3.6.12

três contos menores de Cortázar: a noite de barriga para cima; cartas de mamãe; bestiário


Numa entrevista à Paris Review, Hemingway disse que o bom escritor precisa, sobretudo, de um “built-in, shock-proof shit detector”, ou seja de um detetor de merda embutido e à prova de choque. Queria dizer que o maior defeito de um escritor é a ingenuidade, a falta de senso crítico para filtrar tolices e inocências. 
O pecado da ingenuidade pode acometer, no entanto, alguns dos melhores escritores. É a impressão que me fica depois de ler “A noite de barriga para cima” (“La noche boca arriba”), conto de Cortázar. A ingenuidade é dupla, tanto de estrutura como de execução.
O personagem principal sofre um acidente de moto. No hospital, febril, terá um pesadelo recorrente, em que se encontra numa “guerra florida”, perseguido por guerreiros comandados por sacerdotes astecas. O conto alterna momentos de vigília no quarto de hospital e situações de guerra, em que o personagem sempre procura fugir dos seus perseguidores. Quando, ao final, é capturado, preso e conduzido à sua execução num templo de sacrifício asteca, somos informados de que o pesadelo da perseguição era a realidade, ao passo que o acidente de moto e a recuperação no hospital, apenas um sonho estranho e bom.
É uma idéia um tanto ingênua, estruturada de forma quase didática na alternância de sonho e vigília. O problema é que a execução tampouco é boa. Não vemos aqui um Cortázar de humor sutil, de imagens sofisticadas. Elementos como o amuleto no peito, o túnel e as escadas para o sacrifício religioso soam como clichês, e invenções como o grupo dos “motecas” (evocação de motociclistas e cultura pré-colombiana do tipo olmecas, astecas) fazem gemer qualquer shit-detector.
 
xxx
 
“Cartas de mamãe” (“Cartas de mamá”) é a história de uma obsessão, de uma culpa. Luis vive com Laura em Paris, e toda vez que recebe uma carta de sua mãe, que permaneceu em Buenos Aires, revive o sentimento de que a mudança para Paris foi sobretudo o abandono de uma cidade, de uma mãe solitária e de um passado que era melhor esquecer: “cada carta de mamá (...) cambiaba de golpe la vida de Luis, lo devolvía al pasado como un duro rebote de pelota”.
A mistura entre a revolta e a culpa será agravada por um erro de sua mãe numa das cartas. Ela se refere a Nico, o irmão morto de Luis, como se ele ainda estivesse vivo. Nico era o namorado de Laura, quando adoeceu e viu surgir a paixão e o romance entre Laura e Luis. Com sua morte, provocada ou não pelo desgosto com o irmão, Laura e Luis casam-se e seguem imediatamente para Paris, fugindo da condenação da família. A angústia maior de Luis deriva dessa culpa ante o irmão, mas também do ciúme gerado pelo silêncio de Laura, incapaz de referir-se ao cunhado. As cartas seguintes revelarão que o erro da mãe não era fortuito – ela terá enlouquecido – e quando anuncia a chegada próxima de Nico a Paris, tanto Luis quanto Laura, separadamente, estarão à espera do fantasma de Nico na estação.
Não é dos melhores contos de Cortázar, mas consegue, ao mesmo tempo, transmitir a mistura de indignação e culpa do protagonista e introduzir o elemento surreal e fantástico derivado não da possibilidade de chegada do rapaz já morto, mas da estranha credulidade do casal.
 
xxx
 
Mais um conto de Julio Cortázar pelos olhos de uma menina é “Bestiário” (“Bestiario”), que conta a história de Isabel, que vai passar as férias de verão na casa dos tios Funes, “Los Horneros”. Lá ela gosta de brincar com o primo Nino (os jogos, a construção dos formigueiros, dos herbários), de acariciar “las manos blancas” de tia Rena e de observar a introspecção do tio filósofo Luis e a irritabilidade de tio Nene. Cortázar dá-nos as impressões vagas e líricas de Isabel, e esconde-nos os detalhes familiares (qual exatamente a relação entre a família de Isabel e os Funes, qual a natureza do assédio de Nene sobre Rena) e oferece-nos apenas referências indiretas à característica mais marcante de “Los Horneros”: a presença de um tigre na casa. É essa presença que determina em grande medida os movimentos de todos, quando e onde comer por exemplo. Em meio às observações e reflexões de Isabel sobre a família, sobre os bichos e folhas (nunca sobre o tigre), vamos entrevendo detalhes insuficientes da relação de Nene e Rena e do “modus vivendi” com o felino, do sistema de avisos e alertas sob o comando do capataz.
Cortázar nunca chega a esclarecer esses dois mistérios (o que dá ao conto seu estado de suspensão, de ligeira irrealidade), apenas faz com que venham a convergir ao final. Sem uma clareza de intenções previamente enunciada, Isabel indica ao tio Nene a localização errada do tigre. Para íntima e muda gratidão de tia Rena, o gesto de Isabel a livrará de uma vez por todas dos assédios de Nene.