles a força física. Ambas são concessões dos deuses, o poder de Agamenom, legitimado por Zeus, a força de Aquiles, conferida por Tétis.
Bela é a história da força e da fraqueza de Aquiles, de que não se faz menção na Ilíada. Sua mãe, a ninfa marinha Tétis, mergulhou-o no rio Styx, para fazê-lo imortal, mas teve de segurá-lo pelo calcanhar, que não foi banhado pelo rio mágico. O mesmo calcanhar que permitiu a ele não ser tragado pelo rio, revelou-se seu ponto fraco, que o levou à morte pelas mãos de Paris.

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Tétis endossa o pleito de vingança de seu filho, Aquiles, que, de início, quer a derrota dos gregos contra os troianos para provar que ele é indispensável para os gregos. Zeus promete, de forma esquiva, indireta, atender ao pedido de Tétis. Hera, a Rainha do Olimpo, se insubordina contra o marido. Ele a ameaça com suas “mãos inconquistáveis”. Hefestus pede que ela se curve, e é escarnecido pelos outros deuses, que gargalham de seu desengonço, de sua imperícia. Zeus manda sonhos falsos e rumores para enganar o Rei Agamenon, inimigo de Aquiles, para que inicie uma guerra suicida. Todos os deuses tomam partido na guerra, de um lado ou de outro. E chegarão a batalhar entre eles mesmos por causa do conflito entre os homens. Nada mais humano, visceralmente humano, que o Olimpo.

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Apesar do culto dos efebos e do homoerotismo masculino na Grécia antiga, não se pode, a julgar pela Ilíada, relegar a mulher a plano tão inferior quanto se imagina. O que é a guerra de gregos e troianos senão a disputa por uma mulher, Helena, seduzida pelo trojano Páris, que a rouba do grego Menelaus? Haverá outras razões para o conflito, é verdade, mas sua causa imediata é a posse de uma mulher, tanto que a trégua teria sido possível pela simples entrega de Helena, pelo simples acerto de contas entre marido e amante, não fosse a vileza dos deuses sedentos de guerra, como Hera, Afrodite e Atenas.
A própria desavença entre os gregos Aquiles e Agamenom, no começo, ainda que seja uma disputa pelo controle dos espólios de guerra, não deixa de reduzir-se a um choque de orgulhos de guerreiros que não querem perder seus respectivos butins, ou seja, as mulheres que capturaram. É verdade que Aquiles parece demonstrar todo seu amor mais do que fraternal por Patroclus, quando este morre pelas mãos de Hector, mas isto enseja o desfecho da guerra, não o seu deflagrar, que se dá pela disputa de mulheres.
A “Ilíada” é um livro sobre homens, sobre homens em guerra, mas há espaço também, ainda que secundário, para mulheres de temperamento e presença fortes. A principal delas é Hécabe, a mulher de Priam e mãe de Héctor, que sobressai em dois momentos, sempre tentando prevenir, sem sucesso, uma ação de quem ela ama. Não conseguirá dissuadir Héctor de lutar contra Aquiles; não conseguirá dissuador Páris de resgatar o corpo de Héctor em posse de Aquiles. Mas o desespero e a força de sua súplica têm uma dignidade e um apelo próprios. Diante do filho Héctor chega a expor o seio em meio às lágrimas: “Héctor, meu filho, ela gritou, olhe isto e tenha pena de mim. Quantas vezes lhe dei este seio e o acalmei com este leite! Lembre-se daqueles dias, filho querido.”

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A guerra na Ilíada também pode ser vista, superficialmente, como um conflito gerado por lealdades familiares, ou melhor, pela fidelidade aos seus, mesmo quando são ineptos ou idiotas. Priam, rei de Tróia, apóia o filho Páris, que cometeu o erro fatal de seduzir a cunhada do rei inimigo. Agamenon, por sua vez, independentemente do interesse per se em conquistar Tróia, executará a vingança que o irmão, Menelaus, quer, traído que foi pela mulher Helena e pelo sedutor Páris.
A referência permanente aos vínculos familiares, às linhagens, é um traço de toda a Ilíada, em que os guerreiros são sempre identificados e apresentados como representantes de famílias, como descendentes. Basta ver como Enéias se apresenta diante de Aquiles no momento em que se preparam para a batalha entre os dois. Este é um elemento básico do mundo helênico, em que até os destinos -- a moira -- são transmitidos de geração a geração.

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Homero, modesto, ao tentar narrar um momento da guerra de gregos e troianos: “Mas como posso retratar isso tudo? Seria necessário um deus para contar essa história”.
E os deuses da Ilíada não narram o passado; contam o futuro, por símbolos, como a águia que é ferida pela cobra que pretendia dar aos filhotes e solta-a dos céus sobre os soldados troianos como um aviso de que não conseguirão destruir os gregos e seus navios encurralados. 

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Aquiles é o que se chamaria hoje de personagem mais complexo da Ilíada, mais distante portanto da forma estilizada, não-psicológica, que marca a caracterização de muitos mitos e heróis. Alterna orgulho e teimosia, bravura e egoísmo. Seu dilema é entre a vida curta na guerra, mas que seria imortalizada pela História, e uma vida longa, não abreviada, mas sem glórias. O exemplo mais evidente de sua mesquinhez é a ordem que dá a Patroclus, seu amigo mais próximo, de não avançar em direção a Tróia caso o curso da guerra fosse revertido, para que ele, Aquiles, pudesse ter a glória e o privilégio de ganhá-la, e de desfrutá-la com seu companheiro: “Como eu seria feliz se nenhum troiano sobrevivesse, nem um único, nem mesmo um grego, e nós dois sobrevivêssemos o massacre!”

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Os homens da Ilíada não são muito mais do que representações dos desejos e caprichos dos deuses. Por meio de sonhos, encantos, impulsos, ilusões – ou mesmo pela intervenção física direta – os deuses manipulam os desejos e ações dos homens como num teatro de marionetes. Há muitos exemplos, como o de Patroclus, fiel amigo de Aquiles, que nunca o trairia por livre arbítrio, mas é induzido por Zeus a descumprir a ordem do amigo. Sua morte é preparada por outro deus, Apolo (“Num momento, o deus pode fazer um homem corajoso fugir e perder a batalha; noutro, pode lançá-lo à luta”). O mesmo acontece com Héctor, do lado dos troianos, que também é induzido a um destemor suicida. Quase todas as grandes batalhas -- entre Menelaus e Páris, Aquiles e Enéias, Aquiles e Héctor – são manipuladas ou resolvidas pela ação de um deus, quase sempre em favor do lado mais fraco, como nos três casos acima, em que a morte dos troianos ou é evitada ou adiada. O paroxismo da intervenção divina ocorre quando Zeus, receoso de uma rápida vitória dos gregos por conta do retorno e da ira de Aquiles, resolve liberar os demais deuses para se intrometerem na guerra, cada um ao lado de seu grupo favorito.
Invejosos dos homens, da sua mortalidade, os deuses irão premiá-los ou puni-los principalmente na medida de sua capacidade de adorar a divindade. Há espaço, no entanto, para a noção que parece mais moderna de que a atitude da divindade para com o homem depende do comportamento e dos valores morais do homem: “Há dias no outono em que o campo inteiro dorme escuro e oprimido sob um céu tempestuoso, e Zeus envia a chuva torrencial como uma punição aos homens. Sua raiva é despertada porque, independentemente do olhar ciumento do céu, eles fizeram mal uso de seus poderes, lançaram sentenças espúrias em público e escurraçaram a justiça.”
Mas à inveja mistura-se piedade nesses tão contraditórios e incertos olhos dos deuses quando se detêm sobre o homem e a sua condição. É o que se nota na perplexidade de Zeus ante a fuga triste dos cavalos divinos e imortais de Aquiles, após a morte de Patroclus: “Pobres bestas! Por que as oferecemos, vocês que não têm idade e são imortais, ao Rei Peleus, que está fadado a morrer? Queríamos que vocês compartilhassem os sofrimentos de homens infelizes? De todas as criaturas que respiram e rastejam sobre a Mãe Terra, não há nenhuma mais miserável que o homem.”

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O sonho da arte – criar a vida – é manifestada de forma muito tocante e evocativa pelas mãos do deus Hefestus, na Ilíada, que forja um escudo novo para Aquiles, a pedido de Tétis, a mãe do herói. Homero descreve-nos as imagens entalhadas no escudo como uma obra viva, em que os acontecimentos se desenrolam no tempo (uma emboscada, um julgamento, uma guerra), as cores se transformam (o ouro, o negro) e a música se materializa. Como diz Homero, tão compassivo para com Hefestus, esse deus artista e aleijado, “o artista atingiu o milagre”.

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Com a “Ilíada”, tem-se uma boa noção do que é a morte entre os gregos, a visão sombria que têm do além, do Hades. Não há paraíso, como os cristãos conceberiam mais tarde, não há ascensão, céu, mas sim o subterrâneo, a escuridão, a profundeza, algo mais próximo da idéia cristã de inferno. Os deuses mesmos, imortais como são, temem o Hades, e ele próprio, Rei dos Mortos, não quer expor suas câmaras de decomposição. Morrer é fazer a travessia, a terrível viagem, “viajar para a melancolia do oeste”, como disse o amargurado Aquiles, saudoso de seu amigo Patroclus.
Se a idéia cristã de céu e de paraíso não está presente entre os gregos, a de alma, a de espírito que sobrevive à morte, já era comum entre eles. O espírito de Patroclus visita Aquiles num sonho, e o herói então exclama: “Ah, então é verdade que algo de nós sobrevive mesmo no Salão do Hades, mas sem intelecto, só o fantasma e a aparência de um homem; por toda a longa noite, o fantasma do pobre Patroclus (e parecia com ele) esteve a meu lado, chorando e gemendo, e dizendo-me todas as coisas que devo fazer.”
Impressionantes são os funerais, e o maior deles na “Ilíada” é naturalmente o de Patroclus, organizado por Aquiles. O fogo é o elemento principal; é na fogueira altíssima que se consome o corpo e se extinguem os homens e animais sacrificados. E os sacrifícios oferecidos por Aquiles a Patroclus, que incluem animais e homens, são proporcionais a seu amor e a sua ira.
O lado menos sombrio e mais festivo dos funerais são os jogos, precursores dos jogos olímpicos, em que há provas e prêmios em torno da corrida de carruagem, do boxe, da luta armada, da corrida a pé, do arremesso de peso e de dardo, do arco e flecha. Aqui aparece um Aquiles generoso nos prêmios e judicioso nos seus julgamentos. 
 
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A “Ilíada” se encerra com o encontro entre Aquiles e Priam, em que o herói grego entrega o corpo de Héctor ao rei de Tróia, para que ele possa realizar o funeral do filho em Ilium. É um dos pontos maiores da história, em que ambos, o herói e o rei, parecem mais do que nunca dignos da importância e do respeito que inspiram. Priam se arrisca a visitar o guerreiro furioso, ajoelha-se a seus pés, humilha-se ao beijar a mão daquele que matou seu filho, sempre com o intuito de dar ao filho o funeral que merece; já Aquiles tem a grandeza de conter sua fúria, de ver nos olhos de Priam o mesmo abandono e a dor que estão em si, e acaba por entregar o corpo de Héctor e de prometer uma trégua até que se concluam os funerais do seu adversário. Há uma clara idéia de nobreza no encontro entre estes dois personagens.
Mais do que a história do herói Aquiles, de sua tragédia ou a de qualquer outro personagem, a “Ilíada” é um livro de guerra, o relato de uma grande batalha, uma reflexão sobre a dignidade e a futilidade de guerrear. Não há comentários sobre estratégia ou tática, não há referência a fatores políticos ou econômicos que motivam um conflito, não há qualquer veleidade de se analisar “alta política”, a não ser que a expressão pudesse caracterizar as picuinhas e rivalidades do Olimpo. O que há é a recorrente descrição das batalhas, dos conflitos homem a homem, das intervenções dos deuses, o ir e vir da luta entre gregos e troianos, em que a sorte muda a cada momento, há avanços e recuos, ao ímpeto sucede o desespero, à vitória a derrota, e, sobretudo, há a morte, a morte em profusão, a morte que se multiplica e nada resolve. O correspondente moderno da guerra entre gregos e troianos é a Primeira Guerra Mundial, uma guerra sem avanços, sem solução, no equilíbrio das trincheiras, em que todos perdem, não há vencedores.
Na voz de Homero, se a dignidade das batalhas está na grandeza dos guerreiros, no seu desprendimento, no seu destemor, o ridículo da guerra, o seu horror, pode ser medido pela figura sombria, violenta e ignorante do seu deus, o deus da guerra, Ares. Não há nele inteligência ou dignidade; apenas a força bruta, imotivada, a força pela força. É ele quem melhor expressa a falta de sentido do conflito, que nasce de um ato tolo de sedução e caminha para o extermínio dos melhores homens, de um lado e de outro, como Aquiles e Héctor. Nesse aspecto, Homero é um narrador neutro. Ainda que saibamos que a vitória final será dos gregos, com a captura de Ilium, a dor e a tragédia não escolhem um lado apenas. A derrota é, em última instância, o destino dos dois lados, e é esta a herança e a lição maior da guerra.

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