21.10.12

Binet, HHhH e o Salon de Fleurus


Laurent Binet ganhou o Prêmio Goncourt para romances de estréia, em 2010, com seu romance histórico “HHhH”, sobre, entre outras coisas, o assassinato de Reinhard Heydrich, chefe da Gestapo, em maio de 1942. “Romance histórico” (ou qualquer outra categoria) se aplica de maneira imperfeita ao livro de Binet, que mistura reflexões sobre o processo de redação do próprio livro, referências literárias e pessoais em tom autoficcional e história propriamente dita. Como “A sangue frio”, de Capote, ou mesmo “Os sertões”, de Euclides da Cunha, “HHhH” parece ocupar um lugar a meio caminho entre o histórico e o ficcional em sentido amplo.
Binet, que é professor de literatura numa escola de ensino médio em Paris, participou na semana passada de um evento organizado pelo MoMA, em Nova York. Ele e mais quatro convidados lá estiveram para falar ao pequeno público presente sobre suas experiências ao visitar um curioso lugar chamado “Salon de Fleurus”.
O “Salon de Fleurus” é, supostamente, um apartamento subterrâneo no Soho que simula e “comenta” o antigo salão da Gertrude Stein na rue de Fleurus em Paris. O detalhe é que os criadores do apartamento não se identificam, não divulgam que o lugar existe (a coisa circula à boca pequena, entre iniciados), e os curiosos que por lá aparecem são recebidos por um porteiro de sotaque iugoslavo que age como se não tivesse nenhuma relação com o apartamento. O porteiro quer ouvir histórias do visitante e, em troca, conta histórias do lugar, antes de franqueá-lo aos curiosos. Lá dentro o visitante vê reproduções dos amigos e afilhados da Stein (Picasso, Matisse...), fotografias, mobiliário de época (que ninguém diz se foram do salão original em Paris), tudo ao som de Edith Piaf, que é pós-Stein naturalmente. Trata-se, portanto, de um apartamento-museu sem autoria aparente nem qualquer pretensão de fidelidade histórica. Mais parece um comentário visual e anônimo sobre Gertrude Stein e a arte moderna.
Como não fala bem o inglês, Binet leu um texto curto que escreveu sobre a visita ao Salon: o nonsense da conversa com o porteiro, a sensação de deslocamento no tempo, de vertigem das referências a referências em “mise-en-abîme”, a imagem de Shakespeare (“The time is out of joint”), a lembrança da “Invenção de Morel”, de Bioy Casares, com seu invento que reproduz e revive eternamente o passado. Binet mencionou dois autores norte-americanos que admira (Bret Easton Elis e Chuck Palahniuk) e sua preferência pela narrativa de eventos “reais”, em que há indícios de que aconteceram de fato, por oposição à ficção propriamente.
Essa é a questão que parece interessar a Binet: a diferença de registros entre o “real” e o ficcional. Já no início de “HHhH”, ele cita Kundera para falar da arbitrariedade de dar nomes a personagens ficcionais. E para Binet, Kundera poderia ter ido além: há algo mais vulgar do que um personagem inventado? Ironicamente, Binet reconhece que, para contar a história de Gabcik, o soldado eslovaco que participou do assassinato de Heydrich, terá de transformá-lo em personagem, em literatura:

“J’espère simplement que derrière l’épaisse couche réfléchissante d’idéalisation que je vais appliquer à cette histoire fabuleuse, le miroir sans tain de la réalité historique se laissera encore traverser.”

Conversei com Binet ao final do evento. É figura simpática e tranqüila. Perguntei o que ele planejava depois de “HHhH”. Ele disse que tinha acabado de fazer um livro sobre a campanha presidencial francesa, e começava agora um novo romance, que também será histórico e deverá se passar nos anos 80. Perguntei se seria na mesma linha de “HHhH”, de desconstrução do romance histórico. Ele sorriu e disse que sim.
Realidade e ficção. Fato e referência. Relato e narrativa. Saí do MoMA sem a certeza de que o “Salon de Fleurus” existe. Talvez seja um lugar imaginário. A idéia de que um apartamento sem dono aparente no Soho reflete e comenta um célebre e histórico salão da Paris dos anos 20 também parece ocupar um lugar entre realidade e ficção.

7.10.12

ponto ômega


“Point Omega” é um romance curto e incômodo de Don Delillo. Algumas de suas imagens e cenas permanecem pelo desconforto que provocam, o desconforto do silêncio como consolo em um mundo onde as relações são tão áridas quanto o deserto em que a história se desenrola. Há uma elegância seca no narrar que só reforça o sentido de desesperança na trajetória (quase imóvel) dos três personagens centrais.
Richard Elster é um velho professor que trabalhou para o Pentágono no período da Guerra no Iraque (“more than two years of living with the tight minds that made the war”). Dava sentido e coerência à guerra como instrumento e como fim. Tem, portanto, a dureza e a desilusão dos que ajudam o poder a exercer-se de forma extrema, e agora, ao fim da vida, parece afastar-se para fazer um balanço. O narrador, Jim Finley, um jovem documentarista, quer fazer um filme sobre Elster e se hospeda em sua casa, em pleno deserto no interior dos Estados Unidos. Lá recebem a visita da filha de Elster, Jessica, que procura esquecer sua própria inadequação à vida dando apoio a velhos no Upper East Side, em Manhattan (“She wasn’t a child who needed imaginary friends. She was imaginary to herself.”)
Diante do espaço imóvel, árido, a relação entre os três parece congelada no tempo (“Time slows down when I’m here. Time becomes blind. (...) I don’t get old here”). E o tempo é o tema desse romance de DeLillo. O tempo que não transcorre até o corte representado pelo evento trágico e inapreensível. O tempo que custa a passar no deserto ou no filme projetado quadro a quadro, na bela imagem inicial da instalação no museu novaiorquino, que exibe Psicose, de Hitchcock, em câmera lenta, como se o próprio correr do evento trágico (como no clássico assassinato no chuveiro) pudesse ser decomposto em suas unidades fundamentais. Há uma poesia torta na imagem de um corpo que sucumbe quadro a quadro ou do sangue que gira em espiral quase imóvel até desparecer ralo abaixo.
Elster, em uma reflexão citada pelo narrador no começo do capítulo 1, parece bergsoniano em sua visão da vida como interioridade, como fluxo, tempo:

“The true life is not reducible to words spoken or written, not by anyone, ever. The true life takes place when we’re alone, thinking, feeling, lost in memory, dreamingly self-aware, the submicroscopoic moments.”

Point Omega é um livro de poucos excessos. Somente numa passagem ou outra, DeLillo faz um esforço excessivo para soar inteligente demais, como em alguns comentários de Finley sobre Elster (os drinks que tomam, a bengala que humaniza). No mais, é um texto de inegável elegância, em que um DeLillo um tanto sombrio e resignado diante do peso e da inexorabilidade do tempo, cria um pequeno universo de silêncio e desencanto.