12.11.12

Jerusalém


Abri “Jerusalém”, romance do português Gonçalo M. Tavares, com a melhor das expectativas. Um livro premiado de um autor freqüentemente enaltecido por sua obra de ficção e pela sensatez e conhecimento com que faz seus comentários sobre literatura. Fechei-o, no entanto, com a sensação de ter lido um bom escritor, mas de não ter me envolvido com seus personagens alegóricos nem me impressionado com os elementos inventivos de sua narrativa.
“Jerusalém” é a história de uma série de relações de opressão e violência. Personagens construídos quase como alegorias, como tipos ideais de sentimentos ou condições (Mylia, a oprimida; Theodor, o cerebral; Ernst, o amante louco; Hanna, a prostituta; Hinnerk, o violento; Kaas, o frágil) encontram-se e ferem-se em um meio marcado pela experiência do passado como catástrofe coletiva (a guerra; o Holocausto; a história do horror) e pela iminência da tragédia pessoal.
Gonçalo Tavares enreda os personagens numa narrativa que vai e volta em suas vidas e revela aos poucos, como num quebra-cabeça, os elementos quase sempre traumáticos que os unem. Há engenho na maneira como o autor nos surpreende e revela a trajetória de cada um, como quando descobrimos, já no capítulo 9, o que uniu Mylia e Ernst, tenuamente interligados no começo do livro e, antes, companheiros de hospício, perdidos no emaranhado de personagens e manias ao redor. Os títulos dos capítulos com combinações de nomes de personagens já antecipam essas relações e têm um apelo de concisão e elegância, embora a rearrumação dos nomes comece a parecer menos intrigante conforme se avança no livro.
Embora articulados de maneira engenhosa, os personagens de “Jerusalém” parecem descarnados, rasos. São antes veículos de dores e mensagens do que figuras de carne e osso literário. Ao analisar a obra de Thomas Pynchon, James Wood chama a atenção para as dificuldades e riscos na criação de personagens alegóricos. A ousada aposta de Kafka nem sempre dá certo quando não se é Kafka. Foi a sensação que tive ao ler a história de Mylia, Ernst, Theodor e demais personagens de “Jerusalém”. Sua natureza esquemática, opaca, nos impede o envolvimento. Acompanhamos suas histórias, mas por falta de empatia não as sentimos e vivenciamos. O próprio uso do tempo presente da narrativa, embora agilize a trama e dê um sentido de urgência e iminência ao registro de cada personagem, acaba por agravar a sensação de que os vemos de forma plana, estereotipada, vazios de conteúdo.
Também há certa artificialidade e caricatura na maneira como Gonçalo Tavares nos revala horrores já conhecidos. O problema de repetir em ficção a denúncia de horrores óbvios, como o Holocausto, a guerra ou a violência dos hospitais psiquiátricos, é que, por seu caráter extremo, tais flagelos não comportam ambigüidade e dúvida e não há como pintá-los em cores e tons variados. O uso do preto e do branco em literatura quase sempre assoma como esquemático. Veja-se, por exemplo, a seqüência de capítulos intitulados “Europa 02”: são descrições curtas de aspectos de uma espécie de prisão ou mundo kafkiano, que lembra um campo de concentração. O autor procura introduzir elementos inovadores na forma (a linguagem de manual, os subtítulos escritos na vertical da página), pela simples dificuldade de ser original ou ambíguo na própria matéria tratada.
Há passagens fortes no livro, que revelam uma aguda sensibilidade de Gonçalo Tavares para o tema da vulnerabilidade humana ou da violência. Especialmente marcante é a imagem de Kaas, o filho frágil e risível de Theodor, no momento em que ouve, na iminência da briga com um colega de escola, a frase mais ofensiva e humilhante que um garoto pode ouvir:

“(...) estavam assim os dois naquele instante único onde o contato físico violento é inevitável e quase imprescindível, quando subitamente o seu opositor, como que lembrando-se naquele momento de algo que se esquecera com os insultos trocados, parou, e afastando-se num movimento que em outras condições seria indiscutivelmente considerado como cobarde, afastando-se, então, disse, para Kaas: eu não posso lutar contigo.”

O mesmo Kaas, humilhado pela recusa do mais forte em espancá-lo, irá surpreender-nos com o gesto aparentemente gratuito contra a avó.
Algumas passagens iluminadoras no livro convivem com trechos e imagens desnecessários. Gonçalo Tavares é um escritor prolífico e, no romance, dá-nos a sensação de que quer aproveitar todo e qualquer pensamento seu. Há comentários um tanto ociosos (“uma mancha de tinta espessa, como se a tinta atribuísse a si própria a responsabilidade de tornar mais alto o tampo da mesa”); metáforas de gosto duvidoso (“havia, pois, em Theodor, a sensação de limpeza na própria vida, como uma empregada que tivesse acabado de tirar do lugar um móvel antigo que impedia, há décadas, o movimento rápido dentro de casa”); e até pleonasmos duplos (“uma espécie de azedume fixo permanecia constante”). Embora curto, “Jerusalém”, ao menos na edição portuguesa que li, da editora Caminho, ganharia com uma revisão mais rigorosa.

21.10.12

Binet, HHhH e o Salon de Fleurus


Laurent Binet ganhou o Prêmio Goncourt para romances de estréia, em 2010, com seu romance histórico “HHhH”, sobre, entre outras coisas, o assassinato de Reinhard Heydrich, chefe da Gestapo, em maio de 1942. “Romance histórico” (ou qualquer outra categoria) se aplica de maneira imperfeita ao livro de Binet, que mistura reflexões sobre o processo de redação do próprio livro, referências literárias e pessoais em tom autoficcional e história propriamente dita. Como “A sangue frio”, de Capote, ou mesmo “Os sertões”, de Euclides da Cunha, “HHhH” parece ocupar um lugar a meio caminho entre o histórico e o ficcional em sentido amplo.
Binet, que é professor de literatura numa escola de ensino médio em Paris, participou na semana passada de um evento organizado pelo MoMA, em Nova York. Ele e mais quatro convidados lá estiveram para falar ao pequeno público presente sobre suas experiências ao visitar um curioso lugar chamado “Salon de Fleurus”.
O “Salon de Fleurus” é, supostamente, um apartamento subterrâneo no Soho que simula e “comenta” o antigo salão da Gertrude Stein na rue de Fleurus em Paris. O detalhe é que os criadores do apartamento não se identificam, não divulgam que o lugar existe (a coisa circula à boca pequena, entre iniciados), e os curiosos que por lá aparecem são recebidos por um porteiro de sotaque iugoslavo que age como se não tivesse nenhuma relação com o apartamento. O porteiro quer ouvir histórias do visitante e, em troca, conta histórias do lugar, antes de franqueá-lo aos curiosos. Lá dentro o visitante vê reproduções dos amigos e afilhados da Stein (Picasso, Matisse...), fotografias, mobiliário de época (que ninguém diz se foram do salão original em Paris), tudo ao som de Edith Piaf, que é pós-Stein naturalmente. Trata-se, portanto, de um apartamento-museu sem autoria aparente nem qualquer pretensão de fidelidade histórica. Mais parece um comentário visual e anônimo sobre Gertrude Stein e a arte moderna.
Como não fala bem o inglês, Binet leu um texto curto que escreveu sobre a visita ao Salon: o nonsense da conversa com o porteiro, a sensação de deslocamento no tempo, de vertigem das referências a referências em “mise-en-abîme”, a imagem de Shakespeare (“The time is out of joint”), a lembrança da “Invenção de Morel”, de Bioy Casares, com seu invento que reproduz e revive eternamente o passado. Binet mencionou dois autores norte-americanos que admira (Bret Easton Elis e Chuck Palahniuk) e sua preferência pela narrativa de eventos “reais”, em que há indícios de que aconteceram de fato, por oposição à ficção propriamente.
Essa é a questão que parece interessar a Binet: a diferença de registros entre o “real” e o ficcional. Já no início de “HHhH”, ele cita Kundera para falar da arbitrariedade de dar nomes a personagens ficcionais. E para Binet, Kundera poderia ter ido além: há algo mais vulgar do que um personagem inventado? Ironicamente, Binet reconhece que, para contar a história de Gabcik, o soldado eslovaco que participou do assassinato de Heydrich, terá de transformá-lo em personagem, em literatura:

“J’espère simplement que derrière l’épaisse couche réfléchissante d’idéalisation que je vais appliquer à cette histoire fabuleuse, le miroir sans tain de la réalité historique se laissera encore traverser.”

Conversei com Binet ao final do evento. É figura simpática e tranqüila. Perguntei o que ele planejava depois de “HHhH”. Ele disse que tinha acabado de fazer um livro sobre a campanha presidencial francesa, e começava agora um novo romance, que também será histórico e deverá se passar nos anos 80. Perguntei se seria na mesma linha de “HHhH”, de desconstrução do romance histórico. Ele sorriu e disse que sim.
Realidade e ficção. Fato e referência. Relato e narrativa. Saí do MoMA sem a certeza de que o “Salon de Fleurus” existe. Talvez seja um lugar imaginário. A idéia de que um apartamento sem dono aparente no Soho reflete e comenta um célebre e histórico salão da Paris dos anos 20 também parece ocupar um lugar entre realidade e ficção.

7.10.12

ponto ômega


“Point Omega” é um romance curto e incômodo de Don Delillo. Algumas de suas imagens e cenas permanecem pelo desconforto que provocam, o desconforto do silêncio como consolo em um mundo onde as relações são tão áridas quanto o deserto em que a história se desenrola. Há uma elegância seca no narrar que só reforça o sentido de desesperança na trajetória (quase imóvel) dos três personagens centrais.
Richard Elster é um velho professor que trabalhou para o Pentágono no período da Guerra no Iraque (“more than two years of living with the tight minds that made the war”). Dava sentido e coerência à guerra como instrumento e como fim. Tem, portanto, a dureza e a desilusão dos que ajudam o poder a exercer-se de forma extrema, e agora, ao fim da vida, parece afastar-se para fazer um balanço. O narrador, Jim Finley, um jovem documentarista, quer fazer um filme sobre Elster e se hospeda em sua casa, em pleno deserto no interior dos Estados Unidos. Lá recebem a visita da filha de Elster, Jessica, que procura esquecer sua própria inadequação à vida dando apoio a velhos no Upper East Side, em Manhattan (“She wasn’t a child who needed imaginary friends. She was imaginary to herself.”)
Diante do espaço imóvel, árido, a relação entre os três parece congelada no tempo (“Time slows down when I’m here. Time becomes blind. (...) I don’t get old here”). E o tempo é o tema desse romance de DeLillo. O tempo que não transcorre até o corte representado pelo evento trágico e inapreensível. O tempo que custa a passar no deserto ou no filme projetado quadro a quadro, na bela imagem inicial da instalação no museu novaiorquino, que exibe Psicose, de Hitchcock, em câmera lenta, como se o próprio correr do evento trágico (como no clássico assassinato no chuveiro) pudesse ser decomposto em suas unidades fundamentais. Há uma poesia torta na imagem de um corpo que sucumbe quadro a quadro ou do sangue que gira em espiral quase imóvel até desparecer ralo abaixo.
Elster, em uma reflexão citada pelo narrador no começo do capítulo 1, parece bergsoniano em sua visão da vida como interioridade, como fluxo, tempo:

“The true life is not reducible to words spoken or written, not by anyone, ever. The true life takes place when we’re alone, thinking, feeling, lost in memory, dreamingly self-aware, the submicroscopoic moments.”

Point Omega é um livro de poucos excessos. Somente numa passagem ou outra, DeLillo faz um esforço excessivo para soar inteligente demais, como em alguns comentários de Finley sobre Elster (os drinks que tomam, a bengala que humaniza). No mais, é um texto de inegável elegância, em que um DeLillo um tanto sombrio e resignado diante do peso e da inexorabilidade do tempo, cria um pequeno universo de silêncio e desencanto.

22.7.12

a montanha da alma


Já se vão alguns anos desde que li “A montanha da alma” (“Soul Mountain”), de Gao Xingjian, o primeiro chinês a ganhar um Nobel de Literatura. Algumas lembranças fortes e, sobretudo, certa atmosfera onírica permanecem. Foi dos livros mais originais e impressionantes que já li.
Parte da melancolia que encanta no livro vem desse personagem que perambula pela China depois de ganhar uma segunda vida; já no começo, somos informados de que o protagonista havia descoberto que o laudo sobre sua suposta doença terminal estava equivocado, como de resto aconteceu com o próprio Gao Xingjian, erroneamente diagnosticado com um câncer de pulmão. Depois desse momento revelatório, o alter-ego de Gao irá percorrer o interior da China recolhendo histórias miúdas, locais, narrando ou testemunhando os acontecimentos como um personagem existencialista metido em vilarejos da imensidão chinesa, uma espécie de Roquentin ou Mersault fora do lugar.
Há histórias extraordinárias, de homens (o homem perdido na montanha; a menina contorcionista; o homem picado pela cobra; a prostituta), de rituais chineses (os festivais; o barco-dragão; os sacrifícios aos ancestrais), de animais (tigres; pandas que precisam de homens para alimentar-se). A graça maior está em seu entrecruzamento, na vertigem provocada pela sucessão e costura das histórias, pela maneira como se desdobram de fatos e sensações. Como diz Gao, “fiction is different from philosophy because it is the product of sensory perceptions” (“a ficção é diferente da filosofia porque é o produto de percepções sensoriais”).
Esse aspecto fabuloso e envolvente é reforçado pela maneira original como Gao multiplica suas vozes e pontos de vista. Há algo de hipnótico na alternância entre a narrativa em 1a pessoa (o protagonista em busca, ao longo do Yang-Tsé, da “realidade” que quase lhe escapa pela morte) e em 2a pessoa (a busca de Lingshan, a “montanha da alma”). A voz na 2a pessoa, narrada no presente, é elegantemente eficaz para expressar certo distanciamento e a sensação de irrealidade que o livro provoca: “In the orange-yellow sunlight of early morning, the mountain scenery is fresh and the air is clean, and it doesn’t seem that you had a sleepless night.” (“Na luz laranja-amarela do sol do começo da manhã, o cenário da montanha é fresco e o ar é limpo, e não parece que você passou a noite sem dormir.”)
“A montanha da alma” é um belo livro sobre associação e indistinção entre memória e realidade. O envolvimento não vem apenas do exótico, das histórias e a da atmosfera chinesa, mas da agradável estranheza causada pela maneira como Gao as desfia e tece. A certa altura, o protagonista, num exercício de auto-reflexão, afirma, “it seems in the end that I am just a connoisseur of beauty” (“parece que, no fim das contas, sou apenas um connoisseur de beleza”). Mais do que um mero conhecedor da beleza, Gao Xingjian produziu um dos romances mais enigmáticos e belos da literatura contemporânea.

7.7.12

o outro


Um exemplo de peça de teatro fundamentalmente filosófica – mais tese do que drama – é “El Otro (Mistério en tres jornadas y un epílogo)”, de Miguel Unamuno. É a história de dois gêmeos que se confundem e perdem a própria identidade. Separados pelo ódio (nesse caso, do outro e de si) e pelo amor da mesma mulher, um assassina o outro. Ocorre que, após o crime, o assassino não sabe quem é – ele mesmo ou o irmão. Confundem-se Caim e Abel, algoz e vítima. Perdida a identidade, nada restará além da loucura e do suicídio. Já não se poderá distinguir o assassinado do suicida.
Unamuno quer discutir semelhanças entre elementos aparentemente opostos: identidade e alteridade; algoz e vítima; vida e morte. Trata-se de relativizar as diferenças, de esvaziar anatagonismos morais. Para ele, tais dualismos esconderiam unidades e convergências fundamentais, como o instinto de violência, a ânsia de superar o outro, o desejo de conquista. O ato criminoso seria o resultado de uma conjuntura particular, em que é dado a um a possibilidade de cometer um crime, a outro, a circunstência de ser sua vitima. Por isso, os antagonismos seriam falsos ou, quando muito, circunstanciais, como se evidencia pelas visões de Damiana, a personagem dominadora:

“Abel es malo!... si no le mata Caín, le habría matado a Caín”; “El que se hace víctima es tan malo como el que se hace verdugo”; “Todo asesino asesina defendiéndose. Defendiéndose de sí mismo...”; “La tumba es cuna y la cuna es tumba”; “Caín el que sufre.”

A relativização moral do personagem chega ao niilismo. Ao eliminar a idéia de identidade e responsabilidade moral, tudo se redime, nada se condena. A ausência de culpa acaba por isentar opressão e crime.
Mais interessante do que esse dilema moral é a discussão existencial em si, não mais centrada no porquê da vida, e sim na definição da individualidade, da identidade pessoal. Não são apenas os outros que questionam quem é um ou o outro; é o próprio gêmeo sobrevivente que não sabe mais quem é. Esta confusão estaria presente de forma aguda nas duas situações-limite do homem: loucura e morte.
“El Otro” não emociona como drama; é um bom pretexto para Unamuno discutir suas idéias sobre relativismo moral e identidade do indivíduo.

3.6.12

três contos menores de Cortázar: a noite de barriga para cima; cartas de mamãe; bestiário


Numa entrevista à Paris Review, Hemingway disse que o bom escritor precisa, sobretudo, de um “built-in, shock-proof shit detector”, ou seja de um detetor de merda embutido e à prova de choque. Queria dizer que o maior defeito de um escritor é a ingenuidade, a falta de senso crítico para filtrar tolices e inocências. 
O pecado da ingenuidade pode acometer, no entanto, alguns dos melhores escritores. É a impressão que me fica depois de ler “A noite de barriga para cima” (“La noche boca arriba”), conto de Cortázar. A ingenuidade é dupla, tanto de estrutura como de execução.
O personagem principal sofre um acidente de moto. No hospital, febril, terá um pesadelo recorrente, em que se encontra numa “guerra florida”, perseguido por guerreiros comandados por sacerdotes astecas. O conto alterna momentos de vigília no quarto de hospital e situações de guerra, em que o personagem sempre procura fugir dos seus perseguidores. Quando, ao final, é capturado, preso e conduzido à sua execução num templo de sacrifício asteca, somos informados de que o pesadelo da perseguição era a realidade, ao passo que o acidente de moto e a recuperação no hospital, apenas um sonho estranho e bom.
É uma idéia um tanto ingênua, estruturada de forma quase didática na alternância de sonho e vigília. O problema é que a execução tampouco é boa. Não vemos aqui um Cortázar de humor sutil, de imagens sofisticadas. Elementos como o amuleto no peito, o túnel e as escadas para o sacrifício religioso soam como clichês, e invenções como o grupo dos “motecas” (evocação de motociclistas e cultura pré-colombiana do tipo olmecas, astecas) fazem gemer qualquer shit-detector.
 
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“Cartas de mamãe” (“Cartas de mamá”) é a história de uma obsessão, de uma culpa. Luis vive com Laura em Paris, e toda vez que recebe uma carta de sua mãe, que permaneceu em Buenos Aires, revive o sentimento de que a mudança para Paris foi sobretudo o abandono de uma cidade, de uma mãe solitária e de um passado que era melhor esquecer: “cada carta de mamá (...) cambiaba de golpe la vida de Luis, lo devolvía al pasado como un duro rebote de pelota”.
A mistura entre a revolta e a culpa será agravada por um erro de sua mãe numa das cartas. Ela se refere a Nico, o irmão morto de Luis, como se ele ainda estivesse vivo. Nico era o namorado de Laura, quando adoeceu e viu surgir a paixão e o romance entre Laura e Luis. Com sua morte, provocada ou não pelo desgosto com o irmão, Laura e Luis casam-se e seguem imediatamente para Paris, fugindo da condenação da família. A angústia maior de Luis deriva dessa culpa ante o irmão, mas também do ciúme gerado pelo silêncio de Laura, incapaz de referir-se ao cunhado. As cartas seguintes revelarão que o erro da mãe não era fortuito – ela terá enlouquecido – e quando anuncia a chegada próxima de Nico a Paris, tanto Luis quanto Laura, separadamente, estarão à espera do fantasma de Nico na estação.
Não é dos melhores contos de Cortázar, mas consegue, ao mesmo tempo, transmitir a mistura de indignação e culpa do protagonista e introduzir o elemento surreal e fantástico derivado não da possibilidade de chegada do rapaz já morto, mas da estranha credulidade do casal.
 
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Mais um conto de Julio Cortázar pelos olhos de uma menina é “Bestiário” (“Bestiario”), que conta a história de Isabel, que vai passar as férias de verão na casa dos tios Funes, “Los Horneros”. Lá ela gosta de brincar com o primo Nino (os jogos, a construção dos formigueiros, dos herbários), de acariciar “las manos blancas” de tia Rena e de observar a introspecção do tio filósofo Luis e a irritabilidade de tio Nene. Cortázar dá-nos as impressões vagas e líricas de Isabel, e esconde-nos os detalhes familiares (qual exatamente a relação entre a família de Isabel e os Funes, qual a natureza do assédio de Nene sobre Rena) e oferece-nos apenas referências indiretas à característica mais marcante de “Los Horneros”: a presença de um tigre na casa. É essa presença que determina em grande medida os movimentos de todos, quando e onde comer por exemplo. Em meio às observações e reflexões de Isabel sobre a família, sobre os bichos e folhas (nunca sobre o tigre), vamos entrevendo detalhes insuficientes da relação de Nene e Rena e do “modus vivendi” com o felino, do sistema de avisos e alertas sob o comando do capataz.
Cortázar nunca chega a esclarecer esses dois mistérios (o que dá ao conto seu estado de suspensão, de ligeira irrealidade), apenas faz com que venham a convergir ao final. Sem uma clareza de intenções previamente enunciada, Isabel indica ao tio Nene a localização errada do tigre. Para íntima e muda gratidão de tia Rena, o gesto de Isabel a livrará de uma vez por todas dos assédios de Nene.

20.5.12

a montanha mágica


É sempre um compromisso muito particular começar a ler um romance que se aproxima do milhar de páginas e pesa nas mãos. Abre-se o livro com a sensação de que um relacionamento de longo prazo se inicia, e que a experiência, para o bem ou para o mal, tenderá a deixar alguma marca, ao menos se o leitor tiver o tempo e a paciência de concluí-la.
Com suas 957 páginas na versão em português, traduzida por Herbert Caro, “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, é desses livros que exigem um disciplinado envolvimento do leitor. É um belo livro, um tour de force, mas é difícil não o ler com a impressão de que o tempo, um dos temas do livro, não lhe tem feito muito bem.
Mann fez um romance de idéias sem conseguir fugir de certo didatismo. É instigante na substância e conservador na forma. Personagens como Settembrini e Naphta, com seus longos diálogos, são veículos de teses, interessantes sempre, brilhantes muitas vezes, mas que parecem pairar acima do livro, lembrando-nos de quão inteligente e versátil é o autor. As conversas sobre espírito e corpo, sobre o “eu orgânico”, sobre razão e fé têm algo ao mesmo tempo de cativante e frustrante. Em muitas passagens, senti-me subestimado como leitor, não pelas idéias em si, mas pela solução fácil do diálogo sob medida, enxertado para dar voz a Mann. Estavam a serviço do autor, não da história que criou.
A estrutura convencional já se percebe de início. Narrado em terceira pessoa, o livro começa no presente, com a viagem do protagonista Hans Castorp ao sanatório de tuberculosos para visitar o primo, retorna ao passado para contar a vida pregressa de Castorp e volta a situar-se no presente de sua visita, que se transformará numa estadia definitiva.
Como romance de idéias, há muitas e boas. A doença como culto, que forma uma espécie de aristocracia da morbidez, do “quanto mais doente, melhor”, é um dos temas recorrentes e reflete o estado de espírito de um mundo europeu do entre-guerras em que predominava o sentimento de decadência e fim dos tempos. Há um desejo de prisão, de isolamento, em que ficar (internado) é ter liberdade (pg. 304). A morte é a companheira sedutora dos internados, embora Mann nos diga que “a nossa morte é assunto dos sobreviventes, mais do que de nós próprios.” (pg. 708)
Também o tempo em si é matéria central do livro. Mann fala-nos do tempo particular do sanatório, em que a paralisia e a monotonia parecem acelerar o ritmo da vida, numa reversão do senso comum de que é a riqueza de vivências e acontecimentos que adiantam a passagem do tempo. Há o tempo de cima, da montanha, do Sanatório Berghof, e o tempo de baixo, da planície, da vida comum. Algumas das melhores reflexões de Mann tratam da natureza inapreensível do tempo: “na imensa monotonia do espaço afoga-se o tempo. Onde reina a uniformidade, o movimento de um ponto a outro deixa de ser movimento. Onde isso acontece já não existe o tempo.” (pg. 730)
Há belas cenas, é verdade. Lembro-me das festas e banquetes no sanatório, da euforia febril dos doentes, da melancolia de Castorp. Difícil não se envolver com sua paixão pela enigmática Clavdia Chauchat (essa Cláudia “gato-quente” que é um misto sedutor de Europa e Ásia), mesmo quando Mann esgarça os limites do verossímil e coloca frases espirituosas em francês na boca de um liricamente limitado e circunstancialmente bêbado Castorp, diante da bela Chauchat: “l’échine qui descends vers la luxuriance double et fraîche des fesses”  (“a coluna que desce em direção à exuberância dupla e fresca das nádegas”). Pena que tudo se dilui um pouco na coleção infindável de personagens que chegam e partem do sanatório e nas múltiplas dissertações do autor. Talvez falte em Mann, como em Dostoievski, certo sentido da medida, embora a literatura hiperbólica e sentimental do russo sempre pareça mais charmosa que a literatura hipercerebral do alemão.

15.4.12

quatro contos menores de Borges: a forma da espada; três versões de Judas; o fim; a seita de Fênix


Num livro tão inspirado e original como “Ficciones” (1944), de Jorge Luís Borges, quatro contos parecem menores quando comparados aos demais.

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“La forma de la espada” (“A forma da espada”) é o segundo conto da seção “Artificios”. Conta a história de uma cicatriz, um arco no rosto do “Inglês de la Colorada”, irlandês que participou da guerra de independência, passou pelo Brasil e foi parar no interior da Argentina. A história da cicatriz é a história de uma traição, que só se revela ao fim: em lugar do estóico revolucionário que o abrigara na Irlanda, o protagonista-narrador é na verdade o marxista covarde que o traiu e fugiu, levando consigo a marca de sua infâmia. A surpresa final, em que o narrador revela sua identidade, não salva o conto, embora torne compreensível o discurso curiosamente erudito (com menções a Schopenhauer e Shakespeare) que parecia tão incongruente com o aspecto rural e severo do narrador.

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“Trés versiones de Judas” (“Três versões de Judas”), também da segunda parte (Artificios), lembra um conto da primeira (El jardín de senderos que se bifurcan), chamado “Examen de la obra de Herbert Quain”. Ambos tem a forma de um comentário sobre a obra do autor, com o pequeno detalhe de que tanto o autor como a obra são imaginários. Nos dois contos, Borges concebe e disseca algumas idéias fantásticas que não pode desenvolver de outra maneira se não por meio da própria ficção.
O autor examinado em “Trés versiones de Judas” é Nils Runeberg, que viveu em começos do século XX, como acadêmico da Universidade de Lund. Borges analisa os estudos heresiáticos de Runeberg, que procurou reinterpretar o papel de Judas. As três versões de Judas concebidas pelo nórdico, como um progressivo exercício de auto-iluminação, são as seguintes:

1) Judas como reflexo de Jesus: “Judas, único entre los apóstoles, intuyó la secreta divinidad y el terrible propósito de Jesús. El verbo se había rebajado a mortal; Judas, discípulo del Verbo, podía rebajarse a delator.”

2) Judas como praticante da renúncia: “El asceta, para mayor gloria de Dios, envilece y mortifica la carne; Judas hizo lo propio con el espíritu. Renunció al honor, al bien, a la paz, al reino de los cielos, como otros, menos heroicamente, al placer (...) Obró con gigantesca humildad, se creyó indigno de ser bueno.”

3) finalmente, Judas como Deus: “Afirmar que fue hombre y que fue incapaz de pecado encierra contradicción (...) Dios totalmente se hizo hombre hasta la infamia, hombre hasta la reprobación y el abismo. Para salvarnos, pudo eligir cualquiera de los destinos que traman la perpleja red de la historia; pudo ser Alejandro o Pitágoras o Rurik o Jesús; eligió un ínfimo destino: fue Judas.”

Runeberg morreu acossado pelo medo do castigo de Deus, medo de ser punido por haver descoberto sua secreta identidade: Runeberg “agregó al concepto del Hijo, que parecía agotado, las complejidades del mal y del infortunio”.
“Três versões de Judas” não é dos grandes contos de Borges porque não passa de um artifício que ele constrói para desenvolver idéias imaginosas sobre temas extraordinários como a teologia ou a história. Vale, como sempre, por sua prodigiosa imaginação.

xxx

“El fin” (“O fim”) é um conto curtinho de Borges, em que ele narra a história de um duelo e de uma morte, que ao final saberemos que é a desse grande personagem argentino chamado Martín Fierro, do poema de José Hernández.
Borges constrói o conto tendo como ponto de vista a imobilidade de um velho paralisado sobre uma cama, a visão desse dono de bar chamado Recabarren, que sofreu uma espécie de derrame e passa seus dias deitado, olhando a planície pela janela: “hay una hora de la tarde en que la llanura está por decir algo; nunca lo dice o tal vez lo dice infinitamente y no lo entendemos, o lo entendemos pero es intraducible como música”. Por meio dele, saberemos de modo breve a origem da sua paralisia (“al acomodar unos tercios de yerba, se le había muerto bruscamente el lado derecho”) e acompanharemos a chegada de um forasteiro e seu duelo com o negro violonista que queria vingar a morte do irmão. Borges contrasta o mundo retraído do acamado com a espírito viril e violento dos duelistas.
O duelo e os diálogos dos rivais soam hoje previsíveis, os efeitos da contraposição entre a enfermidade e o conflito não impressionam. As melhores passagens falam do estoicismo e da resignação de Recabarren: “a fuerza de apiadarnos de las desdichas de los héroes de las novelas concluimos apiadándonos con exceso de las desdichas propias; no así el sufrido Recabarren, que aceptó la parálisis como antes había aceptado el rigor y las soledades de América”. É um conto de gaucho, com diálogos de western, embora muito inferior aos contos de duelos e gauchos de outros livros de Borges, como “El informe de Brodie”.

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“La secta del Fénix” (“A seita de Fênix”) é um conto estranho de Borges. Em quatro páginas curtas, Borges nos fala dessa confraria – mais um dos seus artifícios imaginosos – que não se distingue por raça, nacionalidade ou traços próprios, mas tão somente por um aparente atributo – seria a eternidade individual ou da própria confraria? – e por um ritual, o Segredo. O Segredo não nos é revelado inteiramente, temos apenas qualificações (ridículo, penoso, vulgar...) e o conhecimento de que é executado por seres inferiores (crianças, escravos) e com objetos simples (rolha, cera ou goma arábica), prescindindo de templos.
Borges nos oferece um conto “aberto”, mas com caminhos tão pouco interessantes a seguir, que não chega a nos tentar a preencher seus dois enigmas.

25.3.12

Hedda Gabler


“Hedda Gabler”, a personagem que dá título à peça de Henrik Ibsen, é uma arrogante, egocêntrica e entediada filha de um general já falecido. Com pendores aristocrátcos, mas sem paixão alguma, casa-se com um acadêmico e torna-se Hedda Tesman, o que em nada muda sua insensibilidade e egoísmo. Em torno dela, e por sua ação, ocorrerão pequenos conflitos, algumas mortes, previsíveis ou não. Em lugar de movê-la de seu tédio, esse conjunto de perversões domésticas aumenta sua desilusão e indiferença diante da vida. Num gesto banal, quase corriqueiro, Hedda comete o ato extremo.
A peça tem a contenção e a frieza da Noruega de Ibsen. Não gira em torno de grandes temas sociais, eventos históricos ou paixões arrebatadoras. Trata de relações familiares doentias, de diferenças sutis de classe, de personagens desapaixonados. A motivação do dramaturgo parece ser a de criar um ser gélido e seu pequeno império de manipulação familiar, que determina a vida dos personagens que a cercam como peças de um jogo caprichoso. O cenário ideal deste jogo é o salão de Hedda Tesman, onde o marido, o conselheiro e os amigos orbitam em torno da personalidade forte da anfitriã. Vive-se o formalismo banal, a frieza do mundanismo, regidos pela atitude doentia da protagonista. De anormal e transgressor há apenas a figura de Lövborg, ex-amigo e pretendente de Hedda, que morre por seus excessos, em parte pelas mãos dela mesma, que quer vingar-se dele por conta de sua relação com uma conhecida, Thea Elvestad. Genialidade e paixão não têm lugar no salão do casal Tesman.
Ibsen constrói sua peça com pequenos movimentos, mudanças e gestos sutis, que revelam o caráter de Hedda, como a cena do chapéu de Julie Tesman, da troca do nome de Thea (Thora), da oferta de bebida a Lövborg. As mudanças do cenário funcionam como um relógio ao longo de um dia (o piano em novo lugar, a vela queimando, portas e cortinas que se abrem e fecham), tão delicadas como a escolha das palavras. Mesmo os grandes gestos e rupturas, como o tiro simulado no conselheiro, a queima do manuscrito de Lövborg e o suicídio, são marcados pela indiferença da protagonista, o que retira qualquer elemento trágico da história. Uma tragédia requer sentimentos e desejos fortes, causas elevadas ou grandes injustiças, tudo o que não se encontra no mundo pequeno da entediada Hedda e de seu círculo de cultivadores. É a frieza dos personagens e de seu meio, que Ibsen quer mostrar-nos de maneira igualmente fria e desapaixonada.

10.3.12

pornopopéia


O humor ocupa um lugar muito particular na literatura. Não é difícil saber se algo é cômico ou não; engraçado ou entediante. O riso é o metro. Mas a quantidade de riso e choro que uma obra provoca não define sua grandeza. Se assim fosse, os dramalhões e os anedotários seriam as formas maiores da literatura. Quase sempre é difícil avaliar o valor literário do humor.
Tome-se a literatura brasileira. Há humor em obras de Machado, Nelson Rodrigues, Mário e Oswald de Andrade, Drummond, Rubem Fonseca, entre outros. Mas são poucas as obras de certo peso que foram deliberada e fundamentalmente construídas em torno do humor. Penso, por exemplo, em “O púcaro búlgaro”, de Campos de Carvalho, ou “Armadilha para Lamartine”, de Carlos & Carlos Sussekind. Não há dúvida de que foram escritas como peças cômicas e de que funcionam bem como tal, mas é possível enquadrá-las como obras centrais da literatura brasileira? A tentação é grande de interpretar o humor que muitas ou algumas vezes resvala no escracho ou na piada excessiva como indigno da literatura como L maiúsculo.
Foi o que senti ao acabar de ler “Pornopopéia”, de Reinaldo Moraes. É um dos livros mais engraçados que já li, um calhamaço de 500 páginas sobre as aventuras sexuais de um cineasta decadente, contadas com uma linguagem de humor e escracho bem trabalhada, inventiva, brilhante às vezes. As risadas vêm das situações em si e de certo virtuosismo chulo, verbal, do autor na hora de narrá-las. Se as investidas de Bukovski tivessem de ser reescritas por Philip Roth ou Pynchon com o vocabulário dos redatores do Casseta & Planeta, “Pornopopéia” bem poderia ser o resultado dessa estranha mistura de propósitos e estilos literários.
O cineasta Zeca, diretor do experimental “Holisticofrenia”, está às voltas com a produção de um vídeo institucional sobre embutidos de frangos, pois precisa de algum dinheiro para as aventuras sexuais e alucinógenas e, sobrando algo, para a mulher e o filho. Em meio a sua crise de criatividade, compreensível tendo em conta o valor artístico de um comercial de frios de galinha, ele se mete em orgias e enrascadas dos mais diversos tipos. Reinaldo Moraes nos conta a história em tom de conversa com o leitor, um “você” insubstancial que acompanha o livro inteiro. Vale-se também de uma narrativa muito visual e descritiva, que faz jus ao narrador cineasta. Embora o livro não pareça um roteiro de filme, como Zeca parece pretender, são muitas as descrições detalhadas de pessoas (“Toda pose, a fulana, tailleur moderno, cor de aurora boreal em Júpiter”), de ambientes (o templo da Surubrâmane, o apartamento da produtora Khmer VideoFilmes Ltda.) e de situações pornoeróticas:

“O pentelhal do magrelo era apenas um prolongamento da pelagem de hominídeo cavernoso que lhe recobria peito, barriga e pernas. E a bunda era uma anedota macabra, chupada para dentro do rego, como se o cu, faminto, estivesse tentando engolir suas nádegas e a ele por inteiro. Era até atraente a figura, de tão repulsiva. Se eu me meter uma dia a refilmar o ‘Nosferatu’ do Murnau, como já passou pela minha cabeça (e do Herzog também, um pouco antes), vou propor ao Anselmo o papel do vampiro maledetto.”

O que dá graça ao livro é a riqueza da linguagem escrachada, o humor e a versatilidade do vocabulário, os trocadilhos, até certa preocupação de “mot juste” mesmo nas situações mais pornográficas e aviltantes. Moraes arrisca e consegue ser, umas poucas vezes, quase poético, como na cena do afogamento, em que desencava uma ou outra boa imagem para descrever seu estado de nadador em desespero (“eu era um náufrago de navio nenhum”; “um urubu geômetra descrevia círculos concêntricos em cima da minha ereção”; “o mar boiava em si mesmo”). A linguagem, por mais chula que seja, é adequada à história e, de certa maneira, mais atraente que a própria história, que não passa de uma sucessão de transas e trapalhadas. É raro ver o vocabulário urbano de gírias e palavrões do português explorado numa narrativa pornocarnavalesca com certa pretensão literária:

“O Rubinho nunca esteve em nenhum lugar onde viver não lhe doesse – como deve ter dito mil vezes o Fernando Pessoa.”

“Era inacreditável, mas eu estava pegando no pau dum cara com peitos maiores que os da Marilyn Monroe. (...) Aquela dessintonia manupeniana me provocou um profundo desconforto cognitivo.”

Embora tenha sido reduzido, como já disse o autor, de sua versão original de mais de mil páginas para as 500 da publicação, “Pornopopéia” se beneficiaria de cortes adicionais. São cacetes as supostas instruções ao potencial editor do roteiro/livro ou o excesso de conversas com o leitor, mesmo porque Moraes não tem o dom de Machado. O livro cai um pouco com a fuga do protagonista para Porangatuba. Há menos brilho e peripécias longe da São Paulo do cineasta.  
“Pornopopéia” encaixa-se bem na pequena lista de livros brasileiros que conseguem fundir humor e literatura, escracho e invenção. Moraes não chega a praticar o humor mais sofisticado (surrealista e nonsense) de uma Campos de Carvalho, mas seu livro, pela originalidade e malabarismos pornoverbais, tem o seu lugar na literatura brasileira.

6.2.12

Yerma


Yerma casa-se com Juan e quer ter filhos. Os anos passam, seu marido pensa mais no trabalho do campo, suas amigas parem, mas Yerma só faz angustiar-se com o filho que não vem. Chega a enamorar-se de outro homem, Victor, mas sua moral rígida a impede de trair Juan. Recorre então a rezas e simpatias, mas nada resolve seu problema e sua angústia, que acabam por minar a relação com o marido. Revoltada com a esterilidade do casamento, com a frieza de Juan, Yerma estrangula-o até a morte.
“Yerma” é uma peça em forma de poema trágico do espanhol Federico García Lorca. A força do texto de Lorca inspirou outros criadores, como Paul Bowles e nosso Heitor Villa-Lobos, que compuseram óperas baseadas na peça. 
A julgar por Lorca e outros poetas de Espanha, as mulheres espanholas parecem combinar de maneira espontânea e natural com as paixões violentas, com o vermelho das mortes trágicas, como em “Carmen” ou “A Casa de Bernarda Alba”. A dificuldade de uma peça como “Yerma” é, no entanto, a de construir a violência do trágico a partir do sentimento da esterilidade, que, por mais intenso que seja, está mais associado à retração do que ao impulso, à passividade do que à agressividade. O resultado é que a trama de Lorca parece por vezes um tanto artificiosa e exorbitante mesmo para os padrões hiperbólicos de uma tragédia. Não que a dor de uma mãe frustrada não seja extraordinariamente intensa. Apenas não é tão comodamente conciliável com a violência trágica quanto outros sentimentos e condições mais comumente encontrados em tragédias, como o amor interdito, a traição ou a perda do outro.
Daí que o melhor de “Yerma” não é a trama, mas a língua de Lorca. Há belas imagens e canções: “pero la noche que nos casamos me lo decía constantemente con su boca puesta en mi mejilla, tanto que a mí me parece que mi nino es un palomo de lumbe que él me deslizó por la oreja” ou “cada mujer tiene sangre para cuatro o cinco hijos, y cuando no los tienen se le vuelven veneno, como me va a pasar a mí.” 
Como na bela "Casa de Bernarda Alba", Lorca volta ao tema da tensão dos valores tradicionais, à dificuldade de seguir a moral rígida em sociedades arcaicas, o dilema do adultério e da fidelidade. Confrontam-se honra e prazer, moral e liberação, a casa da ordem e a rua das fofocas e desvios. Do confronto nasce a exasperação, a tensão, até a ruptura trágica, como se a rigidez dos valores levasse inevitavelmente à explosão dos impulsos mais profundos e violentos do homem.
Entre os personagens da peça, Yerma é naturalmente a figura de maior presença, com a lenta transformação do seu desejo em obsessão trágica. Mais interessantes são, no entanto, as mulheres anônimas de Lorca: as lavadeiras, as muchachas, as velhas, que aparecem ou como figuras místicas e sábias ou como fofoqueiras, agentes da intriga. Cantam como nos coros das tragédias gregas e preenchem a história com certa magia. Há sempre um toque de fatalidade e de sombras em sua aparição, como se anunciassem o final trágico. São elas que caracterizam a tragédia espanhola: a mulher passional e misteriosa se expressa por suas falas e gestos.

23.1.12

as mênades; ônibus


“Las ménades” (“As mênades”) é um conto de natureza fantástica de Cortázar. Como em “Circe” (outro de seus contos), o autor recorre à mitologia grega para dar título a uma história cujos personagens se comportam de maneira desviante, em que o limite do verossímil é ultrapassado por uma espécie de patologia do comportamento, que tende ao violento ou ao mórbido. No caso de “Circe”, os namorados de Delia Mañara morriam pelo estranho hábito de Delia de fabricar bombons morbidamente recheados.
Em “Las ménades”, um assíduo freqüentador de concertos vai ao teatro ouvir mais uma apresentação da orquestra da cidade, conduzida pelo dedicado maestro, que completa "bodas de prata" na regência. O programa, com Strauss, Debussy, Mendelssohn e Beethoven, parece adequado à “gente tranquila y bien dispuesta que prefiere lo malo conocido a lo bueno por conocer”, conforme comenta nosso melômano assumidamente resmungão. Em primeira pessoa, ele nos relatará o completo embevecimento da platéia a cada número apresentado, a comoção lacrimosa, a “fratenidad en la admiración que por un momento hace tan buenos a los seres humanos”: “de todas maneras, esos rostros rubicundos, esos cuellos transpirados, ese deseo latente de seguir aplaudiendo aunque fuera en el foyer o el médio de la calle, me hacían pensar en las influencias atmosféricas, la humedad o las manchas solares, cosas que suelen afectar los comportamientos humanos”.
O que parece um encantamento um pouquinho excessivo vai se revelando com o passar do concerto como a mais rematada loucura coletiva: “casi nadie oyó el primer grito porque fue ahogado y corto” (“quase ninguém ouviu o primeiro grito porque foi afogado e curto”). Dos gritos aqui e ali ao assédio físico e violento da turba ao maestro e aos músicos, será um processo em crescendo, que Cortázar revelará em doses progressivas, para espanto do narrador desiludido e dos leitores. A exemplo das mênades, musas impulsivas e violentas de Dioniso, a platéia enlouquece em sua paixão pelos músicos, intoxicada pela notas e pela figura do maestro. Restará aos músicos a tentativa de fuga, frustrada pela fúria gulosa dos espectadores.

xxx

Se o fantástico é um dos elementos mais interessantes nos contos de Cortázar, outro muito freqüente em suas histórias – e muito próximo a este – é o surreal, onde se soma um elemento mais puramente onírico e de maior subversão do real.
Tome-se o conto “Omnibus” (“Ônibus”), que narra a curiosa viagem de ônibus por Buenos Aires de uma moça chamada Clara. Ela pega o 168 em Villa del Parque e quer ir a Retiro, perto da Recoleta, na Torre dos Ingleses, tendo de passar, no caminho, pelo cemitério de Chacaritas. Sobe, paga o seu bilhete inteiro (o que já causa estranheza, ao indicar que não descerá no cemitério), senta-se e é observada por todos os demais passageiros, com olhares de indiferença (“y la miró dulcemente como una vaca sobre un cerco”), desconfiança ou até mesmo hostilidade. Todos estão com flores nas mãos, flores dos mais diversos tipos. Só ela e um segundo passageiro desavisado, que sobe em seguida, não carregam flores. Depois que todos os outros descem em Chacaritas (“se alinearon las margaritas, los gladiolos, las calas”), o motorista parte a toda velocidade, avança e freia bruscamente, desrespeita sinais e guardas e se levanta do volante de tempos em tempos para tentar atacar Clara e seu companheiro sem flores, impedido sempre pelo bilheteiro. Clara e o rapaz se penitenciam de seus erros (“Si por lo menos me hubiera puesto unas violetas en la blusa”) e salvam-se saindo a toda carreira quando o ônibus pára no ponto certo. Mais tranqüilos, compram no florista da praça “dos ramos de pensamientos” e seguem caminhando, “cada uno llevaba su ramo, cada uno iba con el suyo y estaba contento.”
Cortázar faz, neste caso, a transição da dúvida e da incongruência iniciais ao absurdo mais rematado no final, com direito à bela imagem dos ramos de flores de pensamento. Dá-nos uma história surrealista com paisagem e personagens buenairenses, tão ao seu gosto. 

15.1.12

o jogo dos papéis


“O jogo dos papéis” (Il giuoco delle parti) é um peça de teatro filosófica e surrealista de Luigi Pirandello. Nela, um homem procura afastar-se de seus próprios sentimentos e agir conforme a vontade alheia, particularmente a de sua mulher. Sempre lhe diz sim e lhe dá liberdade total, não se importando que ela viva sozinha e tenha outros relacionamentos. Exasperada com o comportamento submisso do marido, ela o leva a aceitar um duelo com um hábil esgrimista. Na última hora, ele renuncia a seu papel de provedor das vontades alheias e consegue fazer com que não mais ele, mas o amante de sua mulher, assuma o desafio e o duelo. Livre, retorna ao vazio de sua vida.
Pirandello criou uma peça estranha e incômoda, que parte de duas idéias básicas, duas teses. A primeira é a de que não só é possível desligar-se dos desejos e sentimentos pessoais, encarnando um personagem à mercê dos desejos alheios; haveria mesmo certa sabedoria e autodefesa em abandonar o próprio ego: o personagem que representa esse budismo laico de Pirandello é Leone Gala, o marido. A segunda idéia é a de que a liberdade total é uma prisão quando concedida, já que o gesto de concessão da liberdade anula o seu caráter libertador, como demonstrado pelo comportamento da mulher de Leone, Silia.
Com base nessas hipóteses, Pirandello cria um conflito entre dois pólos inconciliáveis -- Leone e Silia, renúncia e liberdade, nada querer, tudo querer. O casal Gala é complementado pela figura do amante de Silia, Guido Venanzi, vítima da dupla justamente por não encontrar papel no jogo neurótico que eles constroem. O triângulo circula pela peça movido por diálogos pouco verossímeis, com um toque surrealista, e por uma trama fácil, um tanto tola, que vai da invasão de domicílio da esposa à obrigação de desafiar o invasor ao duelo. São situações e diálogos que não sustentam ou aprofundam a caracterização dos personagens, e o resultado é uma peça de alguma ousadia mas de pouca graça. “O jogo dos papéis” não chega, portanto, ao nível das melhores peças de Pirandello, como “Assim é se lhe parece” ou “Seis personagem à procura de um autor.”

8.1.12

tema do traidor e do herói


“Tema del traidor y del héroe” é o terceiro conto da seção “Artifícios”, de Ficciones, de Jorge Luis Borges. A exemplo de “La forma de la espada”, conto do mesmo livro, também fala de uma história de heroísmo e traição entre irlandeses revolucionários. É, no entanto, um conto mais sutil e sofisticado, porque desenvolve – com inteligência e delicadeza – a idéia de que a história pode imitar a literatura.
Ryan quer descobrir o mistério em torno da morte do avô, o herói irlandês Fergus Kilpatrick, que teria sido assassinado por um traidor em um teatro, em 1824, às vésperas da revolução com que tanto sonhou. Em sua pesquisa, Ryan vai revelando uma série de coincidências do crime com a história (o assassinato de Júlio César) e com a literatura (elementos de Macbeth). Descobre ao fim que a morte de Kilpatrick foi de fato tramada, mas não pelos inimigos da revolução, e sim pelos próprios revolucionários, já que Kilpatrick, o líder, era na verdade o traidor. Desmascarado e sentindo-se culpado, Kilpatrick aceita “atuar” em seu próprio assassinato, que é planejado com base em Shakespeare (não só “Macbeth”, mas também “Julius Cesar”) e executado com precisão, como se fosse a morte não de um traidor, mas de um herói. A revelação de sua traição seria um golpe à causa e aos demais revolucionários; já sua morte heróica daria impulso à revolução.
O conto é muito inventivo, econômico (nada sobra) e ainda termina de modo genial:

“En la obra de Nolan (o verdadeiro herói, que desmascara Kilpatrick e com ele planeja sua morte gloriosa), los pasajes imitados de Shakespeare son los menos dramáticos; Ryan sospecha que el autor los intercaló para que una persona, en el porvenir, diera con la verdade. Comprende que el también forma parte de la trama de Nolan... Al cabo de tenaces cavilaciones, resuelve silenciar el descubrimiento. Publica un libro dedicado a la gloria del héroe; tal vez eso, también, estaba previsto.”

Não deixa de ser irônico que Borges diga que os executores do crime tenham utilizado as partes menos dramáticas das duas peças de Shakespeare. Borges não esconde sua relação de amor e ódio com o bardo, que ele julgava ser, em espírito, muito mais italiano e judeu do que propriamente inglês, pelo seu amor do drama e da hipérbole. Como disse Borges numa entrevista à Paris Review, um tanto ciumento e injusto com Shakespeare,

“He was very bombastic. (...) Even in such a famous phrase as Hamlet’s last words, I think: “The rest is silence.” There is something phony about it; it’s meant to impress. I don’t think anybody would say anything like that.”
(Ele era muito bombástico. (...) Mesmo numa frase famosa, como a das últimas palavras de Hamlet, creio que “O resto é silêncio”. Há algo de falso, de impostura nisso; foi feita para impressionar. Não acho que alguém diria algo assim.)