28.11.11

fantasmas


Com a esperança de rever meu juízo crítico sobre Paul Auster, autor não pouco celebrado, li “Ghosts” (1986), o segundo romance/novela da sua Trilogia de Nova York. Ao fechar o livro, meu juízo perliminar sobre o autor tornara-se, infelizmente, uma convição: “Ghosts” consegue ser inferior a “City of Glass”, o primeiro livro da trilogia.
Em “Ghosts”, Auster reincide no jogo puramente abstrato da metaficção, sem maior capacidade de envolver o leitor para além do elemento (precariamente) lúdico de um enigma sobre existência/identidade/trama. A exemplo do que ocorre em “City of Glass”, um detetive/observador perde-se em sua própria obsessão pelo objeto observado (ou pela observação em si) e parece sair das escalas normais de tempo, espaço e comportamento sem convencer-nos da necessidade ou da graça de fazê-lo. Dessa vez, Blue é contratado por White para observar Black, e se deixa levar pela observação do nada, da rotina imutável e entediante de Black. Ao final saberemos que foi Black quem o contratou para que pudesse ser observado, para que pudesse constatar que ele estava vivo.
Como já disse o crítico James Wood, em belo apanhado sobre a obra de Auster, para que o jogo metaliterário praticado pelo autor funcione, para que haja graça e surpresa com o efeito de suspensão e de reflexão sobre a própria narrativa que ele propõe, o leitor precisa estar convencido da história que tem diante de si. E é isto que Auster não nos proporciona. Não nos envolve ou impressiona com a história que conta, a ponto de ser dispensável e anticlimático o truque narativo que, lá pelas tantas, ele nos aplica em seus livros.
Auster peca também por um estilo ruim – o texto descuidado, com clichês (“writing is a solitary business”/”escrever é um negócio solitário”), com imagens e metáforas fáceis (“a knowledge as sudden and irrevocable as the slamming of a door”/“um conhecimento tão súbito e irrevogável quanto o bater de uma porta”...) –, pela inserção de um eruditismo gratuito, didático – Thoreau, Whitman, Hawthorne – e pelo esgarçamento ocasional da verossimilhança, infelizmente sem arrebentá-la de vez, o que seria mais intrigante como proposta. Personagens aparecem como abstrações ou alegorias, a começar por seus nomes. Da mesma maneira que o jogo da narrativa dentro da narrativa e da troca de identidades não têm, em Auster, a mesma sutileza e precisão que em Borges, os personagens alegóricos de Auster não têm a pungência e a força dos personagens alegóricos de um Kafka ou de um Pynchon. Tramas (mal) subvertidas e personagens (mal) alegorizados não costumam combinar-se bem.
Auster vale pela legibilidade, pelo charme de alguns enigmas, pelo esforço do dénouement gracioso, mas não muito mais do que disso.

20.11.11

carta a uma senhorita em Paris


“Carta a una señorita en París” é mais um belo conto de Cortázar que transita entre o fantástico e o surreal. Como sugere o título, é escrito em forma de carta, endereçada a uma mulher que vive na capital francesa, amiga do narrador (ou narradora possivelmente, embora não seja uma questão relevante no conto), e cujo apartamento na calle Suipacha, em Buenos Aires, o missivista passou a ocupar por sugestão da proprietária.
O surreal é pressentido desde o começo, com a referência a objetos e nomes inventados: o jogo de violino e viola no quarteto de Rará, uma modulação de Ozenfant... Cortázar não tardará, no entanto, a revelar o que há de incomum no narrador (o fato de que vomita, de tempos em tempos, um filhote branco de coelho), mesmo porque parecerá algo previsível e até costumeiro conforme a narrativa avança e o fantástico se torna macabro:
“Cuando siento que voy a vomitar un conejito, me pongo dos dedos en la boca como una pinza abierta, y espero a sentir en la garganta la pelusa tibia que sube como una efervescencia de sal de frutas.”
A carta dedica-se em sua maior parte a descrever como o narrador convive com a anormalidade, como alimenta, faz crescer e se desfaz dos coelhos e como adaptou sua rotina ao apartamento da amiga. Os coelhos dormem de dia dentro de um armário, e o narrador solta-os e alimenta-os à noite, quando a empregada Sara, que de nada desconfia, está dormindo:
“Son diez, casi todos blancos. Alzan la tibia cabeza hacia las lámparas del salón, los tres soles inmóviles de su día, ellos que aman la luz porque su noche no tiene luna ni estrellas ni faroles.”
O que haverá de verdadeiramente inesperado e fantástico é a quebra da regularidade, a quebra de um rotina aparentemente normal, não fosse a origem dos coelhos. A tragédia será pressentida pelo fato de que o narrador perde o controle dos nascimentos, como se um limiar numérico fosse ultrapassado e deflagrasse o desastre:
“En cuanto a mí, del diez al once hay como un hueco insuperable. Usted ve: diez estaba bien, con un armario, trébol y esperanza, cuántas cosas pueden construirse. No ya con once, porque decir once es seguramente doce.”
A desgraça será dupla, e a destruição do apartamento a menor delas, num estilo que faz lembrar um filme B com animais aparentemente domésticos e domesticáveis insubordinando-se de forma violenta contra seus donos, o que não nos deixa esquecer certo gosto de Cortázar por fundir referências de baixa e alta cultura:
“Rompieron las cortinas, las telas de los sillones, el borde del autorretrato de Augusto Torres, llenaron de pelos la alfombra y tambiém gritaron, estuvieron en círculo bajo la luz de la lámpara, en círculo y como adorándome, y de pronto gritaban, gritaban como yo no creo que griten los conejos.”
A atitude macabra dos coelhos leva ao fim trágico, a morte dos coelhos e do próprio narrador (mais provável do que a de Sara), com seus corpos ensangüentados sobre a rua Suipacha: “Está este balcón sobre Suipacha lleno de alba, los primeros sonidos de la cuidad. No creo que les sea difícil juntar once conejitos salpicados sobre los adoquines, tal vez ni se fijen en ellos, atareados con el otro cuerpo que conviene llevarse pronto, antes de que pasen los primeros colegiales.” A carta bem pode ser, afinal, a carta de um suicida.
A graça do conto está no contraste entre o tom neutro, factual do narrador e o absurdo da situação que vive. Cortázar escreve-o com grande delicadeza. Há belas imagens sobre as menores coisas, desde a natureza dos pequenos coelhos (“y después tan no uno, tan aislado y distante en su llano mundo blanco tamaño carta”) ou à sua noite diurna dentro do armário (“en su cúbica noche sin tristeza duermen once conejitos”) até os objetos do apartamento emprestado (“me va calcinando por dientro e endureciendo como esa estrella de mar que ha puesto usted sobre la bañera y que a cada baño parece llenarle a uno el cuerpo de sal y azotes de sol y grandes rumores de la profundidad”).
Um conto macabro e belo, que faz jus à habilidade de Cortázar de naturalizar o fantástico e o surreal e de mostrá-los muitas vezes com um toque poético deliciosamente inadqueado para o tema que descreve.

14.11.11

a ilíada


O conflito entre Aquiles e Agamenom no começo da Ilíada é fundamentalmente um conflito derivado de uma “luta de classes”, em que Aquiles se insubordina contra a apropriação indevida pelo monarca da “mais valia” do seu trabalho de saquear os povos vencidos em guerra. Como diz Aquiles, “o calor e o fardo da luta recaem sobre mim, mas quando se trata de repartir o espólio, é você quem leva a maior parte”. Essa disputa deriva de uma dissociação entre poder e força, já que Agamenom detém o poder político como rei e Aquiles a força física. Ambas são concessões dos deuses, o poder de Agamenom, legitimado por Zeus, a força de Aquiles, conferida por Tétis.
Bela é a história da força e da fraqueza de Aquiles, de que não se faz menção na Ilíada. Sua mãe, a ninfa marinha Tétis, mergulhou-o no rio Styx, para fazê-lo imortal, mas teve de segurá-lo pelo calcanhar, que não foi banhado pelo rio mágico. O mesmo calcanhar que permitiu a ele não ser tragado pelo rio, revelou-se seu ponto fraco, que o levou à morte pelas mãos de Paris.

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Tétis endossa o pleito de vingança de seu filho, Aquiles, que, de início, quer a derrota dos gregos contra os troianos para provar que ele é indispensável para os gregos. Zeus promete, de forma esquiva, indireta, atender ao pedido de Tétis. Hera, a Rainha do Olimpo, se insubordina contra o marido. Ele a ameaça com suas “mãos inconquistáveis”. Hefestus pede que ela se curve, e é escarnecido pelos outros deuses, que gargalham de seu desengonço, de sua imperícia. Zeus manda sonhos falsos e rumores para enganar o Rei Agamenon, inimigo de Aquiles, para que inicie uma guerra suicida. Todos os deuses tomam partido na guerra, de um lado ou de outro. E chegarão a batalhar entre eles mesmos por causa do conflito entre os homens. Nada mais humano, visceralmente humano, que o Olimpo.

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Apesar do culto dos efebos e do homoerotismo masculino na Grécia antiga, não se pode, a julgar pela Ilíada, relegar a mulher a plano tão inferior quanto se imagina. O que é a guerra de gregos e troianos senão a disputa por uma mulher, Helena, seduzida pelo trojano Páris, que a rouba do grego Menelaus? Haverá outras razões para o conflito, é verdade, mas sua causa imediata é a posse de uma mulher, tanto que a trégua teria sido possível pela simples entrega de Helena, pelo simples acerto de contas entre marido e amante, não fosse a vileza dos deuses sedentos de guerra, como Hera, Afrodite e Atenas.
A própria desavença entre os gregos Aquiles e Agamenom, no começo, ainda que seja uma disputa pelo controle dos espólios de guerra, não deixa de reduzir-se a um choque de orgulhos de guerreiros que não querem perder seus respectivos butins, ou seja, as mulheres que capturaram. É verdade que Aquiles parece demonstrar todo seu amor mais do que fraternal por Patroclus, quando este morre pelas mãos de Hector, mas isto enseja o desfecho da guerra, não o seu deflagrar, que se dá pela disputa de mulheres.
A “Ilíada” é um livro sobre homens, sobre homens em guerra, mas há espaço também, ainda que secundário, para mulheres de temperamento e presença fortes. A principal delas é Hécabe, a mulher de Priam e mãe de Héctor, que sobressai em dois momentos, sempre tentando prevenir, sem sucesso, uma ação de quem ela ama. Não conseguirá dissuadir Héctor de lutar contra Aquiles; não conseguirá dissuador Páris de resgatar o corpo de Héctor em posse de Aquiles. Mas o desespero e a força de sua súplica têm uma dignidade e um apelo próprios. Diante do filho Héctor chega a expor o seio em meio às lágrimas: “Héctor, meu filho, ela gritou, olhe isto e tenha pena de mim. Quantas vezes lhe dei este seio e o acalmei com este leite! Lembre-se daqueles dias, filho querido.”

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A guerra na Ilíada também pode ser vista, superficialmente, como um conflito gerado por lealdades familiares, ou melhor, pela fidelidade aos seus, mesmo quando são ineptos ou idiotas. Priam, rei de Tróia, apóia o filho Páris, que cometeu o erro fatal de seduzir a cunhada do rei inimigo. Agamenon, por sua vez, independentemente do interesse per se em conquistar Tróia, executará a vingança que o irmão, Menelaus, quer, traído que foi pela mulher Helena e pelo sedutor Páris.
A referência permanente aos vínculos familiares, às linhagens, é um traço de toda a Ilíada, em que os guerreiros são sempre identificados e apresentados como representantes de famílias, como descendentes. Basta ver como Enéias se apresenta diante de Aquiles no momento em que se preparam para a batalha entre os dois. Este é um elemento básico do mundo helênico, em que até os destinos -- a moira -- são transmitidos de geração a geração.

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Homero, modesto, ao tentar narrar um momento da guerra de gregos e troianos: “Mas como posso retratar isso tudo? Seria necessário um deus para contar essa história”.
E os deuses da Ilíada não narram o passado; contam o futuro, por símbolos, como a águia que é ferida pela cobra que pretendia dar aos filhotes e solta-a dos céus sobre os soldados troianos como um aviso de que não conseguirão destruir os gregos e seus navios encurralados. 

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Aquiles é o que se chamaria hoje de personagem mais complexo da Ilíada, mais distante portanto da forma estilizada, não-psicológica, que marca a caracterização de muitos mitos e heróis. Alterna orgulho e teimosia, bravura e egoísmo. Seu dilema é entre a vida curta na guerra, mas que seria imortalizada pela História, e uma vida longa, não abreviada, mas sem glórias. O exemplo mais evidente de sua mesquinhez é a ordem que dá a Patroclus, seu amigo mais próximo, de não avançar em direção a Tróia caso o curso da guerra fosse revertido, para que ele, Aquiles, pudesse ter a glória e o privilégio de ganhá-la, e de desfrutá-la com seu companheiro: “Como eu seria feliz se nenhum troiano sobrevivesse, nem um único, nem mesmo um grego, e nós dois sobrevivêssemos o massacre!”

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Os homens da Ilíada não são muito mais do que representações dos desejos e caprichos dos deuses. Por meio de sonhos, encantos, impulsos, ilusões – ou mesmo pela intervenção física direta – os deuses manipulam os desejos e ações dos homens como num teatro de marionetes. Há muitos exemplos, como o de Patroclus, fiel amigo de Aquiles, que nunca o trairia por livre arbítrio, mas é induzido por Zeus a descumprir a ordem do amigo. Sua morte é preparada por outro deus, Apolo (“Num momento, o deus pode fazer um homem corajoso fugir e perder a batalha; noutro, pode lançá-lo à luta”). O mesmo acontece com Héctor, do lado dos troianos, que também é induzido a um destemor suicida. Quase todas as grandes batalhas -- entre Menelaus e Páris, Aquiles e Enéias, Aquiles e Héctor – são manipuladas ou resolvidas pela ação de um deus, quase sempre em favor do lado mais fraco, como nos três casos acima, em que a morte dos troianos ou é evitada ou adiada. O paroxismo da intervenção divina ocorre quando Zeus, receoso de uma rápida vitória dos gregos por conta do retorno e da ira de Aquiles, resolve liberar os demais deuses para se intrometerem na guerra, cada um ao lado de seu grupo favorito.
Invejosos dos homens, da sua mortalidade, os deuses irão premiá-los ou puni-los principalmente na medida de sua capacidade de adorar a divindade. Há espaço, no entanto, para a noção que parece mais moderna de que a atitude da divindade para com o homem depende do comportamento e dos valores morais do homem: “Há dias no outono em que o campo inteiro dorme escuro e oprimido sob um céu tempestuoso, e Zeus envia a chuva torrencial como uma punição aos homens. Sua raiva é despertada porque, independentemente do olhar ciumento do céu, eles fizeram mal uso de seus poderes, lançaram sentenças espúrias em público e escurraçaram a justiça.”
Mas à inveja mistura-se piedade nesses tão contraditórios e incertos olhos dos deuses quando se detêm sobre o homem e a sua condição. É o que se nota na perplexidade de Zeus ante a fuga triste dos cavalos divinos e imortais de Aquiles, após a morte de Patroclus: “Pobres bestas! Por que as oferecemos, vocês que não têm idade e são imortais, ao Rei Peleus, que está fadado a morrer? Queríamos que vocês compartilhassem os sofrimentos de homens infelizes? De todas as criaturas que respiram e rastejam sobre a Mãe Terra, não há nenhuma mais miserável que o homem.”

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O sonho da arte – criar a vida – é manifestada de forma muito tocante e evocativa pelas mãos do deus Hefestus, na Ilíada, que forja um escudo novo para Aquiles, a pedido de Tétis, a mãe do herói. Homero descreve-nos as imagens entalhadas no escudo como uma obra viva, em que os acontecimentos se desenrolam no tempo (uma emboscada, um julgamento, uma guerra), as cores se transformam (o ouro, o negro) e a música se materializa. Como diz Homero, tão compassivo para com Hefestus, esse deus artista e aleijado, “o artista atingiu o milagre”.

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Com a “Ilíada”, tem-se uma boa noção do que é a morte entre os gregos, a visão sombria que têm do além, do Hades. Não há paraíso, como os cristãos conceberiam mais tarde, não há ascensão, céu, mas sim o subterrâneo, a escuridão, a profundeza, algo mais próximo da idéia cristã de inferno. Os deuses mesmos, imortais como são, temem o Hades, e ele próprio, Rei dos Mortos, não quer expor suas câmaras de decomposição. Morrer é fazer a travessia, a terrível viagem, “viajar para a melancolia do oeste”, como disse o amargurado Aquiles, saudoso de seu amigo Patroclus.
Se a idéia cristã de céu e de paraíso não está presente entre os gregos, a de alma, a de espírito que sobrevive à morte, já era comum entre eles. O espírito de Patroclus visita Aquiles num sonho, e o herói então exclama: “Ah, então é verdade que algo de nós sobrevive mesmo no Salão do Hades, mas sem intelecto, só o fantasma e a aparência de um homem; por toda a longa noite, o fantasma do pobre Patroclus (e parecia com ele) esteve a meu lado, chorando e gemendo, e dizendo-me todas as coisas que devo fazer.”
Impressionantes são os funerais, e o maior deles na “Ilíada” é naturalmente o de Patroclus, organizado por Aquiles. O fogo é o elemento principal; é na fogueira altíssima que se consome o corpo e se extinguem os homens e animais sacrificados. E os sacrifícios oferecidos por Aquiles a Patroclus, que incluem animais e homens, são proporcionais a seu amor e a sua ira.
O lado menos sombrio e mais festivo dos funerais são os jogos, precursores dos jogos olímpicos, em que há provas e prêmios em torno da corrida de carruagem, do boxe, da luta armada, da corrida a pé, do arremesso de peso e de dardo, do arco e flecha. Aqui aparece um Aquiles generoso nos prêmios e judicioso nos seus julgamentos. 
 
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A “Ilíada” se encerra com o encontro entre Aquiles e Priam, em que o herói grego entrega o corpo de Héctor ao rei de Tróia, para que ele possa realizar o funeral do filho em Ilium. É um dos pontos maiores da história, em que ambos, o herói e o rei, parecem mais do que nunca dignos da importância e do respeito que inspiram. Priam se arrisca a visitar o guerreiro furioso, ajoelha-se a seus pés, humilha-se ao beijar a mão daquele que matou seu filho, sempre com o intuito de dar ao filho o funeral que merece; já Aquiles tem a grandeza de conter sua fúria, de ver nos olhos de Priam o mesmo abandono e a dor que estão em si, e acaba por entregar o corpo de Héctor e de prometer uma trégua até que se concluam os funerais do seu adversário. Há uma clara idéia de nobreza no encontro entre estes dois personagens.
Mais do que a história do herói Aquiles, de sua tragédia ou a de qualquer outro personagem, a “Ilíada” é um livro de guerra, o relato de uma grande batalha, uma reflexão sobre a dignidade e a futilidade de guerrear. Não há comentários sobre estratégia ou tática, não há referência a fatores políticos ou econômicos que motivam um conflito, não há qualquer veleidade de se analisar “alta política”, a não ser que a expressão pudesse caracterizar as picuinhas e rivalidades do Olimpo. O que há é a recorrente descrição das batalhas, dos conflitos homem a homem, das intervenções dos deuses, o ir e vir da luta entre gregos e troianos, em que a sorte muda a cada momento, há avanços e recuos, ao ímpeto sucede o desespero, à vitória a derrota, e, sobretudo, há a morte, a morte em profusão, a morte que se multiplica e nada resolve. O correspondente moderno da guerra entre gregos e troianos é a Primeira Guerra Mundial, uma guerra sem avanços, sem solução, no equilíbrio das trincheiras, em que todos perdem, não há vencedores.
Na voz de Homero, se a dignidade das batalhas está na grandeza dos guerreiros, no seu desprendimento, no seu destemor, o ridículo da guerra, o seu horror, pode ser medido pela figura sombria, violenta e ignorante do seu deus, o deus da guerra, Ares. Não há nele inteligência ou dignidade; apenas a força bruta, imotivada, a força pela força. É ele quem melhor expressa a falta de sentido do conflito, que nasce de um ato tolo de sedução e caminha para o extermínio dos melhores homens, de um lado e de outro, como Aquiles e Héctor. Nesse aspecto, Homero é um narrador neutro. Ainda que saibamos que a vitória final será dos gregos, com a captura de Ilium, a dor e a tragédia não escolhem um lado apenas. A derrota é, em última instância, o destino dos dois lados, e é esta a herança e a lição maior da guerra.

6.11.11

garotos da fuzarca


“Garotos da Fuzarca”, que reúne contos e “histórias” de Ivan Lessa é, como não podia deixar de ser, uma bateria contra tudo e contra todos, um manual de iconoclastia e, muitas vezes, razão para uma boa risada. Não chega a provar que o filho de Orígenes Lessa é um escritor indispensável, como os comentários na contracapa e o prefácio de Millôr Fernandes nos obrigam a crer, mas não há dúvida de que seu humor nigérrimo, implacavelmente incorreto, muitas vezes preconceituoso, tem, apesar de tudo, a sua graça. Não é, no entanto, na tirada imprevista, que fuzila alguém, uma etnia ou uma nacionalidade inteiras, e que mistura referências culturais e populares as mais disparatadas, que o texto de Lessa é mais engraçado ou criativo. O melhor do autor é quando acerta no nonsense e na paródia.
Dois dos melhores contos do livro são “Como Bashir, a cabra, expulsou os demônios” e “Diários de Londres”. O primeiro é uma sátira impagável da devoção, islâmica nesse caso, em que o fervoroso seguidor de Alá, após transar com a filha do conhecido – com seu consentimento e mediante pagamento, “comme il faut” – presencia a descida do Inferno, dos diabos e gafanhotos que avançam com suas proezas sexuais e escatológicas. A mistura do fervor meticuloso (“Agachando-me com o natural cuidado de não dar as costas nem a frente para Meca, a túnica presa entre os quatro dentes que me restam na boca, comecei a obrar enquanto meditava sobre os ensinamentos do Profeta”) e das imagens gráficas e hiperbólicas (“Quatrocentos jatos de sêmen de fogo riscaram o ar e a inesquecível Bashir tombou como um folha de palmeira nas areias ora escaldantes de chamas diabólicas. Mas Alá, com sua providência, quis que os Demônios-Loiros se confundissem, pois, assustados com a súbita ejaculação, começaram a apontar e a disparar seus falos nojentos aos quatro ventos. Um dos Gafanhotos-Infernais, impregnados do líquido maldito, explodiu como explode por dentro o Homem quando este conhece Mulher”) criam um efeito cômico e uma heresia divertidamente carnavalesca.
Já nos “Diários de Londres”, Lessa leva a iconoclastia ao extremo, com toda a baixaria sexual, racial e moral, regada a humor cáustico e, apesar disso, ou por conta disso, com momentos divertidos. É uma festa de imagens e referências, com personagens improbabilíssimos e já cômicos no nome, como o Negro Ken, a Jovem Pat, o Doce Zulfa, reunidos num apartamento, quarto na verdade, de expatriados em Londres. Há um quê de Roberto Arlt de “Los siete locos”, o disparate como elo de um grupo de desviantes: “A Jovem Pat esfaqueou o Negro Ken. O Doce Zulfa, meditando sentado sobre uma bacia de chá de erva-cidreira, sorveu, por sucção anal, de um só – gole? – a infusão e disse que não agüentava mais nosso quartão em Earl’s Court. Eu acabara de me decidir a apoiar o PSD local, uma vez que este, assim como eu, nada representa ou ambiciona, a não ser a sua própria existência.”
Lessa também acerta em alguns contos mais convencionais, como em “Garotos da Fuzarca”, em que acentua a crueldade do estupro e da morte de Zefinha (atribuídos erroneamente ao negro Euclides), pela naturalidade como os narra e pelas referências banais ao cinema e à música, à Copacabana da época, à aparente inocência dos garotos e seus jogos de botões. Ou em “Senhor, tem pena de mim”, que, já críptico em suas referências ao Centro do Rio de Janeiro, é um conto do subentendido: um crime é cometido contra uma mulher, conhecemos alguns pensamentos do provável assassino, mas não temos acesso às circunstâncias da morte e a detalhes da vítima ou do próprio criminoso; o crime é um subtema distante do conto, que nada mais é do que um perambular pelas ruas do Rio.
Conto cruel e divertido é “A difícil arte de não escrever”, que já pelo título faz prever a bofetada na pretensão de escritores que deveriam reunciar ao ofício. O narrador do conto exerce uma tarefa muito mais complicada, a de tomar notas: “Aí está, pois: eu tomo notas. Livro é coisa de pobre; de gente que lê Veja; que escreve para publicação brasileira; que foi, é ou vai ser contratada pela Globo.” Suas notas, diz ele em alguma parte, são “chatas como um parágrafo de Autran Dourado”.
Mais leve na paródia, com humor menos negro, mas nem por isso menos eficiente, é o conto sobre Bolívar e seu cavalo Paco, “A espada de Bolívar, el Libertador de las Américas”. Entre outras aventuras, Simón senta-se a uma árvore de nachos ou faz uma promessa à Santa María de la Enchilada: “Nessas notas alegres – mi, sol, dó, fá, pa-ram-pan-pan – foram as Américas Liberadas”. O conto nelson-rodrigueano “Uma boneca ao relento”, sobre a esposa que “se oferece” para poder salvar o marido, também tem a sua graça, mas não o charme das histórias e o estilo do mestre que o inspira.
Ivan Lessa também é eficiente na evocação de um espírito de época, do período em que viveu no Brasil, quando certa melancolia se mistura à sua iconoclastia. “Perfeito roteiro para Londres” é uma coleção de frases e pensamentos soltos que formam um painel interessante na cabeça de um carioca dos anos 50. Há certa cacofonia brasileira, certa loquacidade, meio malandra, meio sem sentido, que soa bem, pela graça e pelo acerto. Neste caso, Londres é um pretexto, o lugar onde o carioca exorcisa sua carioquice. Nostalgia que não chega a neutralizar a militância de Lessa contra o Brasil e os brasileiros, ridicularizados até o último hábito, como nesta passagem de “Que fim levou o Edélsio Tavares?”: “Mas, como essas coisas de que nós, brasileiros, não conseguimos escapar – esta oscilação entre o passado e o futuro: a nostalgia da febre amarela e o regalar-se com a AIDS – tenho minhas ambivalências: ele me faz uma certa falta. Como me faz uma certa falta o garçom fanho, as mocinhas com barriguinha de feijão, o operário caindo do andaime, a testa suada do político dando vexame na televisão, os peixes morrendo na Lagoa Rodrigo de Freitas.”
Apesar do talento para o humor, Lessa pode ser chato, muito chato por vezes, com uma escrita espantosamente pretensiosa, hermética, auto-referencial, de onde não se tira ou compreende nada, como em “As convenções: as convenções” e em “Altos edifícios da noite”, que começa como paródia e termina como uma barafunda telegráfica. Lessa também chega, em algumas poucas vezes, a esforçar-se por ser cômico sem ter graça alguma, pela desmedida do escracho ou pela infantilidade da piada, como em “O bombonette” (sobre a relação entre o guerrilheiro torturado e o torturador), em “Carlos Zéfiro na região dos Lagos com Edélcio Tavares” (uma sátira ingênua de tão puerilmente pornográfica), e em “Algúrios a alguém algures no Algarve” (sobre um suposto brasileiro em Lisboa). A mistura de citações obscuras de música popular e cinema com uma linguagem ao mesmo tempo coloquial e cifrada mais irrita do que diverte, e tem-se a impressão de que o autor mais parece sofrer alucinações a toque de álcool (afinal até a Baía tem cor de conhaque) do que verdadeiramente querer atingir algo maior. 
O livro se encerra com “A bênção”, que bem pode ser uma paródia do “Samba da bênção”, de Vinicius de Moraes, só que aqui, em vez de agradecer aos músicos que o inspiraram, como o poeta, Lessa presta uma homenagem aos humoristas que admira, narrando o assédio que sofreu de todos eles quando lhe vieram pedir o autógrafo.