tag:blogger.com,1999:blog-40277270041338266842024-03-06T23:09:33.722-03:00caixa de literaturaMauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.comBlogger87125tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-9790912854543670112021-05-09T21:55:00.003-03:002021-05-09T21:56:05.823-03:00Voss
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">Dizer que um romance é sobre a busca do inapreensível
soa clichê, já que a carapuça é larga e ajusta-se a muitos, mas no caso de </span><span style="mso-bidi-font-weight: normal;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">“Voss”<span style="mso-bidi-font-weight: bold;">, escrito em 1957 pelo australiano vencedor
do Nobel (1973) </span>Patrick White<span style="mso-bidi-font-weight: bold;">, a
afirmação parece exata: White escreveu um formidável romance expressamente sobre
a busca do que não se pode alcançar.</span></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">Johann Ulrich Voss é um alemão na Austrália semivirgem
do século XIX, protagonista de uma obsessão dupla: de um lado, o desejo de travessia
ponta-a-ponta do continente australiano, nunca antes realizada; de outro, quase
como um desdobramento acidental da personalidade obsessiva, a paixão tortuosa,
platônica por uma jovem, Laura Trevelyan, tão interessante em suas convicções quanto
convicta em seu sedentarismo. É o velho (e improvável) amor dos opostos, entre
o explorador que desbrava o interior inóspito de um continente-ilha e a
independente, mas no fundo comportada, sobrinha de um casal abastado,
colonizador, na Sydney dos anos 1840. O território e o amor são espaços inconquistáveis,
e um campo funciona como metáfora do outro.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">Embora australianos, White e seu livro são profundamente
ingleses no tema e no estilo. A obsessão britânica pelo choque entre convenções
sociais e o abismo da exploração colonial, onde padrões e personalidades são tensionados
até o limite da ruptura, está no centro do romance. Patrick White junta-se ao americano
Henry James e ao polonês Joseph Conrad na nobre galeria de estrangeiros mais
ingleses que os próprios ingleses, encantados com o confronto entre
“civilização” e “barbárie”. As cenas de convivência de Voss com os aborígenes
no centro da Austrália, especialmente quando eles o mantêm preso, são dignas do
Conrad de “Heart of Darkness”. White realiza muito bem o romance de contrastes
(colonizador e colonizado, cidade e interior) que o londrino Evelyn Waugh tentou
fazer, sem o mesmo vigor, duas décadas antes, em “A Handful of Dust” (1934), em
que o protagonista Tony Last, mais entediado que indignado com a traição da
mulher em sua mansão inglesa, resolve buscar na Amazônia uma cidade indígena
perdida. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">Patrick White é um brilhante construtor de personagens.
Voss e Laura sobressaem tanto por dilemas amorosos e existenciais, como por
ações e gestos. Difícil o leitor não ser marcado por um e por outro, já que
White lhes dá, com um zelo de escritor obsessivo, enorme complexidade e
estatura. </span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">Sua opção de narrativa não é sem risco, no entanto: com
imaginação quase ébria, White revela os personagens por meio de metáforas ousadas,
exorbitantes em alguns casos, e tem-se a sensação de que o autor nunca se distancia
ou se esconde da obra, e parece querer dizer ao leitor que não abre mão do
controle, sempre presente com um comentário ou imagem inusitada a fim de
esgotar e dissecar psicologicamente cada um deles. Às vezes, o efeito é
magnífico: “Mr. P. was bald, with a moustache that somewhat resembled a pair of
dead birds.”</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">White não recorre ao discurso livre indireto adaptado às
características e ao pensamento dos personagens; ao contrário, todos são vistos
pela ótica onisciente do autor. E todos os principais personagens, como Robarts,
le Mesurier, Palfreyman e Judd, aparecem tão vivos e complexos como Voss e
Laura. Harry Robarts, por exemplo, que integra a expedição de Voss, aparece à
nossa frente genuinamente como um garoto grandalhão e ingênuo: “Poor Harry
Robarts was an easy shadow to wear. His wide eyes reflected the primary
thoughts. Voss could sit with him as he would sit with still water, allowing
his own thoughts to widen on it.” Já Frank Le Mesurier, outro expedicionário,
destila o cinismo de um improvável poeta clandestino: “It was known, however,
that he liked to discuss God, after he was drunk, on rum for choice, ploughing
through the dark treacle of seductive words and getting nowhere at two o´clock
in the morning. Getting nowhere. If he had become coolly cynical rather than
embittered, it was because he still entertained a hope that it might be
revealed which part he was to play in the general scheme.” </span></p>
<div style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Apesar
da complexidade dos personagens, “Voss” não é exatamente um romance de análise
psicológica. Tampouco um romance histórico sobre a colonização. É em grande
medida um épico da conquista (ou da impossibilidade da conquista), tanto
territorial como amorosa, que revela uma Austrália que ainda não se percebe
como país e dois protagonistas que projetam nesse espaço virgem de referências o
caráter muito peculiar de suas obsessões e dilemas.</span><style>@font-face
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<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Um dos temas centrais de
“Los detectives salvajes”, de Roberto Bolaño, é a impossibilidade de apreender
uma individualidade, de saber do outro. Mais do que uma obra sobre a
literatura, com suas referências diretas ou indiretas ao baixo e ao alto clero
da literatura mexicana e hispano-americana em geral, o livro é uma reflexão
sobre a opacidade do indíviduo e sobre as possibilidades precárias, narrativas,
apenas aproximativas, de se construir/compreender a identidade do outro. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">A ideia da busca do outro estrutura-se
no livro como uma busca dupla, em dois níveis: os “protagonistas” Arturo Belano
(alter ego de Bolaño) e Ulises Lima procuram desvendar a vida e a obra de uma
poeta dos anos 1920, Cesárea Tinajero, que consideram uma precursora do
movimento real-visceralista que os dois lideram; os leitores, por sua vez, como
detetives em busca dos detetives, serão “apresentados” aos protagonistas sempre
de maneira indireta, por aproximações, pela sobreposição de narrativas daqueles
que entraram em contato com os dois, ouviram falar de suas vidas, viveram
experiências já distantes no passado. Da mesma maneira que Cesárea é uma
inspiração fugidia, mais mito que existência no imaginário dos dois (que sequer
conheciam um poema dela), Arturo e Ulises nunca nos falam em primeira pessoa,
nem nos aparecem por meio de uma terceira pessoa onisciente, confiável. Arturo
e Belano ouvem o relato precário, alcoolizado, do velho Amadeo Salvatierra
sobre Cesárea; nós lemos os relatos desencontrados, cacofônicos (ainda assim, quase
sempre sedutores, brilhantes) das histórias que ajudam a formar, embora
precariamente, suas identidades.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">No livro, a explicitação da busca
de si mesmo, implícita ou não nas buscas do outro, é um breve interregno.
Circunscreve-se à primeira e menor das três partes do livro. O jovem aspirante
a poeta, García Madero, de 17 anos, que conheceu os protagonistas e ao fim os
acompanhará numa fuga que é ao mesmo tempo a busca do passado de Cesárea, tenta
dar conta, em seu diário, de uma identidade “em formação”, o jovem que começa a
se definir afetivamente, sexualmente, artisticamente. Nesse esboço de
Bildungsroman, mais sobre a iniciação sexual do que literária do narrador,
envolvido com a garota María Font e a garçonete Rosaria, vemos um México
provinciano, violento, mas um tanto romântico e alternativo, com seus
personagens desviantes, adoravelmente loucos ou idealistas, como o pai de
María, Quin Font. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Os relatos da segunda parte
do livro, a principal, compõem um mosaico vertiginoso, um labirinto de referências
à vida de Arturo e Belano a partir das histórias daqueles que conviveram com os
dois. Como em Balzac e sua criação de todo um arco de relações que insere e
define o personagem, Bolaño traça uma complexa rede de relações em torno de
Arturo e Belano, como se fosse a trama em torno do indivíduo que ajudasse a identificá-lo,
a estabelecer uma identidade. Os ângulos são os mais diversos, da intimidade
sexual ao ouvir dizer do meio social ou literário. Ainda assim, os relatos
revelam muito mais sobre os depoentes do que sobre os retratados. O retrato do
outro será sempre parcial, incompleto; nem a intimidade a dois permite o
conhecimento. O indivíduo não é mais do que o conjunto de discursos daqueles
que o cercam. Sua identidade, oblíqua, turva, narrativa, aproximativa, é literatura.
</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Arturo e Ulises são espelhos,
um do outro, ambos embaçados, envoltos numa névoa que se dissipa e retorna. Não
conhecemos seus pensamentos. Conhecemos apenas seus atos, filtrados pela
memória alheia. O ato faz o homem, embora nunca se saiba exatamente o que é o
homem. Bolaño presta assim uma homenagem indireta aos autores que diziam
rejeitar a psicologia, a narrativa psicológica, a começar por Borges. A ironia
é que para sabermos algo sobre Arturo e Ulises, entramos na cabeça de todos os
que, por suas vozes, relatam seus contatos com eles. Uma das façanhas do livro
é justamente a montagem desse universo múltiplo, complexo de figuras que cercam
os protagonistas e que nos são revelados também por sua riqueza psicológica.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">A busca de Cesárea por
Arturo e Ulises, assim com a busca dos dois pelo leitor, é também a expressão
de uma dor, a melancolia da impermanência do ser. Aquele que viveu, ao começar
a desaparecer da memória alheia, passa a inexistir da forma mais completa, morto
primeiro como ser, depois como imagem recordada. Daí a busca desesperada,
irracional, em plena aridez e vazio dos desertos de Sonora, pela obra e vida de
Cesárea, à beira do desaparecimento último. Daí a celebração do encontro de um
de seus poemas, tão insubstancial quanto enigmático. No limite, não saberemos quem
existiu, e por quê, como nos relata Luis Sebastián Rosado (p.353):</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“Antes yo había hablado con
algunos amigos, gente que se dedicaba a la historia de la literatura mexicana y
nadie supo darme ningún dato sobre la existencia de aquella poeta de los años
veinte. Una noche Piel Divina admitió que tal vez era posible que Belano y Lima
se la inventaran. Ahora los dos están desaparecidos, dijo, y ya nadie puede
preguntarles nada.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Parte da revolta dos
protagonistas ante figuras como Octavio Paz vem sim da disjunção entre o
canônico e o marginal, mas também da indignação ante o fato de que o cânone
representaria a superação do olvido, a suposta eternização de alguns poucos
(justa ou injustamente), em contraste com o desaparecimento completo dos demais.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Um dos propósitos da segunda
parte, que contém os relatos dos conhecidos de Arturo e Ulises, é criar uma
atmosfera de mistério, quase sempre esfumaçada, quase sempre duvidosa, em torno
dos dois protagonistas. Em alguns casos, Arturo e Ulises revelam-se mais
estranhos que interessantes, e o envolvimento do leitor com os testemunhos é
afetado em alguma medida pela falta de carisma e charme dos dois. No mais das
vezes, no entanto, os próprios depoentes, ou a maneira como enredam suas
histórias, despertam o fascínio do leitor. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">É extraordinário, por
exemplo, o relato de Auxilio Lacouture, a uruguaia que se refugiou no banheiro
da UNAM (Universidade Nacional do México) durante a invasão e a tomada da
universidade pelos militares em 1968. Comove seu amor da poesia, dos poetas
mexicanos, de Arturo Belano, do idealismo, da literatura e sua voz de
resistência, uma voz tão romântica quanto latino-americana: assim lemos seus 10
ou 15 dias sem comer nem sair do banheiro da faculdade (pg. 190-199). Mais
desconcertante é o depoimento de Xosé Lendoiro, advogado galego que conta a
queda do garoto no fosso escuro e o resgate pelo vigia do camping, que vem a
ser Arturo Belano. A relação com Arturo, que passa a namorar sua filha, a
revista de poesia que Lendoiro edita, a autoimagem de gigante, a obsessão com o
fosso e os urros diabólicos que vêm do buraco ajudam a compor uma história que
impressiona pelo sombrio (p. 427-448).</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Os relatos mais marcantes são,
no entanto, os que nos permitem compreender um pouco melhor as figuras de
Ulises e Arturo. No caso do primeiro, a viagem a Israel e sua tortuosa paixão
por Claudia. No caso do segundo, a fantástica viagem à África, em meio à
guerra, à recorrência da doença, à aproximação da morte. Como para Marlow, em
Coração das Trevas, de Conrad (um antecessor, e provável inspirador, de Bolaño
na ideia do romance como busca de um personagem), o continente africano é para
Arturo o lugar para perder-se, abandonar as angústias por meio do abandono da própria
vida. A melancolia de sua trajetória africana, a consciência resignada de que
há algo maior, diabolicamente e tragicamente maior, já é um reflexo do desejo
de Arturo de desprender-se de uma existência anterior. Curiosamente, o leitor
conhece um pouco melhor sua identidade justamente no momento em que Arturo quer
desfazer-se dela.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">O romance se encerra com a
retomada do diário de García Madero, agora descrevendo a viagem de carro pelo
deserto, em parte fuga, pela proteção à prostituta María, perseguida por seu
cafetão, em parte busca, pela visita aos vilarejos onde Cesárea viveu. Aqui
vemos Arturo, Ulises e García Madero conjugarem seus desesperos.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Entre tantas virtudes,
Bolaño é um extraordinário contador de histórias, e este seu “Los detectives
salvajes”, publicado em 1998, ao apagar das luzes de um século marcado pela
permanente desconstrução do romance, provavelmente sobreviverá ao esquecimento
com um dos grandes romances latino-americanos do período.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-54383762657123786172014-12-28T18:15:00.001-02:002014-12-28T18:15:59.523-02:00o concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro
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<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">A relação, substantiva e
formal, entre a literatura e as demais formas de manifestação artística pode
ser tanto um bom tema como um instrumento de renovação da prosa de ficção. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Algumas linhas da literatura
brasileira das últimas décadas, especialmente a ficção urbana representada pela
figura maior de Rubem Fonseca e seus herdeiros, parecem influenciadas pelo
ritmo, caráter fragmentário, elíptico e essencialmente visual da narrativa do
cinema, o que gerou e continua a gerar algumas boas obras e outras menos
inspiradas. Mais recentemente começou a ganhar relevância, embora em escala
menor, outra vertente da literatura brasileira, que explora a interação entre a
prosa e as artes visuais, desenvolvida – com maior ou menor sucesso, com ou sem
uso de fotografias ao estilo Breton/Sebald – por escritores-artistas (ou
artistas-escritores), como Nuno Ramos, Verônica Stigger e Laura Erber.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Curiosamente, uma das tentativas
mais bem sucedidas na literatura brasileira contemporânea de estabelecer um
diálogo entre artes (e, portanto, de enriquecer formalmente a própria ficção)
foi realizada por Sérgio Sant’Anna num belo conto que aproxima a literatura não
do cinema ou das artes visuais, mas do teatro e da música.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“O concerto de João Gilberto
no Rio de Janeiro”, publicado pela editora Ática, em 1982, e reeditado agora pela
Companhia das Letras, é o conto principal do livro de Sérgio Sant’Anna que leva
o mesmo nome, e possivelmente um dos contos mais significativos do autor.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Centrado num show que João
Gilberto se recusou (no dia mesmo) a fazer no Canecão por inadequação de
acústica, o conto é uma interessante reflexão sobre o lugar do silêncio tanto
na música quanto na literatura. É no fundo uma defesa do não-dito
(não-emitido/não-pronunciado) como fundamento, por contraste, da própria arte,
seja ela musical ou literária. Somente a redescoberta do silêncio em meio à hipertrofia
de estímulos, à balbúrdia e à cacofonia restabeleceria o valor artístico do som
ou da palavra. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">O tema do silêncio é
recorrente ao longo do conto. Já na cena inicial, no aeroporto em Nova York,
John Cage (compositor de pausas e silêncios) presenteia João Gilberto com uma
gaiola (“cage”) vazia, onde está o suposto pássaro da perfeição. João o leva
para o Rio e, tanto quanto o pássaro invisível e mudo, não cantará no dia do
concerto, para não quebrar o silêncio com o som inadequado, aquém da perfeição.
A economia do som (e da palavra) é a condição de sua qualidade, de seu impacto e
valor como arte. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Formalmente, Sant’Anna
traduz esse elogio à abstenção por meio de um texto recortado, uma colagem de vinhetas,
diálogos, citações e situações que realçam o silêncio e o vazio entre as cenas
e, por extensão, tornam cada cena mais expressiva: a chegada de João Gilberto e
Luís Carlos Prestes ao Rio; o comentário do diretor do Pinel, ao lado do
Canecão; a notinha da revista Amiga; os instantâneos de conversas de bar do
autor e seus amigos. Também ele, autor, precisa deixar de dizer para reforçar o
sentido de cada fragmento que ajuda a construir a sua história. Como se
buscasse o contraponto literário da parcimônia de João Gilberto e John Cage.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">O diálogo interartístico no conto
não se limita à interação entre autor e compositor, entre ficção e música. Além
de João Gilberto, outro interlocutor do narrador/autor é o diretor Antunes
Filho. Sant’Anna não esconde seu interesse pelo teatro, o que se revela não
apenas nas incursões noturnas e reflexões do seu alter-ego narrador, mas na própria
montagem dos fragmentos do conto como sketches, pequenos números teatrais, em
que os personagens muitas vezes parecem mais representar do que ser ou estar:
Bob Wilson e Antunes como personagens de si; Caetano Velloso como repositório de
uma sabedoria inapreensível; o urubu mensageiro carioca como interlocutor do urubu
da Condor Filmes (ou mesmo do pato da Bossa Nova); o “autor” Sérgio Sant’Anna
como personagem do escritor Sérgio Sant’Anna. Num dos muitos exercícios de
metaliteratura no conto, Sant’Anna chega a citar o comentário de Silviano
Santiago de que seus personagens são acima de tudo atores, aos quais ele mal dá
a liberdade de se desenvolverem plenamente. Como no teatro, os personagens no
conto revelam-se muito mais por enunciação própria, nos diálogos, do que por uma
descrição ou caracterização psicológica intermediada pelo narrador. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Há no conto, na justaposição
e criatividade dos fragmentos, uma leveza de invenção e irreverência que,
ironicamente, também faz lembrar o cinema, o frescor jovem e criativo de um
Goddard dos anos 1960, no jocoso fingimento de não se levar muito a sério. De
um lado, vemos cenas que remetem a um Rio mitológico, <i style="mso-bidi-font-style: normal;">insouciante</i>, do Botafogo de Garrincha à Ipanema de Jobim, do
Canecão de João Gilberto ao Maracanã de Sinatra; de outro, descobrimos uma
riqueza de jogos e pequenos achados literários que dão graça e colorido à
narrativa. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Se há algo a questionar é o
desejo de Sérgio Sant’Anna de explicar alguns achados e truques que insere ao
longo do texto, como se precisasse certificar-se de que o leitor irá percebê-los.
O efeito é reduzir o charme e a sutileza de algumas das tiradas metaliterárias,
dos pequenos achados musicais, visuais ou verbais, tão frequentes no conto. Os
elementos de metaliteratura – a auto-referência a Sérgio Sant’Anna, o diálogo
com Silviano Santiago ou Rubem Fonseca, os dilemas explicitados do
autor/narrador na construção do conto sobre João Gilberto – são quase sempre
oportunos e mesmo necessários, mas em alguns poucos casos Sant’Anna retira do
leitor a graça de desvendar os seus enigmas por si só. Isso acontece, por
exemplo, na brincadeira do autor/narrador sobre o Hino Nacional (pg. 170), na
bela imagem do corpo branco sob a capa preta ao som da canção bicolor de Tom e
Chico (pg. 186) e, sobretudo, em alguns dos momentos em que Sant’Anna procura
analisar a estrutura e estilo do conto que está escrevendo (o texto como
ensaio, os fragmentos como integrantes de uma orquestra, o fragmentário como o
novo realismo, o comentário sobre Syberberg...). Uma coisa é a literatura que
se comenta pelo apelo do jogo de espelhos, e por toda a ressonância de
significados que gera; outra, a literatura que se explica como forma de legitimação.
Nesse último caso, o silêncio, como endossaria o próprio Sant’Anna, talvez fosse
a solução estilisticamente mais elegante.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">São escolhas do autor no
sempre difícil equilíbrio entre o dito e o não-dito, e que mesmo ao juízo de um
leitor que pode se sentir subestimado, não tiram o brilho do conto. Para além
dos achados e jogos, Sant’Anna produz pequenas preciosidades de texto,
inseridas aqui e ali como frases despretensiosas (“Quando eu bebo, só tenho
medo no dia seguinte”) ou como metáforas simples (“O Planeta rolando
vertiginosamente no Cosmos e você ali boiando nas ondas do mar, como um
passageiro de primeira classe”), sempre com um ótimo efeito no desenrolar do
conto.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">“O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro” é,
ao mesmo tempo, uma homenagem às figuras centrais da cultura brasileira
das décadas de 1960 e 1970 (como JG, Tom, Gláuber, Chico, Caetano, Antunes,
Rubem Fonseca...) e uma inventiva e divertida experiência de fecundar o conto
por meio do diálogo com a música e o teatro. Um belo show de Sérgio Sant’Anna
sobre o expressivo <i style="mso-bidi-font-style: normal;">no-show</i> de João
Gilberto.</span></div>
Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-41075230341842621672014-10-05T17:37:00.000-03:002014-10-07T23:44:38.699-03:00a vida nova<style>
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<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;"><span style="mso-tab-count: 1;"></span>Não sei o que impressiona mais em César Aira, a
prodigalidade de histórias ou a originalidade de estilo(s). São quase 70 livros
de ficção, e aqueles que li (naturalmente, um percentual muito limitado do
universo Aira) me pareceram não só imaginosos no limite do nonsense, mas também
com estilos marcadamente diferentes. Já é difícil classificar o que Aira faz
como gênero: ele mesmo diz que não escreve romances/novelas, mas “artefatos
literários”, “poesia escrita como exercícios de prosa”. E dentro dessa enorme
coleção de artefatos ou exercícios, o que menos há é repetição, homogeneidade. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;"><span style="mso-tab-count: 1;"></span>Apesar da indefinição do objeto literário, em Aira
convivem a imaginação vertiginosa e a precisão. O fabulista e o dicionarista. O
devaneio e o método. Ele é capaz de inventar um personagem César Aira que quer
controlar o mundo roubando o DNA de Carlos Fuentes, mas como a mosca que
programou acaba picando a gravata e não a pele de Fuentes, clonam-se por engano
gigantescos bichos da seda, que destroem a cidade de Caracas (“El congreso de
literatura”). Esse mesmo Aira, o autor, não o personagem, é capaz de redigir
mais de 600 verbetes sobre os mais diferentes escritores latino-americanos, com
o rigor e a minúcia de um ourives-escrivão (“Diccionario de autores latinoamericanos”).
</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“La vida nueva” é a quinquagésima-sexta “novela” de Aira.
Na verdade, não mais do que um parágrafo de 76 páginas narrado em primeira
pessoa por um escritor que (como Aira) vive em Flores, arredores de Buenos
Aires. Pode ser lido como uma brincadeira séria em torno de algumas idéias caras
a Borges. As possibilidades do e no tempo. As bifurcações possíveis. Os futuros
possiveis de um homem. A gratuidade dos eventos que nos levam a uma vida ou a
outra. Não surpreende que o protagonista do livro, que nunca consegue lançar
seu primeiro romance, desfie aqui e acolá anedotas sobre Borges, como a visita
que teria feito à redação de uma revista para enfiar exemplares de seu primeiro
livro nos bolsos dos casacos pendurados nos cabideiros.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">As agruras do escritor inédito em “La vida nueva” são
retratadas com tons surreais, buñuelescos, que parecem derivar mais de uma
essência absurda da vida do que de contingências objetivas e materiais que
atingem o personagem, até porque seu manuscrito goza de bom conceito entre seus
leitores e de um editor disposto a publicá-lo (embora nunca capaz de fazê-lo,
pelas razões mais diversas). A novela é sobretudo uma reflexão sobre a
circularidade da vida, o eterno e gratuito retorno, o homem como Sísifo, sempre
mais patético a cada volta. Aira esgarça e subverte o tempo da narrativa,
transformando semanas em anos ou décadas, para realçar o absurdo e a gratuidade
de cada gesto, de cada tentativa. O homem em geral sim, mas é sobretudo o
escritor na sua particularidade quem carrega a pedra que nunca se fixa no alto.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span lang="ES-TRAD" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-TRAD; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“Nos despedimos
con un “hasta pasado mañana”, que sonaba a una variación casi humorística del
clásico “hasta mañana”. Lo llamé, efectivamente, pero no a los dos días sino
mucho más tarde. Cuánto? Perdi la cuenta. Seis, siete años después. Quizás más.
Pasaron tantas cosas, y a la vez parecía como si no pasara ninguna.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36pt;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">As noções tradicionais de
tempo não fariam sentido porque não há causalidade linear, relação clara entre o
que supostamente seria causa e o que supostamente seria efeito. A graça da
novela de Aira está nesta dupla transgressão do tempo e da racionalidade, em
mais uma de suas críticas à verossimilhança como base do romance pós-século XIX,
período que, segundo o autor, teria esgotado todas as possibilidades do romance
realista. Aira chega a ser quase didático na voz de seu alter ego:</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36pt;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“Cada pequeño incidente de la sucesión (y ésta
era una sucesión de incidentes y de nada más) venía provisto de causa y efecto,
pero las causas y efectos, que por lo demás se estaban transformando unas en
otros todo el tiempo, eran a su vez pequeños incidentes atorbellinados que
partían en todas direcciones.” </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;"><span style="mso-tab-count: 1;"></span>Não é, no entanto, apenas o esgotamento de um modelo
artístico que desautoriza a linearidade e a verossimilhança. A narrativa em “La
vida nueva” desenrola-se em saltos e descontinuidades porque a memória e a
identidade constroem-se dessa maneira. O protagonista de existência flácida é
inseguro de seu passado e parcialmente inconsciente do seu presente porque é
assim que a identidade individual se forma. Nunca de maneira exaustiva, contínua,
homogênea no tempo, apesar da existência ininiterrupta no tempo. Isso é
agravado quando se escreve, já que é preciso refabular a fábula que é a
memória:</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“Quizás era improcedente
hablar de recuerdo y olvido cuando el objeto de la memoria era uno mismo: el
recuerdo exigía una discontinuidad, y uno no había dejado de ser uno mismo
desde su más remoto pasado, no había habido interrupción. (...) Con la vida de
los escritores siempre se había fantasiado mucho, lo que a la larga debía de
haber afantasmado un poco las vidas reales de los escritores reales, a tal
punto que correspondía preguntarse si no sería todo una gran fantasía: vidas
que no vivía nadie, ni siquiera los que vivían (lo que terminaba siendo otra
contradicción.)”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 36pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;"><span style="mso-tab-count: 1;"></span>Para além de uma alegoria sobre as dificuldades de
publicação do escritor inédito, sobre a improvisação romântica de escritores e
editores, “La vida nueva” é uma reflexão um tanto irônica, um tanto séria,
sobre o desenrolar do tempo: o tempo na vida, com as escolhas e ciclos que marcam
o indivíduo; o tempo na memória, com sua seletividade, seu ritmo, seu método; o
tempo na literatura, com suas possibilidades menos ou mais inovadoras.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-29473809428314589582013-08-25T15:47:00.000-03:002013-08-25T15:49:57.592-03:00a odisséia<style>
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<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">De forma mais velada e sutil
do que Shakespeare faria com “Macbeth”, “A Odisséia”, de Homero, é uma história
sobre a “hubris”, a arrogância do poder, o orgulho da vitória. A viagem tortuosa,
quase interminável, que Odisseu/Ulisses faz de Tróia a Ítaca é a punição de uma
egotrip anterior, da autoimagem de infalibilidade e onipotência de quem arquitetou
e executou a tomada de Tróia. Poseidon lança a maldição sobre Odisseu porque o
herói, não satisfeito em cegar o ciclope que o aprisionava na volta, quis
dar-lhe uma lição de moral. Ao escapar, Odisseu, indignado com a morte de seus
companheiros, impreca contra o monstro e não resiste à tentação de proclamar
seu nome, apesar dos apelos dos demais sobreviventes para que se cale. O bravo
herói, que se livra da prisão com a astúcia de sempre, é também orgulho e
ressentimento. A nova vitória não pode ficar anônima. Precisa da palavra para
afirmar o vencedor, mais uma vez. E a palavra será a queda. O ciclope descobre
a identidade do inimigo e conta ao pai, Poseidon, que irá se vingar, com
correntes, tempestades e tragédias, daquele que imolou seu filho.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">As agruras de Odisseu
combinam vícios dos deuses e vícios dos homens. Há vileza e incompetência (e
portanto falibilidade humana) no Olimpo e na Terra. A tripulação de Odisseu é
particularmente anti-heróica. Demonstra suas fraquezas não apenas na fuga do ciclope
ou na história do saco dos ventos, mas também na Ilha do Sal, em que os marujos
não resistem à tentação de comer os animais. Na Grécia de Homero, há os vícios
dos grandes – deuses e heróis – como a “hubris”, a prepotência, a vaidade, e os
vícios dos pequenos – os homens em geral – como a cobiça, a gula, a
curiosidade. Mas até Odisseu, apesar de todas as suas virtudes de herói, peca
por vícios menores, como a leniência na hora de evitar a insubordinação de seus
homens. Em contraste com o mundo confuciano, oriental, da preservação das
hierarquias (Imperador-súdito; pai-filho; marido-mulher), o mundo grego é o da
subversão das hierarquias pelo triunfo da individualidade (herói contra deus;
homem contra herói). </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Mais do que a Ilíada, que é narrada
de forma mais direta e “neutra”, “A Odisséia” é uma história sobre histórias. É
uma narrativa sobre narrativas. O envolvimento do leitor se dá pela
intermediação de um narrador que assumidamente diz contar uma história. Ou de
um herói que resolve contar sua história dentro de outra história. Enquanto
“vemos” o filho Telêmaco agir, mantemo-nos distantes, à espera do herói. Quando
o próprio herói intervém para contar de si (ao falar de seus infortúnios a Alcínoo,
rei dos Feácios) é que nos sentimos atraídos para o centro de suas fabulações.
Não parece mera coincidência que Odisseu acabe por inventar um passado e um
nome para si ao reencontrar Penélope, já de volta a Ítaca. Ele só conseguiu
voltar à sua terra porque soube, por meio de histórias inventadas, testar os
outros, estimular-lhes a curiosidade, guiá-los para onde queria. Fez isso com
Penélope, Eumaeus e Laerte, pai do herói. Na Odisséia, a palavra é, ao mesmo
tempo, queda e salvação. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div>
<div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">O capítulo final da Odisséia
costura, de forma circular, irônica, moralizante, o ciclo iniciado pelo capítulo
inicial da Ilíada. Se no começo desta, vemos Agamenon e Aquiles brigando (em
torno da apropriação pelo monarca da “mais-valia” do trabalho dos
guerreiros/saqueadores), no final da Odisséia vemos o espírito de Agamenon e de
Aquiles reecontrarem-se no Hades, desta vez mortos, estéreis, pacificados.
Apesar dos horrores do Hades, para Odisseu a vida não vale ser vivida a
qualquer preço. Por isso havia desprezado a oferta de imortalidade que Calipso
lhe fez. Para o herói, voltar para morrer vale mais do que viver sem voltar. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-54061510983281014182013-06-08T20:42:00.002-03:002013-06-09T01:56:59.428-03:00autoria ou afasia?<style>
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<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Em sua coluna de hoje (8/6/2013), no jornal O Globo, intitulada "Autoria ou afasia?", José Castello fez uma
crítica muito elogiosa ao meu livro, “Memória da pedra”, que transcrevo aqui: </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">"Autores não dominam seus livros. Ainda que o fizessem, jamais
conseguiriam controlar a leitura que deles fazemos. Leitores também não têm a
plena posse de suas leituras. A literatura é um fantasma que se agita entre os
escritores, seus originais e seus leitores. Experimentei esses sentimentos de
desgoverno ao ler “Memória da pedra”, de Maurício Lyrio (Companhia das Letras).
Alguns leitores ainda esperam que eu faça a “crítica” das ficções que leio. Mas
o que se passa aqui é outra coisa. Elas, sim, me interrogam e me criticam. Vão
mais longe: interrogam e criticam a cena literária que as produz e dentro da qual
eu tento pensar.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Tento mais uma vez. A literatura brasileira contemporânea cultiva uma
forte atração pela marginalidade. Obsessão pela violência, pelo submundo e
pelas gangues, que se transformaram nos clichês de certa “cena local”
brasileira. O marco original desse sentimento é, provavelmente, “Feliz ano
novo”, o extraordinário livro de contos que José Rubem Fonseca publicou em
1975. Lá se vão quase 40 anos, mas o encantamento — como uma memória que se
petrifica e embrutece — perdura.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Agora surge Mauricio Lyrio, um diplomata de 45 anos que, ainda que
retido na mesma trama, dá um passo à frente. Sem abandonar a obsessão pela
miséria, personificada pelo menino Romário, ele escreve para pensar. Seu
protagonista, o professor de filosofia Eduardo, entrega-se cegamente (contra
seus princípios) ao fascínio da pobreza. Nem a couraça filosófica o salva.
Apesar de si mesmo, contudo, ele pensa.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Não será por acaso que a história narrada por Lyrio se passa nos anos
1990, a década em que Patricia Melo lançou “O matador”, Paulo Lins nos deu
“Cidade de Deus”, Marçal Aquino se preparava para escrever “Cabeça a prêmio” e
Dalton Trevisan, um renitente admirador da miséria e do desastre, acabava de
publicar “Pão e sangue”. São livros emblemáticos, embora divergentes, que ditaram
o fio sutil que, desde os anos 1990, desenha a face de certa “literatura
brasileira internacional”.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">O menino Romário sintetiza essa ambivalência: raivoso e sedutor,
inteligente e debochado, ele atrai e repugna. Reflete, assim, a personalidade
do próprio professor. Inteligente, mas disperso, o cerebral Eduardo é
prisioneiro de seus impulsos interiores. Vive uma relação inconstante com a
mulher, Laura, que compensa com suas lições de Filosofia Moral. Ele conhece o
menino em um sinaleiro. Depois descobre que o garoto se esconde em uma toca nas
paredes do Túnel Velho. Aquele refúgio de pedra é o inaceitável. Logo, uma
questão filosófica se formula: acaso ou determinação?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Eduardo perdeu os pais ainda criança, em um acidente de automóvel. Para
a polícia, o pai dormiu ao volante. Já o professor é perseguido pela ideia de
suicídio, provocado pela descoberta de um câncer. A busca o aproxima do
oncologista Gilberto e o leva a conviver com a cáustica Marina, sua mulher.
Persegue a si mesmo.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Sem pensar, Eduardo decide levar o garoto para casa. Como abandonar o
menino em uma cova de pedra? Romário se parece com um bicho: sequer sabe o
próprio nome. Romário é só um apelido. Diante dele, também Eduardo é tomado por
uma espécie sutil de afasia: não encontra palavras que digam o que faz. O
irracional os conecta.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 13.0pt; margin-bottom: .1pt; margin-left: 0in; margin-right: 0in; margin-top: .1pt; mso-para-margin-bottom: .01gd; mso-para-margin-left: 0in; mso-para-margin-right: 0in; mso-para-margin-top: .01gd; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Na sala de aula, as meditações filosóficas do professor espelham suas
dúvidas íntimas. Diz: “O ponto mais importante é saber se o que fazemos é
determinado por elementos externos, fora do nosso controle, ou se é algo
livremente escolhido”. Fala de si. Enquanto isso, através do professor,
Maurício Lyrio fala dos impasses em que certa ficção brasileira contemporânea,
desde os anos 1990, se embrenhou.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Eduardo procura sentidos literários para sua crise. Qual seria a
diferença entre Smerdiakov e Ivan, os irmãos Karamazov? O professor vê nos
personagens de Dostoievski “dois extremos da ideia de responsabilidade moral”.
Smerdiakov, o assassino de Fiodor, atribui seu ato a fatores externos, que é
incapaz de controlar. Não se reconhece como culpado. Enquanto isso, Ivan, “que
não cometeu crime algum, apenas manifestou o desejo momentâneo de ver o pai
morto”, arde de culpa pelo que não fez. Será Romário responsável por seus atos?
Quando pensamos em um menino de rua, cabe pensar em responsabilidade moral?
Quem toma para si a salvação do outro sabe, realmente, o que está fazendo?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Até que ponto um desejo obscuro (de salvação? de purgação?) move a
literatura brasileira contemporânea? Mas até que ponto fatores extra-literários
— os apelos do mercado, os valores da “literatura internacional” — movem, na
verdade, nossos escritores? Do mesmo modo: que nome dar à obsessão de Eduardo
por Romário? O que há de deliberado, o que há de impulsivo? O que o professor
realmente deseja? O que move o próprio Lyrio?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Romário sente medo e sabe que deve “ficar frio e duro que nem o chão”.
Transformar-se em pedra, ou não viverá. Mas transformar-se em pedra é uma
maneira de viver? Eduardo segue o menino em uma viagem pela periferia. No
Complexo do Alemão, avista um balão que “subia com uma lentidão sobrenatural,
como se naufragasse no ar”. Defronta-se com a morosidade enervante do real, que
não se modifica segundo nossos desejos. O real é como o corpo de sua mulher,
Laura. Ela o vê como “uma continuação de si”, algo que “habitava e conduzia
como uma entidade externa”. Se vemos a nós mesmos como estranhos, como suportar
a presença do outro?</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Eduardo admira em Laura seus preconceitos contra os arroubos e as
paixões, mas ele mesmo é prisioneiro de uma ideia fixa. Afirma preferir a
distância, como os quadros que Laura pinta, “entre o abstrato e o figurativo”.
O fascínio do Eduardo pelo menino inverte, ainda, a frieza da vida acadêmica,
com seus professores elegantes e impessoais. Salva o menino, ou salva a si
mesmo? “Era difícil saber do outro, do que está encerrado no fundo da memória
ou do sentimento como um quarto escuro”. Não só a memória, mas o desejo também
é de pedra. Afásico, Eduardo martela o mundo, mas, apesar da bengala
filosófica, não sabe o que busca. Ao criá-lo, Maurício Lyrio se afirma como
autor e dá um passo à frente de seus contemporâneos."</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<span style="font-family: "Comic Sans MS"; font-size: 10.0pt; mso-ansi-language: EN-US; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-font-family: Cambria; mso-fareast-language: EN-US;"></span>
Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-59860776582643930252013-01-27T23:49:00.000-02:002013-01-28T01:05:11.979-02:00Malagueta, Perus e Bacanaço<div style="text-align: justify;">
<br />
A vida não parece ter sido fácil para o paulistano João Antônio (1937-1996), o contista e cronista da malandragem e dos subúrbios de São Paulo e Rio, talvez o herdeiro mais competente do olhar marginal e inconformado de Lima Barreto. “Malagueta, Perus e Bacanaço”, a coleção de contos que o notabilizaria, teve de ser reescrita de memória, depois que os originais foram queimados num incêndio que deixou o escritor só com a roupa do corpo. Alguns anos depois, no final dos anos 60, João Antônio iria casar-se e logo largar mulher, filho, automóvel e trajes formais para se dedicar à literatura e se reaproximar da marginalidade que o fascinara como tema. A morte não lhe foi mais suave: morreu solitário em seu apartamento em Copacabana, e seu corpo só foi encontrado quinze dias depois. <br />
Vida e obra talvez se completem na aspereza e na desilusão. Quando se lê um conto de João Antônio a impressão que fica é a de uma perdição estrutural, de personagens enredados nas armadilhas de seu meio e nos limites de suas capacidades e vícios. “Malagueta, Perus e Bacanaço”, conto que dá nome ao primeiro livro de João Antônio, é, juntamente com “Meninão do caixote”, um de seus textos mais interessantes e retrata, numa atmosfera de melancolia, de fim dos tempos, a malandragem das rodas de sinuca em bairros pobres de São Paulo. <br />
O cafetão Bacanaço, o velho Malagueta e o menino Perus perambulam pela madrugada de São Paulo, de bar em bar, de bairro em bairro, em busca do jogo que lhes dê algum dinheiro. O bilhar é o meio precário de vida de que dispõem, e os três procuram aliar suas habilidades e misérias para arrancar um trocado de jogadores desavisados. João Antônio narra a trajetória do trio como a queda de um império já falido, em que a fome e a desesperança só fazem crescer quanto mais os protagonistas tentam superá-las. Conhecemos as visões diferenciadas dos três personagens em seqüência, um ponto de vista por vez, à medida que as tentativas de triunfo vão caindo por terra a cada bar (Paratodos, Salão Ideal, Celestino, Joana D’Arc, Jeca, Americano) e a cada bairro (Lapa, Água Branca, Barra Funda). Conforme a frase célebre de abertura de “Anna Karenina”, de Tostói, segundo a qual todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira, cada malandro de João Antônio reflete um modo particular de sofrimento, por mais homogêneos que sejam os constrangimentos que o meio social e econômico lhes impõe. <br />
Talvez o melhor em João Antônio sejam justamente os perfis de personagens. Bacanaço, por exemplo, “era taco melhor, jogador maduro, ladino perigoso da caixeta, do baralho e da sinuca, moreno vistoso e mandão, malandro de mulheres. Camisa de Bacanaço era uma para cada dia.” Já o Sorocabana era “trouxa, coió-sem-sorte, andava esbagaçando um salário-prêmio recebido pelos vinte anos de trabalho efetivo na lida brava da estrada de ferro. Sim. Casado, três filhos, um homem de vida brava. Um inveterado, um pixote se metendo a gente, um cavalo-de-teta. E Bacalau (outro malandro) perguntava-se: “Para que trouxa quer dinheiro?”” Muitas vezes, os perfis traçados pelo autor incorporam a visão de mundo de personagens que, apesar de virem da periferia, reproduzem uma mentalidade conservadora”: Teleco, por exemplo, “vestida como homem, era mulher que gosta de mulher. (...) Àqueles ombros tarimba sobrava, que foram cinco os anos curtidos no pavilhão feminino do presídio da Alegria. À boca pequena, boquejava-se que lá Teleco se fartava, e quando em liberdade até estranhou e precisou arranjar uma amiga.” Ou no caso do malandro Caloi:<br />
<br />
“Jogava que jogava Caloi. Osso duro de roer. Deu trabalho a muitos tacos, era um artista, era um cérebro, um atirador. Mas deu também para mulheres, e sua mão começava a tremer no instante das tacadas. Foi indo, indo, tropicando. Quando deu fé, parecia um galo cego que perdeu o tino. Deu, então, para a maconha e uma feita ficou célebre – vez em que um pixote lhe tomou quinze contos num dia de carnaval lá na rua Barão de Paranapiacaba. Aquilo o encabulou, arruinou o seu juízo de jogador. A maconha desfez o homem, lhe apodreceu o cérebro e Caloi acabou falando sozinho, feito um tantã de muita zonzeira lá num pavilhão do Juqueri.”<br />
<br />
João Antônio combina gírias locais do submundo com linguagem formal na tentativa de retratar o universo particular da baixa marginalidade, dos malandros otários, que mais se enganam do que aos outros. Na maioria das vezes a mistura dos registros funciona bem e parece refletir o próprio desejo do malandro de florear seu discurso: “Qualquer palavra ganha dignidade na boca da polícia e ninguém ri. Ademais, Lima era um tira aposentado e ainda sustentava influências. Palavra dele tomava tamanho nas possíveis e inesperadas batidas da policia.” Ou: “E quando é madrugada até um cachorro na praça da República fica mais belo. Luz elétrica joga calma em tudo.” <br />
Em outras situações, no entanto, o esforço de criar uma linguagem ao mesmo tempo fiel ao meio e rica do ponto de vista literário torna-se ostensivo, e o texto perde em naturalidade: “Chegara-lhes depois um vizinho safado empurrando-lhes a gana para bem longe.” Nesses casos, o uso excessivo de pronomes oblíquos em ênclise ou do pretérito mais que perfeito acaba por entrar em choque com a leveza e a coloquialidade do vocabulário. Em alguns momentos, João Antônio parece querer mostrar, a qualquer custo, seu rico arsenal de gírias, como se precisasse exibir os resultados de um trabalho antropológico. As longas enumerações soam um tanto artificiais: “o joguinho se aprende jogando, tudo o mais é ilusão, engano, embandeiramento, onde de otário”; ou “àquela tarde, tinham manha, tinham charla, boquejavam a prosa mole”. Quase sempre a enumeração é tripla: “E vão como viradores, sofredores, pés-de-chinelo.”<br />
Mais do que registrar a linguagem de um meio, João Antônio parece querer reproduzir aquele mundo esquecido e marginal. Vale-se não só do vocabulário específico, mas também da descrição de jogos, truques e ambientes, especialmente dos botecos. O desejo de refletir uma realidade chega ao ponto de João Antônio introduzir no conto personagens “reais”, como o célebre “Carne Frita”, campeão brasileiro de sinuca, que interage com os personagens ficcionais. <br />
Para Antonio Candido, “João Antônio faz para as esferas malditas da sociedade urbana o que Guimarães Rosa fez para o mundo do sertão, isto é, elabora uma linguagem que parece brotar espontaneamente do meio em que é usada, mas na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de uma estilização eficiente”. É sempre difícil cotejar autores. Se João Antônio conseguiu um feito semelhante ao de Rosa, é matéria controversa. Mas não há dúvida de que retratou, com fina observação e talento literário, um mundo até então pouco lembrado pela literatura brasileira. </div>
<br />Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-77281805846948613892013-01-07T03:32:00.000-02:002013-01-07T13:39:32.034-02:00o púcaro búlgaro<div style="text-align: justify;">
<br />
Se estilo próprio e originalidade são critérios centrais de avaliação do mérito literário, Campos de Carvalho deveria representar um marco importante na literatura brasileira. É um escritor singular, que funde humor e nonsense para criar obras que desconcertam.<br />
<br />
O humor ocupa, no entanto, um lugar ambíguo, nem sempre confortável, como fator de excelência na literatura. Basta recordar a avaliação de José Veríssimo de que o humor foi “excluído” como critério de valorização do poético durante o romantismo. Se é comum aos escritores recorrer ao cômico, especialmente por meio da ironia (Machado, Mário e Oswald, Drummond, Bandeira, Guimarães, Nelson Rodrigues e outros), é raro o autor que faz do humor o elemento central de sua obra.<br />
<br />
Na literatura brasileira, o cômico como centro foi menos comum em narrativas longas, como o romance e a novela, do que em outras formas literárias mais condensadas. Há todo um arco de militância do cômico que vai da poesia satírica de Gregório de Matos até o teatro de Martins Pena, Qorpo Santo e Artur Azevedo. Hoje se manifesta, entre outros autores, na crônica de observação social e política de Luís Fernando Veríssimo, no lirismo de Vanessa Barbara (e suas crônicas de bibliofilia) e nos contos tragicômicos de Verônica Stigger, que, em narrativas curtas como as de “Os anões”, pratica uma curiosa combinação (à maneira do Cortázar de “Las ménades”, “Ômnibus” e “Carta a una señorita en París”) entre o animalesco, o patético e o fantástico.<br />
<br />
O humor foi, de fato, um primo pobre da melancolia, da denúncia ou do intimismo nas narrativas longas na literatura brasileira. Não consagramos nenhum Swift, Twain ou Voltaire. Nosso grande autor satírico no século XIX, Manuel Antônio de Almeida, escreveu apenas um romance (“Memórias de um sargento de milícias”) e morreu aos 31 anos, em um naufrágio.<br />
<br />
José Cândido de Carvalho e Ariano Suassuna produziram, já no século XX, obras que deram ao regional e ao interiorano um cunho humorístico, mas o romance moderno brasileiro é fundamentalmente sisudo, de Graciliano a Guimarães, de Clarice a Raduan Nassar. É aqui que o lugar de Campos de Carvalho parece singularizar-se. Nenhum outro autor conseguiu fundir humor e absurdo de maneira tão original.<br />
<br />
“O púcaro búlgaro” é um romance surrealista publicado em 1964. Conta, em primeira pessoa, a história de um habitante da Gávea (a gávea de um expedicionário marítimo), zona sul do Rio, que, após visitar um museu na Filadélfia e deparar-se com um púcaro (pequeno vaso) búlgaro, questiona a existência da Bulgária. De volta a seu apartamento na Gávea, decide preparar uma expedição para sanar sua dúvida angustiante. Ao referir-se às palavras “púcaro” e “búlgaro”, o autor/narrador tergiversa:<br />
<br />
“Nos dicionários eles lá estão, um e outro, com os seus verbetes – mas isso é fácil, Deus também lá está; queria é vê-los o autor aqui fora, resplandecentes de luz solar e não de luz elétrica ou gás néon, e sem os canhões de Tio Sam para lhes garantir a pucaricidade ou a bulgaricidade.”<br />
<br />
A expedição de verificação é razão para o narrador arregimentar uma galeria de personagens exóticos, seu exército de Brancaleone: um professor de bulgarologia, o cearense Radamés Stepanovicinsky; Pernachio; Expedito; um marinheiro fenício; Fulano Meireles... É um grupo ainda mais heterodoxo e tresloucado do que o genial conjunto de “Los siete locos”, de Roberto Arlt. O romance gira em torno da convivência absurda entre os expedicionários imóveis (e Rosa, criada e amante do narrador), com suas manias e improbabilidades. Campos de Carvalho usa das mais variadas formas de paradoxos, enigmas, trocadilhos e estripulias narrativas para criar uma atmosfera de completo nonsense.<br />
<br />
Há um evidente prazer de Carvalho no brincar com a língua portuguesa. Um dos elementos mais atraentes do livro é justamente a desconstrução de lugares comuns e o gosto do jogo de palavras. Valem mais do que a própria incursão auto-irônica de Carvalho por questões filosóficas e metafísicas, como a idéia de ser ou o conceito de existência.<br />
<br />
Se há algo que soa excessivo em “O púcaro búlgaro” é, em certos trechos, a mão um pouco pesada do autor, que faz da piada (algumas vezes, escracho puro) um objetivo permanente, mesmo quando não cabe ou cansa. Quando Campos de Carvalho pratica um humor mais lírico (como na página antiga, “insertada”, sobre Rosa), o romance ganha em apelo, mas o lirismo não é mais do que um elemento marginal em seu humor. Campos de Carvalho defronta-se aqui com o velho problema enfrentado pelos militantes do humor na literatura: o de manter o fôlego de uma narrativa mais longa que, ao fundar-se no cômico, acaba por romper o pacto ficcional, de “suspensão da descrença”, e estabelece um distanciamento crítico entre leitor e obra. </div>
Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-31207361895885134062012-11-12T02:37:00.000-02:002012-11-12T02:37:53.076-02:00Jerusalém
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<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Abri “Jerusalém”, romance do
português Gonçalo M. Tavares, com a melhor das expectativas. Um livro premiado de
um autor freqüentemente enaltecido por sua obra de ficção e pela sensatez e
conhecimento com que faz seus comentários sobre literatura. Fechei-o, no
entanto, com a sensação de ter lido um bom escritor, mas de não ter me
envolvido com seus personagens alegóricos nem me impressionado com os elementos
inventivos de sua narrativa. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“Jerusalém” é a história de
uma série de relações de opressão e violência. Personagens construídos quase
como alegorias, como tipos ideais de sentimentos ou condições (Mylia, a oprimida;
Theodor, o cerebral; Ernst, o amante louco; Hanna, a prostituta; Hinnerk, o
violento; Kaas, o frágil) encontram-se e ferem-se em um meio marcado pela
experiência do passado como catástrofe coletiva (a guerra; o Holocausto; a
história do horror) e pela iminência da tragédia pessoal. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Gonçalo Tavares enreda os
personagens numa narrativa que vai e volta em suas vidas e revela aos poucos,
como num quebra-cabeça, os elementos quase sempre traumáticos que os unem. Há engenho
na maneira como o autor nos surpreende e revela a trajetória de cada um, como
quando descobrimos, já no capítulo 9, o que uniu Mylia e Ernst, tenuamente
interligados no começo do livro e, antes, companheiros de hospício, perdidos no
emaranhado de personagens e manias ao redor. Os títulos dos capítulos com
combinações de nomes de personagens já antecipam essas relações e têm um apelo
de concisão e elegância, embora a rearrumação dos nomes comece a parecer menos
intrigante conforme se avança no livro.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Embora articulados de
maneira engenhosa, os personagens de “Jerusalém” parecem descarnados, rasos. São
antes veículos de dores e mensagens do que figuras de carne e osso literário. Ao
analisar a obra de Thomas Pynchon, James Wood chama a atenção para as
dificuldades e riscos na criação de personagens alegóricos. A ousada aposta de
Kafka nem sempre dá certo quando não se é Kafka. Foi a sensação que tive ao ler
a história de Mylia, Ernst, Theodor e demais personagens de “Jerusalém”. Sua
natureza esquemática, opaca, nos impede o envolvimento. Acompanhamos suas
histórias, mas por falta de empatia não as sentimos e vivenciamos. O próprio
uso do tempo presente da narrativa, embora agilize a trama e dê um sentido de
urgência e iminência ao registro de cada personagem, acaba por agravar a
sensação de que os vemos de forma plana, estereotipada, vazios de conteúdo. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Também há certa
artificialidade e caricatura na maneira como Gonçalo Tavares nos revala
horrores já conhecidos. O problema de repetir em ficção a denúncia de horrores
óbvios, como o Holocausto, a guerra ou a violência dos hospitais psiquiátricos,
é que, por seu caráter extremo, tais flagelos não comportam ambigüidade e
dúvida e não há como pintá-los em cores e tons variados. O uso do preto e do
branco em literatura quase sempre assoma como esquemático. Veja-se, por exemplo, a
seqüência de capítulos intitulados “Europa 02”: são descrições curtas de aspectos de uma espécie
de prisão ou mundo kafkiano, que lembra um campo de concentração. O autor
procura introduzir elementos inovadores na forma (a linguagem de manual, os
subtítulos escritos na vertical da página), pela simples dificuldade de ser
original ou ambíguo na própria matéria tratada.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Há passagens fortes no
livro, que revelam uma aguda sensibilidade de Gonçalo Tavares para o tema da
vulnerabilidade humana ou da violência. Especialmente marcante é a imagem de
Kaas, o filho frágil e risível de Theodor, no momento em que ouve, na iminência
da briga com um colega de escola, a frase mais ofensiva e humilhante que um
garoto pode ouvir:</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“(...) estavam assim os dois
naquele instante único onde o contato físico violento é inevitável e quase
imprescindível, quando subitamente o seu opositor, como que lembrando-se
naquele momento de algo que se esquecera com os insultos trocados, parou, e
afastando-se num movimento que em outras condições seria indiscutivelmente
considerado como cobarde, afastando-se, então, disse, para Kaas: eu não posso
lutar contigo.”</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">O mesmo Kaas, humilhado pela
recusa do mais forte em espancá-lo, irá surpreender-nos com o gesto aparentemente
gratuito contra a avó.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Algumas passagens
iluminadoras no livro convivem com trechos e imagens desnecessários. Gonçalo
Tavares é um escritor prolífico e, no romance, dá-nos a sensação de que quer
aproveitar todo e qualquer pensamento seu. Há comentários um tanto ociosos
(“uma mancha de tinta espessa, como se a tinta atribuísse a si própria a
responsabilidade de tornar mais alto o tampo da mesa”); metáforas de gosto
duvidoso (“havia, pois, em Theodor, a sensação de limpeza na própria vida, como
uma empregada que tivesse acabado de tirar do lugar um móvel antigo que
impedia, há décadas, o movimento rápido dentro de casa”); e até pleonasmos
duplos (“uma espécie de azedume fixo permanecia constante”). Embora curto,
“Jerusalém”, ao menos na edição portuguesa que li, da editora Caminho, ganharia
com uma revisão mais rigorosa.</span></div>
Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-22209422936373781662012-10-21T20:35:00.000-02:002012-12-28T21:56:17.896-02:00Binet, HHhH e o Salon de Fleurus<div style="text-align: justify;">
<br />
Laurent Binet ganhou o Prêmio Goncourt para romances de estréia, em 2010, com seu romance histórico “HHhH”, sobre, entre outras coisas, o assassinato de Reinhard Heydrich, chefe da Gestapo, em maio de 1942. “Romance histórico” (ou qualquer outra categoria) se aplica de maneira imperfeita ao livro de Binet, que mistura reflexões sobre o processo de redação do próprio livro, referências literárias e pessoais em tom autoficcional e história propriamente dita. Como “A sangue frio”, de Capote, ou mesmo “Os sertões”, de Euclides da Cunha, “HHhH” parece ocupar um lugar a meio caminho entre o histórico e o ficcional em sentido amplo.<br />
Binet, que é professor de literatura numa escola de ensino médio em Paris, participou na semana passada de um evento organizado pelo MoMA, em Nova York. Ele e mais quatro convidados lá estiveram para falar ao pequeno público presente sobre suas experiências ao visitar um curioso lugar chamado “Salon de Fleurus”.<br />
O “Salon de Fleurus” é, supostamente, um apartamento subterrâneo no Soho que simula e “comenta” o antigo salão da Gertrude Stein na rue de Fleurus em Paris. O detalhe é que os criadores do apartamento não se identificam, não divulgam que o lugar existe (a coisa circula à boca pequena, entre iniciados), e os curiosos que por lá aparecem são recebidos por um porteiro de sotaque iugoslavo que age como se não tivesse nenhuma relação com o apartamento. O porteiro quer ouvir histórias do visitante e, em troca, conta histórias do lugar, antes de franqueá-lo aos curiosos. Lá dentro o visitante vê reproduções dos amigos e afilhados da Stein (Picasso, Matisse...), fotografias, mobiliário de época (que ninguém diz se foram do salão original em Paris), tudo ao som de Edith Piaf, que é pós-Stein naturalmente. Trata-se, portanto, de um apartamento-museu sem autoria aparente nem qualquer pretensão de fidelidade histórica. Mais parece um comentário visual e anônimo sobre Gertrude Stein e a arte moderna.<br />
Como não fala bem o inglês, Binet leu um texto curto que escreveu sobre a visita ao Salon: o nonsense da conversa com o porteiro, a sensação de deslocamento no tempo, de vertigem das referências a referências em “mise-en-abîme”, a imagem de Shakespeare (“The time is out of joint”), a lembrança da “Invenção de Morel”, de Bioy Casares, com seu invento que reproduz e revive eternamente o passado. Binet mencionou dois autores norte-americanos que admira (Bret Easton Elis e Chuck Palahniuk) e sua preferência pela narrativa de eventos “reais”, em que há indícios de que aconteceram de fato, por oposição à ficção propriamente. <br />
Essa é a questão que parece interessar a Binet: a diferença de registros entre o “real” e o ficcional. Já no início de “HHhH”, ele cita Kundera para falar da arbitrariedade de dar nomes a personagens ficcionais. E para Binet, Kundera poderia ter ido além: há algo mais vulgar do que um personagem inventado? Ironicamente, Binet reconhece que, para contar a história de Gabcik, o soldado eslovaco que participou do assassinato de Heydrich, terá de transformá-lo em personagem, em literatura:<br />
<br />
“J’espère simplement que derrière l’épaisse couche réfléchissante d’idéalisation que je vais appliquer à cette histoire fabuleuse, le miroir sans tain de la réalité historique se laissera encore traverser.”<br />
<br />
Conversei com Binet ao final do evento. É figura simpática e tranqüila. Perguntei o que ele planejava depois de “HHhH”. Ele disse que tinha acabado de fazer um livro sobre a campanha presidencial francesa, e começava agora um novo romance, que também será histórico e deverá se passar nos anos 80. Perguntei se seria na mesma linha de “HHhH”, de desconstrução do romance histórico. Ele sorriu e disse que sim.</div>
<div style="text-align: justify;">
Realidade e ficção. Fato e referência. Relato e narrativa. Saí do MoMA sem a certeza de que o “Salon de Fleurus” existe. Talvez seja um lugar imaginário. A idéia de que um apartamento sem dono aparente no Soho reflete e comenta um célebre e histórico salão da Paris dos anos 20 também parece ocupar um lugar entre realidade e ficção.</div>
Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-84306688990016292602012-10-07T21:00:00.000-03:002012-11-24T18:11:16.737-02:00ponto ômega<style>
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<br />
<div style="text-align: justify;">
“Point Omega” é um romance curto e incômodo de Don Delillo. Algumas de suas imagens e cenas permanecem pelo desconforto que provocam, o desconforto do silêncio como consolo em um mundo onde as relações são tão áridas quanto o deserto em que a história se desenrola. Há uma elegância seca no narrar que só reforça o sentido de desesperança na trajetória (quase imóvel) dos três personagens centrais.</div>
<div style="text-align: justify;">
Richard Elster é um velho professor que trabalhou para o Pentágono no período da Guerra no Iraque (“more than two years of living with the tight minds that made the war”). Dava sentido e coerência à guerra como instrumento e como fim. Tem, portanto, a dureza e a desilusão dos que ajudam o poder a exercer-se de forma extrema, e agora, ao fim da vida, parece afastar-se para fazer um balanço. O narrador, Jim Finley, um jovem documentarista, quer fazer um filme sobre Elster e se hospeda em sua casa, em pleno deserto no interior dos Estados Unidos. Lá recebem a visita da filha de Elster, Jessica, que procura esquecer sua própria inadequação à vida dando apoio a velhos no Upper East Side, em Manhattan (“She wasn’t a child who needed imaginary friends. She was imaginary to herself.”)</div>
<div style="text-align: justify;">
Diante do espaço imóvel, árido, a relação entre os três parece congelada no tempo (“Time slows down when I’m here. Time becomes blind. (...) I don’t get old here”). E o tempo é o tema desse romance de DeLillo. O tempo que não transcorre até o corte representado pelo evento trágico e inapreensível. O tempo que custa a passar no deserto ou no filme projetado quadro a quadro, na bela imagem inicial da instalação no museu novaiorquino, que exibe Psicose, de Hitchcock, em câmera lenta, como se o próprio correr do evento trágico (como no clássico assassinato no chuveiro) pudesse ser decomposto em suas unidades fundamentais. Há uma poesia torta na imagem de um corpo que sucumbe quadro a quadro ou do sangue que gira em espiral quase imóvel até desparecer ralo abaixo.</div>
<div style="text-align: justify;">
Elster, em uma reflexão citada pelo narrador no começo do capítulo 1, parece bergsoniano em sua visão da vida como interioridade, como fluxo, tempo:</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
“The true life is not reducible to words spoken or written, not by anyone, ever. The true life takes place when we’re alone, thinking, feeling, lost in memory, dreamingly self-aware, the submicroscopoic moments.”</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Point Omega é um livro de poucos excessos. Somente numa passagem ou outra, DeLillo faz um esforço excessivo para soar inteligente demais, como em alguns comentários de Finley sobre Elster (os drinks que tomam, a bengala que humaniza). No mais, é um texto de inegável elegância, em que um DeLillo um tanto sombrio e resignado diante do peso e da inexorabilidade do tempo, cria um pequeno universo de silêncio e desencanto.</div>
Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-17883662918584649382012-07-22T21:17:00.001-03:002012-11-24T18:16:54.723-02:00a montanha da alma<div style="text-align: justify;">
<br />
Já se vão alguns anos desde que li “A montanha da alma” (“Soul Mountain”), de Gao Xingjian, o primeiro chinês a ganhar um Nobel de Literatura. Algumas lembranças fortes e, sobretudo, certa atmosfera onírica permanecem. Foi dos livros mais originais e impressionantes que já li.</div>
<div style="text-align: justify;">
Parte da melancolia que encanta no livro vem desse personagem que perambula pela China depois de ganhar uma segunda vida; já no começo, somos informados de que o protagonista havia descoberto que o laudo sobre sua suposta doença terminal estava equivocado, como de resto aconteceu com o próprio Gao Xingjian, erroneamente diagnosticado com um câncer de pulmão. Depois desse momento revelatório, o alter-ego de Gao irá percorrer o interior da China recolhendo histórias miúdas, locais, narrando ou testemunhando os acontecimentos como um personagem existencialista metido em vilarejos da imensidão chinesa, uma espécie de Roquentin ou Mersault fora do lugar.</div>
<div style="text-align: justify;">
Há histórias extraordinárias, de homens (o homem perdido na montanha; a menina contorcionista; o homem picado pela cobra; a prostituta), de rituais chineses (os festivais; o barco-dragão; os sacrifícios aos ancestrais), de animais (tigres; pandas que precisam de homens para alimentar-se). A graça maior está em seu entrecruzamento, na vertigem provocada pela sucessão e costura das histórias, pela maneira como se desdobram de fatos e sensações. Como diz Gao, “fiction is different from philosophy because it is the product of sensory perceptions” (“a ficção é diferente da filosofia porque é o produto de percepções sensoriais”).</div>
<div style="text-align: justify;">
Esse aspecto fabuloso e envolvente é reforçado pela maneira original como Gao multiplica suas vozes e pontos de vista. Há algo de hipnótico na alternância entre a narrativa em 1a pessoa (o protagonista em busca, ao longo do Yang-Tsé, da “realidade” que quase lhe escapa pela morte) e em 2a pessoa (a busca de Lingshan, a “montanha da alma”). A voz na 2a pessoa, narrada no presente, é elegantemente eficaz para expressar certo distanciamento e a sensação de irrealidade que o livro provoca: “In the orange-yellow sunlight of early morning, the mountain scenery is fresh and the air is clean, and it doesn’t seem that you had a sleepless night.” (“Na luz laranja-amarela do sol do começo da manhã, o cenário da montanha é fresco e o ar é limpo, e não parece que você passou a noite sem dormir.”)</div>
<div style="text-align: justify;">
“A montanha da alma” é um belo livro sobre associação e indistinção entre memória e realidade. O envolvimento não vem apenas do exótico, das histórias e a da atmosfera chinesa, mas da agradável estranheza causada pela maneira como Gao as desfia e tece. A certa altura, o protagonista, num exercício de auto-reflexão, afirma, “it seems in the end that I am just a connoisseur of beauty” (“parece que, no fim das contas, sou apenas um connoisseur de beleza”). Mais do que um mero conhecedor da beleza, Gao Xingjian produziu um dos romances mais enigmáticos e belos da literatura contemporânea.</div>
Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-53757692706478586262012-07-07T18:56:00.000-03:002012-11-17T16:03:43.123-02:00o outro<div style="text-align: justify;">
<br />
Um exemplo de peça de teatro fundamentalmente filosófica – mais tese do que drama – é “El Otro (Mistério en tres jornadas y un epílogo)”, de Miguel Unamuno. É a história de dois gêmeos que se confundem e perdem a própria identidade. Separados pelo ódio (nesse caso, do outro e de si) e pelo amor da mesma mulher, um assassina o outro. Ocorre que, após o crime, o assassino não sabe quem é – ele mesmo ou o irmão. Confundem-se Caim e Abel, algoz e vítima. Perdida a identidade, nada restará além da loucura e do suicídio. Já não se poderá distinguir o assassinado do suicida.</div>
<div style="text-align: justify;">
Unamuno quer discutir semelhanças entre elementos aparentemente opostos: identidade e alteridade; algoz e vítima; vida e morte. Trata-se de relativizar as diferenças, de esvaziar anatagonismos morais. Para ele, tais dualismos esconderiam unidades e convergências fundamentais, como o instinto de violência, a ânsia de superar o outro, o desejo de conquista. O ato criminoso seria o resultado de uma conjuntura particular, em que é dado a um a possibilidade de cometer um crime, a outro, a circunstência de ser sua vitima. Por isso, os antagonismos seriam falsos ou, quando muito, circunstanciais, como se evidencia pelas visões de Damiana, a personagem dominadora: <br />
<br />
“Abel es malo!... si no le mata Caín, le habría matado a Caín”; “El que se hace víctima es tan malo como el que se hace verdugo”; “Todo asesino asesina defendiéndose. Defendiéndose de sí mismo...”; “La tumba es cuna y la cuna es tumba”; “Caín el que sufre.” <br />
<br />
A relativização moral do personagem chega ao niilismo. Ao eliminar a idéia de identidade e responsabilidade moral, tudo se redime, nada se condena. A ausência de culpa acaba por isentar opressão e crime.<br />
Mais interessante do que esse dilema moral é a discussão existencial em si, não mais centrada no porquê da vida, e sim na definição da individualidade, da identidade pessoal. Não são apenas os outros que questionam quem é um ou o outro; é o próprio gêmeo sobrevivente que não sabe mais quem é. Esta confusão estaria presente de forma aguda nas duas situações-limite do homem: loucura e morte.<br />
“El Otro” não emociona como drama; é um bom pretexto para Unamuno discutir suas idéias sobre relativismo moral e identidade do indivíduo.</div>
Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-57339379875311536222012-06-03T21:53:00.001-03:002012-11-17T16:09:25.286-02:00três contos menores de Cortázar: a noite de barriga para cima; cartas de mamãe; bestiário<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Numa entrevista à Paris Review, Hemingway disse que o bom escritor precisa, sobretudo, de um “built-in, shock-proof shit detector”, ou seja de um detetor de merda embutido e à prova de choque. Queria dizer que o maior defeito de um escritor é a ingenuidade, a falta de senso crítico para filtrar tolices e inocências. </div>
<div style="text-align: justify;">
O pecado da ingenuidade pode acometer, no entanto, alguns dos melhores escritores. É a impressão que me fica depois de ler “A noite de barriga para cima” (“La noche boca arriba”), conto de Cortázar. A ingenuidade é dupla, tanto de estrutura como de execução.<br />O personagem principal sofre um acidente de moto. No hospital, febril, terá um pesadelo recorrente, em que se encontra numa “guerra florida”, perseguido por guerreiros comandados por sacerdotes astecas. O conto alterna momentos de vigília no quarto de hospital e situações de guerra, em que o personagem sempre procura fugir dos seus perseguidores. Quando, ao final, é capturado, preso e conduzido à sua execução num templo de sacrifício asteca, somos informados de que o pesadelo da perseguição era a realidade, ao passo que o acidente de moto e a recuperação no hospital, apenas um sonho estranho e bom.<br />É uma idéia um tanto ingênua, estruturada de forma quase didática na alternância de sonho e vigília. O problema é que a execução tampouco é boa. Não vemos aqui um Cortázar de humor sutil, de imagens sofisticadas. Elementos como o amuleto no peito, o túnel e as escadas para o sacrifício religioso soam como clichês, e invenções como o grupo dos “motecas” (evocação de motociclistas e cultura pré-colombiana do tipo olmecas, astecas) fazem gemer qualquer shit-detector. <br /> </div>
<div style="text-align: center;">
xxx<br /> </div>
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“Cartas de mamãe” (“Cartas de mamá”) é a história de uma obsessão, de uma culpa. Luis vive com Laura em Paris, e toda vez que recebe uma carta de sua mãe, que permaneceu em Buenos Aires, revive o sentimento de que a mudança para Paris foi sobretudo o abandono de uma cidade, de uma mãe solitária e de um passado que era melhor esquecer: “cada carta de mamá (...) cambiaba de golpe la vida de Luis, lo devolvía al pasado como un duro rebote de pelota”. <br />A mistura entre a revolta e a culpa será agravada por um erro de sua mãe numa das cartas. Ela se refere a Nico, o irmão morto de Luis, como se ele ainda estivesse vivo. Nico era o namorado de Laura, quando adoeceu e viu surgir a paixão e o romance entre Laura e Luis. Com sua morte, provocada ou não pelo desgosto com o irmão, Laura e Luis casam-se e seguem imediatamente para Paris, fugindo da condenação da família. A angústia maior de Luis deriva dessa culpa ante o irmão, mas também do ciúme gerado pelo silêncio de Laura, incapaz de referir-se ao cunhado. As cartas seguintes revelarão que o erro da mãe não era fortuito – ela terá enlouquecido – e quando anuncia a chegada próxima de Nico a Paris, tanto Luis quanto Laura, separadamente, estarão à espera do fantasma de Nico na estação. <br />Não é dos melhores contos de Cortázar, mas consegue, ao mesmo tempo, transmitir a mistura de indignação e culpa do protagonista e introduzir o elemento surreal e fantástico derivado não da possibilidade de chegada do rapaz já morto, mas da estranha credulidade do casal.<br /> </div>
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xxx<br /> </div>
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Mais um conto de Julio Cortázar pelos olhos de uma menina é “Bestiário” (“Bestiario”), que conta a história de Isabel, que vai passar as férias de verão na casa dos tios Funes, “Los Horneros”. Lá ela gosta de brincar com o primo Nino (os jogos, a construção dos formigueiros, dos herbários), de acariciar “las manos blancas” de tia Rena e de observar a introspecção do tio filósofo Luis e a irritabilidade de tio Nene. Cortázar dá-nos as impressões vagas e líricas de Isabel, e esconde-nos os detalhes familiares (qual exatamente a relação entre a família de Isabel e os Funes, qual a natureza do assédio de Nene sobre Rena) e oferece-nos apenas referências indiretas à característica mais marcante de “Los Horneros”: a presença de um tigre na casa. É essa presença que determina em grande medida os movimentos de todos, quando e onde comer por exemplo. Em meio às observações e reflexões de Isabel sobre a família, sobre os bichos e folhas (nunca sobre o tigre), vamos entrevendo detalhes insuficientes da relação de Nene e Rena e do “modus vivendi” com o felino, do sistema de avisos e alertas sob o comando do capataz.<br />Cortázar nunca chega a esclarecer esses dois mistérios (o que dá ao conto seu estado de suspensão, de ligeira irrealidade), apenas faz com que venham a convergir ao final. Sem uma clareza de intenções previamente enunciada, Isabel indica ao tio Nene a localização errada do tigre. Para íntima e muda gratidão de tia Rena, o gesto de Isabel a livrará de uma vez por todas dos assédios de Nene.</div>
Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-65973167445394540942012-05-20T22:35:00.000-03:002012-05-20T22:35:07.185-03:00a montanha mágica<style>
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<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">É sempre um compromisso muito particular começar a ler um romance que se aproxima do milhar de páginas e pesa nas mãos. Abre-se o livro com a sensação de que um relacionamento de longo prazo se inicia, e que a experiência, para o bem ou para o mal, tenderá a deixar alguma marca, ao menos se o leitor tiver o tempo e a paciência de concluí-la. </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Com suas 957 páginas na versão em português, traduzida por Herbert Caro, “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, é desses livros que exigem um disciplinado envolvimento do leitor. É um belo livro, um <i style="mso-bidi-font-style: normal;">tour de force</i>, mas é difícil não o ler com a impressão de que o tempo, um dos temas do livro, não lhe tem feito muito bem. </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Mann fez um romance de idéias sem conseguir fugir de certo didatismo. É instigante na substância e conservador na forma. Personagens como Settembrini e Naphta, com seus longos diálogos, são veículos de teses, interessantes sempre, brilhantes muitas vezes, mas que parecem pairar acima do livro, lembrando-nos de quão inteligente e versátil é o autor. As conversas sobre espírito e corpo, sobre o “eu orgânico”, sobre razão e fé têm algo ao mesmo tempo de cativante e frustrante. Em muitas passagens, senti-me subestimado como leitor, não pelas idéias em si, mas pela solução fácil do diálogo sob medida, enxertado para dar voz a Mann. Estavam a serviço do autor, não da história que criou.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">A estrutura convencional já se percebe de início. Narrado em terceira pessoa, o livro começa no presente, com a viagem do protagonista Hans Castorp ao sanatório de tuberculosos para visitar o primo, retorna ao passado para contar a vida pregressa de Castorp e volta a situar-se no presente de sua visita, que se transformará numa estadia definitiva.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Como romance de idéias, há muitas e boas. A doença como culto, que forma uma espécie de aristocracia da morbidez, do “quanto mais doente, melhor”, é um dos temas recorrentes e reflete o estado de espírito de um mundo europeu do entre-guerras em que predominava o sentimento de decadência e fim dos tempos. Há um desejo de prisão, de isolamento, em que ficar (internado) é ter liberdade (pg. 304). A morte é a companheira sedutora dos internados, embora Mann nos diga que “a nossa morte é assunto dos sobreviventes, mais do que de nós próprios.” (pg. 708)</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Também o tempo em si é matéria central do livro. Mann fala-nos do tempo particular do sanatório, em que a paralisia e a monotonia parecem acelerar o ritmo da vida, numa reversão do senso comum de que é a riqueza de vivências e acontecimentos que adiantam a passagem do tempo. Há o tempo de cima, da montanha, do Sanatório Berghof, e o tempo de baixo, da planície, da vida comum. Algumas das melhores reflexões de Mann tratam da natureza inapreensível do tempo: “na imensa monotonia do espaço afoga-se o tempo. Onde reina a uniformidade, o movimento de um ponto a outro deixa de ser movimento. Onde isso acontece já não existe o tempo.” (pg. 730)</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Há belas cenas, é verdade. Lembro-me das festas e banquetes no sanatório, da euforia febril dos doentes, da melancolia de Castorp. Difícil não se envolver com sua paixão pela enigmática Clavdia Chauchat (essa Cláudia “gato-quente” que é um misto sedutor de Europa e Ásia), mesmo quando Mann esgarça os limites do verossímil e coloca frases espirituosas em francês na boca de um liricamente limitado e circunstancialmente bêbado Castorp, diante da bela Chauchat: </span><span lang="FR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: FR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“l’échine qui descends vers la luxuriance double et fraîche des fesses”</span><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>(“a coluna que desce em direção à exuberância dupla e fresca das nádegas”). Pena que tudo se dilui um pouco na coleção infindável de personagens que chegam e partem do sanatório e nas múltiplas dissertações do autor. Talvez falte em Mann, como em Dostoievski, certo sentido da medida, embora a literatura hiperbólica e sentimental do russo sempre pareça mais charmosa que a literatura hipercerebral do alemão.</span></div>Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-10989267212550146692012-04-15T20:31:00.000-03:002012-04-15T20:31:51.717-03:00quatro contos menores de Borges: a forma da espada; três versões de Judas; o fim; a seita de Fênix<style>
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<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Num livro tão inspirado e original como “Ficciones” (1944), de Jorge Luís Borges, quatro contos parecem menores quando comparados aos demais.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“La forma de la espada” (“A forma da espada”) é o segundo conto da seção “Artificios”. Conta a história de uma cicatriz, um arco no rosto do “Inglês de la Colorada”, irlandês que participou da guerra de independência, passou pelo Brasil e foi parar no interior da Argentina. A história da cicatriz é a história de uma traição, que só se revela ao fim: em lugar do estóico revolucionário que o abrigara na Irlanda, o protagonista-narrador é na verdade o marxista covarde que o traiu e fugiu, levando consigo a marca de sua infâmia. A surpresa final, em que o narrador revela sua identidade, não salva o conto, embora torne compreensível o discurso curiosamente erudito (com menções a Schopenhauer e Shakespeare) que parecia tão incongruente com o aspecto rural e severo do narrador. </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“Trés versiones de Judas” (“Três versões de Judas”), também da segunda parte (Artificios), lembra um conto da primeira (El jardín de senderos que se bifurcan), chamado “Examen de la obra de Herbert Quain”. Ambos tem a forma de um comentário sobre a obra do autor, com o pequeno detalhe de que tanto o autor como a obra são imaginários. Nos dois contos, Borges concebe e disseca algumas idéias fantásticas que não pode desenvolver de outra maneira se não por meio da própria ficção.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">O autor examinado em “Trés versiones de Judas” é Nils Runeberg, que viveu em começos do século XX, como acadêmico da Universidade de Lund. Borges analisa os estudos heresiáticos de Runeberg, que procurou reinterpretar o papel de Judas. As três versões de Judas concebidas pelo nórdico, como um progressivo exercício de auto-iluminação, são as seguintes: </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="ES-TRAD" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-TRAD; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">1) Judas como reflexo de Jesus: “Judas, único entre los apóstoles, intuyó la secreta divinidad y el terrible propósito de Jesús. El verbo se había rebajado a mortal; Judas, discípulo del Verbo, podía rebajarse a delator.”</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="ES-TRAD" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-TRAD; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">2) Judas como praticante da renúncia: “El asceta, para mayor gloria de Dios, envilece y mortifica la carne; Judas hizo lo propio con el espíritu. Renunció al honor, al bien, a la paz, al reino de los cielos, como otros, menos heroicamente, al placer (...) Obró con gigantesca humildad, se creyó indigno de ser bueno.”</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="ES-TRAD" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-TRAD; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">3) finalmente, Judas como Deus: “Afirmar que fue hombre y que fue incapaz de pecado encierra contradicción (...) Dios totalmente se hizo hombre hasta la infamia, hombre hasta la reprobación y el abismo. Para salvarnos, pudo eligir cualquiera de los destinos que traman la perpleja red de la historia; pudo ser Alejandro o Pitágoras o Rurik o Jesús; eligió un ínfimo destino: fue Judas.”</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="ES-TRAD" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-TRAD; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Runeberg morreu acossado pelo medo do castigo de Deus, medo de ser punido por haver descoberto sua secreta identidade: Runeberg “agregó al concepto del Hijo, que parecía agotado, las complejidades del mal y del infortunio”.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“Três versões de Judas” não é dos grandes contos de Borges porque não passa de um artifício que ele constrói para desenvolver idéias imaginosas sobre temas extraordinários como a teologia ou a história. Vale, como sempre, por sua prodigiosa imaginação.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“El fin” (“O fim”) é um conto curtinho de Borges, em que ele narra a história de um duelo e de uma morte, que ao final saberemos que é a desse grande personagem argentino chamado Martín Fierro, do poema de José Hernández.</span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="ES-TRAD" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-TRAD; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Borges constrói o conto tendo como ponto de vista a imobilidade de um velho paralisado sobre uma cama, a visão desse dono de bar chamado Recabarren, que sofreu uma espécie de derrame e passa seus dias deitado, olhando a planície pela janela: “hay una hora de la tarde en que la llanura está por decir algo; nunca lo dice o tal vez lo dice infinitamente y no lo entendemos, o lo entendemos pero es intraducible como música”. Por meio dele, saberemos de modo breve a origem da sua paralisia (“al acomodar unos tercios de yerba, se le había muerto bruscamente el lado derecho”) e acompanharemos a chegada de um forasteiro e seu duelo com o negro violonista que queria vingar a morte do irmão. Borges contrasta o mundo retraído do acamado com a espírito viril e violento dos duelistas.</span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="ES-TRAD" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: ES-TRAD; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">O duelo e os diálogos dos rivais soam hoje previsíveis, os efeitos da contraposição entre a enfermidade e o conflito não impressionam. As melhores passagens falam do estoicismo e da resignação de Recabarren: “a fuerza de apiadarnos de las desdichas de los héroes de las novelas concluimos apiadándonos con exceso de las desdichas propias; no así el sufrido Recabarren, que aceptó la parálisis como antes había aceptado el rigor y las soledades de América”. É um conto de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">gaucho</i>, com diálogos de <i style="mso-bidi-font-style: normal;">western</i>, embora muito inferior aos contos de duelos e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">gauchos</i> de outros livros de Borges, como “El informe de Brodie”. <span style="mso-tab-count: 1;"> </span></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">xxx</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“La secta del Fénix” (“A seita de Fênix”) é um conto estranho de Borges. Em quatro páginas curtas, Borges nos fala dessa confraria – mais um dos seus artifícios imaginosos – que não se distingue por raça, nacionalidade ou traços próprios, mas tão somente por um aparente atributo – seria a eternidade individual ou da própria confraria? – e por um ritual, o Segredo. O Segredo não nos é revelado inteiramente, temos apenas qualificações (ridículo, penoso, vulgar...) e o conhecimento de que é executado por seres inferiores (crianças, escravos) e com objetos simples (rolha, cera ou goma arábica), prescindindo de templos.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Borges nos oferece um conto “aberto”, mas com caminhos tão pouco interessantes a seguir, que não chega a nos tentar a preencher seus dois enigmas.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div>Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-53465722205829802962012-03-25T19:06:00.000-03:002012-03-25T19:06:16.050-03:00Hedda Gabler<style>
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<div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">“Hedda Gabler”, a personagem que dá título à peça de Henrik Ibsen, é uma arrogante, egocêntrica e entediada filha de um general já falecido. Com pendores aristocrátcos, mas sem paixão alguma, casa-se com um acadêmico e torna-se Hedda Tesman, o que em nada muda sua insensibilidade e egoísmo. Em torno dela, e por sua ação, ocorrerão pequenos conflitos, algumas mortes, previsíveis ou não. Em lugar de movê-la de seu tédio, esse conjunto de perversões domésticas aumenta sua desilusão e indiferença diante da vida. Num gesto banal, quase corriqueiro, Hedda comete o ato extremo.</span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">A peça tem a contenção e a frieza da Noruega de Ibsen. Não gira em torno de grandes temas sociais, eventos históricos ou paixões arrebatadoras. Trata de relações familiares doentias, de diferenças sutis de classe, de personagens desapaixonados. A motivação do dramaturgo parece ser a de criar um ser gélido e seu pequeno império de manipulação familiar, que determina a vida dos personagens que a cercam como peças de um jogo caprichoso. O cenário ideal deste jogo é o salão de Hedda Tesman, onde o marido, o conselheiro e os amigos orbitam em torno da personalidade forte da anfitriã. Vive-se o formalismo banal, a frieza do mundanismo, regidos pela atitude doentia da protagonista. De anormal e transgressor há apenas a figura de Lövborg, ex-amigo e pretendente de Hedda, que morre por seus excessos, em parte pelas mãos dela mesma, que quer vingar-se dele por conta de sua relação com uma conhecida, Thea Elvestad. Genialidade e paixão não têm lugar no salão do casal Tesman.</span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">Ibsen constrói sua peça com pequenos movimentos, mudanças e gestos sutis, que revelam o caráter de Hedda, como a cena do chapéu de Julie Tesman, da troca do nome de Thea (Thora), da oferta de bebida a Lövborg. As mudanças do cenário funcionam como um relógio ao longo de um dia (o piano em novo lugar, a vela queimando, portas e cortinas que se abrem e fecham), tão delicadas como a escolha das palavras. Mesmo os grandes gestos e rupturas, como o tiro simulado no conselheiro, a queima do manuscrito de Lövborg e o suicídio, são marcados pela indiferença da protagonista, o que retira qualquer elemento trágico da história. Uma tragédia requer sentimentos e desejos fortes, causas elevadas ou grandes injustiças, tudo o que não se encontra no mundo pequeno da entediada Hedda e de seu círculo de cultivadores. É a frieza dos personagens e de seu meio, que Ibsen quer mostrar-nos de maneira igualmente fria e desapaixonada.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div>Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-17188802092892716332012-03-10T22:36:00.001-03:002012-03-10T22:41:51.460-03:00pornopopéia<style>
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<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">O humor ocupa um lugar muito particular na literatura. Não é difícil saber se algo é cômico ou não; engraçado ou entediante. O riso é o metro. Mas a quantidade de riso e choro que uma obra provoca não define sua grandeza. Se assim fosse, os dramalhões e os anedotários seriam as formas maiores da literatura. Quase sempre é difícil avaliar o valor literário do humor. </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Tome-se a literatura brasileira. Há humor em obras de Machado, Nelson Rodrigues, Mário e Oswald de Andrade, Drummond, Rubem Fonseca, entre outros. Mas são poucas as obras de certo peso que foram deliberada e fundamentalmente construídas em torno do humor. Penso, por exemplo, em “O púcaro búlgaro”, de Campos de Carvalho, ou “Armadilha para Lamartine”, de Carlos & Carlos Sussekind. Não há dúvida de que foram escritas como peças cômicas e de que funcionam bem como tal, mas é possível enquadrá-las como obras centrais da literatura brasileira? A tentação é grande de interpretar o humor que muitas ou algumas vezes resvala no escracho ou na piada excessiva como indigno da literatura como L maiúsculo. </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Foi o que senti ao acabar de ler “Pornopopéia”, de Reinaldo Moraes. É um dos livros mais engraçados que já li, um calhamaço de 500 páginas sobre as aventuras sexuais de um cineasta decadente, contadas com uma linguagem de humor e escracho bem trabalhada, inventiva, brilhante às vezes. As risadas vêm das situações em si e de certo virtuosismo chulo, verbal, do autor na hora de narrá-las. Se as investidas de Bukovski tivessem de ser reescritas por Philip Roth ou Pynchon com o vocabulário dos redatores do Casseta & Planeta, “Pornopopéia” bem poderia ser o resultado dessa estranha mistura de propósitos e estilos literários. </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">O cineasta Zeca, diretor do experimental “Holisticofrenia”, está às voltas com a produção de um vídeo institucional sobre embutidos de frangos, pois precisa de algum dinheiro para as aventuras sexuais e alucinógenas e, sobrando algo, para a mulher e o filho. Em meio a sua crise de criatividade, compreensível tendo em conta o valor artístico de um comercial de frios de galinha, ele se mete em orgias e enrascadas dos mais diversos tipos. Reinaldo Moraes nos conta a história em tom de conversa com o leitor, um “você” insubstancial que acompanha o livro inteiro. Vale-se também de uma narrativa muito visual e descritiva, que faz jus ao narrador cineasta. Embora o livro não pareça um roteiro de filme, como Zeca parece pretender, são muitas as descrições detalhadas de pessoas (“Toda pose, a fulana, tailleur moderno, cor de aurora boreal em Júpiter”), de ambientes (o templo da Surubrâmane, o apartamento da produtora Khmer VideoFilmes Ltda.) e de situações pornoeróticas:</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: .5in;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">“O pentelhal do magrelo era apenas um prolongamento da pelagem de hominídeo cavernoso que lhe recobria peito, barriga e pernas. E a bunda era uma anedota macabra, chupada para dentro do rego, como se o cu, faminto, estivesse tentando engolir suas nádegas e a ele por inteiro. Era até atraente a figura, de tão repulsiva. Se eu me meter uma dia a refilmar o ‘Nosferatu’ do Murnau, como já passou pela minha cabeça (e do Herzog também, um pouco antes), vou propor ao Anselmo o papel do vampiro maledetto.”</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: .5in;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">O que dá graça ao livro é a riqueza da linguagem escrachada, o humor e a versatilidade do vocabulário, os trocadilhos, até certa preocupação de “mot juste” mesmo nas situações mais pornográficas e aviltantes. Moraes arrisca e consegue ser, umas poucas vezes, quase poético, como na cena do afogamento, em que desencava uma ou outra boa imagem para descrever seu estado de nadador em desespero (“eu era um náufrago de navio nenhum”; “um urubu geômetra descrevia círculos concêntricos em cima da minha ereção”; “o mar boiava em si mesmo”). A linguagem, por mais chula que seja, é adequada à história e, de certa maneira, mais atraente que a própria história, que não passa de uma sucessão de transas e trapalhadas. É raro ver o vocabulário urbano de gírias e palavrões do português explorado numa narrativa pornocarnavalesca com certa pretensão literária:</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: .5in;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">“O Rubinho nunca esteve em nenhum lugar onde viver não lhe doesse – como deve ter dito mil vezes o Fernando Pessoa.”</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: .5in;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">“Era inacreditável, mas eu estava pegando no pau dum cara com peitos maiores que os da Marilyn Monroe. (...) Aquela dessintonia manupeniana me provocou um profundo desconforto cognitivo.”</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: .5in;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Embora tenha sido reduzido, como já disse o autor, de sua versão original de mais de mil páginas para as 500 da publicação, “Pornopopéia” se beneficiaria de cortes adicionais. São cacetes as supostas instruções ao potencial editor do roteiro/livro ou o excesso de conversas com o leitor, mesmo porque Moraes não tem o dom de Machado. O livro cai um pouco com a fuga do protagonista para Porangatuba. Há menos brilho e peripécias longe da São Paulo do cineasta. </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">“Pornopopéia” encaixa-se bem na pequena lista de livros brasileiros que conseguem fundir humor e literatura, escracho e invenção. Moraes não chega a praticar o humor mais sofisticado (surrealista e <i style="mso-bidi-font-style: normal;">nonsense</i>) de uma Campos de Carvalho, mas seu livro, pela originalidade e malabarismos pornoverbais, tem o seu lugar na literatura brasileira.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div>Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-83750981625890488002012-02-06T00:19:00.000-02:002012-02-06T00:19:05.509-02:00Yerma<style>
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<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">Yerma casa-se com Juan e quer ter filhos. Os anos passam, seu marido pensa mais no trabalho do campo, suas amigas parem, mas Yerma só faz angustiar-se com o filho que não vem. Chega a enamorar-se de outro homem, Victor, mas sua moral rígida a impede de trair Juan. Recorre então a rezas e simpatias, mas nada resolve seu problema e sua angústia, que acabam por minar a relação com o marido. Revoltada com a esterilidade do casamento, com a frieza de Juan, Yerma estrangula-o até a morte. <span style="mso-tab-count: 1;"> </span></span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">“Yerma” é uma peça em forma de poema trágico do espanhol Federico García Lorca. A força do texto de Lorca inspirou outros criadores, como Paul Bowles e nosso Heitor Villa-Lobos, que compuseram óperas baseadas na peça.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span></span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">A julgar por Lorca e outros poetas de Espanha, as mulheres espanholas parecem combinar de maneira espontânea e natural com as paixões violentas, com o vermelho das mortes trágicas, como em “Carmen” ou “A Casa de Bernarda Alba”. A dificuldade de uma peça como “Yerma” é, no entanto, a de construir a violência do trágico a partir do sentimento da esterilidade, que, por mais intenso que seja, está mais associado à retração do que ao impulso, à passividade do que à agressividade. O resultado é que a trama de Lorca parece por vezes um tanto artificiosa e exorbitante mesmo para os padrões hiperbólicos de uma tragédia. Não que a dor de uma mãe frustrada não seja extraordinariamente intensa. Apenas não é tão comodamente conciliável com a violência trágica quanto outros sentimentos e condições mais comumente encontrados em tragédias, como o amor interdito, a traição ou a perda do outro.</span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">Daí que o melhor de “Yerma” não é a trama, mas a língua de Lorca. Há belas imagens e canções: “pero la noche que nos casamos me lo decía constantemente con su boca puesta en mi mejilla, tanto que a mí me parece que mi nino es un palomo de lumbe que él me deslizó por la oreja” ou “cada mujer tiene sangre para cuatro o cinco hijos, y cuando no los tienen se le vuelven veneno, como me va a pasar a mí.” </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Como na bela "Casa de Bernarda Alba", Lorca volta ao tema da tensão dos valores tradicionais, à dificuldade de seguir a moral rígida em sociedades arcaicas, o dilema do adultério e da fidelidade. Confrontam-se honra e prazer, moral e liberação, a casa da ordem e a rua das fofocas e desvios. Do confronto nasce a exasperação, a tensão, até a ruptura trágica, como se a rigidez dos valores levasse inevitavelmente à explosão dos impulsos mais profundos e violentos do homem.</span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">Entre os personagens da peça, Yerma é naturalmente a figura de maior presença, com a lenta transformação do seu desejo em obsessão trágica. Mais interessantes são, no entanto, as mulheres anônimas de Lorca: as lavadeiras, as muchachas, as velhas, que aparecem ou como figuras místicas e sábias ou como fofoqueiras, agentes da intriga. Cantam como nos coros das tragédias gregas e preenchem a história com certa magia. Há sempre um toque de fatalidade e de sombras em sua aparição, como se anunciassem o final trágico. São elas que caracterizam a tragédia espanhola: a mulher passional e misteriosa se expressa por suas falas e gestos.</span></div>Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-50187225251839126172012-01-23T01:06:00.001-02:002012-01-23T01:09:12.226-02:00as mênades; ônibus<style>
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<div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">“Las ménades” (“As mênades”) é um conto de natureza fantástica de Cortázar. Como em “Circe” (outro de seus contos), o autor recorre à mitologia grega para dar título a uma história cujos personagens se comportam de maneira desviante, em que o limite do verossímil é ultrapassado por uma espécie de patologia do comportamento, que tende ao violento ou ao mórbido. No caso de “Circe”, os namorados de Delia Mañara morriam pelo estranho hábito de Delia de fabricar bombons morbidamente recheados.</span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Em “Las ménades”, um assíduo freqüentador de concertos vai ao teatro ouvir mais uma apresentação da orquestra da cidade, conduzida pelo dedicado maestro, que completa "bodas de prata" na regência. O programa, com Strauss, Debussy, Mendelssohn e Beethoven, parece adequado à “gente tranquila y bien dispuesta que prefiere lo malo conocido a lo bueno por conocer”, conforme comenta nosso melômano assumidamente resmungão. Em primeira pessoa, ele nos relatará o completo embevecimento da platéia a cada número apresentado, a comoção lacrimosa, a “fratenidad en la admiración que por un momento hace tan buenos a los seres humanos”: “de todas maneras, esos rostros rubicundos, esos cuellos transpirados, ese deseo latente de seguir aplaudiendo aunque fuera en el foyer o el médio de la calle, me hacían pensar en las influencias atmosféricas, la humedad o las manchas solares, cosas que suelen afectar los comportamientos humanos”. </span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">O que parece um encantamento um pouquinho excessivo vai se revelando com o passar do concerto como a mais rematada loucura coletiva: “casi nadie oyó el primer grito porque fue ahogado y corto” (“quase ninguém ouviu o primeiro grito porque foi afogado e curto”). Dos gritos aqui e ali ao assédio físico e violento da turba ao maestro e aos músicos, será um processo em crescendo, que Cortázar revelará em doses progressivas, para espanto do narrador desiludido e dos leitores. A exemplo das mênades, musas impulsivas e violentas de Dioniso, a platéia enlouquece em sua paixão pelos músicos, intoxicada pela notas e pela figura do maestro. Restará aos músicos a tentativa de fuga, frustrada pela fúria gulosa dos espectadores.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div align="center" class="MsoNormal" style="text-align: center;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">xxx</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Se o fantástico é um dos elementos mais interessantes nos contos de Cortázar, outro muito freqüente em suas histórias – e muito próximo a este – é o surreal, onde se soma um elemento mais puramente onírico e de maior subversão do real.</span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Tome-se o conto “Omnibus” (“Ônibus”), que narra a curiosa viagem de ônibus por Buenos Aires de uma moça chamada Clara. Ela pega o 168 em Villa del Parque e quer ir a Retiro, perto da Recoleta, na Torre dos Ingleses, tendo de passar, no caminho, pelo cemitério de Chacaritas. Sobe, paga o seu bilhete inteiro (o que já causa estranheza, ao indicar que não descerá no cemitério), senta-se e é observada por todos os demais passageiros, com olhares de indiferença (“y la miró dulcemente como una vaca sobre un cerco”), desconfiança ou até mesmo hostilidade. Todos estão com flores nas mãos, flores dos mais diversos tipos. Só ela e um segundo passageiro desavisado, que sobe em seguida, não carregam flores. Depois que todos os outros descem em Chacaritas (“se alinearon las margaritas, los gladiolos, las calas”), o motorista parte a toda velocidade, avança e freia bruscamente, desrespeita sinais e guardas e se levanta do volante de tempos em tempos para tentar atacar Clara e seu companheiro sem flores, impedido sempre pelo bilheteiro. Clara e o rapaz se penitenciam de seus erros (“Si por lo menos me hubiera puesto unas violetas en la blusa”) e salvam-se saindo a toda carreira quando o ônibus pára no ponto certo. Mais tranqüilos, compram no florista da praça “dos ramos de pensamientos” e seguem caminhando, “cada uno llevaba su ramo, cada uno iba con el suyo y estaba contento.” </span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Cortázar faz, neste caso, a transição da dúvida e da incongruência iniciais ao absurdo mais rematado no final, com direito à bela imagem dos ramos de flores de pensamento. Dá-nos uma história surrealista com paisagem e personagens buenairenses, tão ao seu gosto. </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div>Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-69892329924786870542012-01-15T21:18:00.000-02:002012-01-15T21:18:24.624-02:00o jogo dos papéis<style>
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<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">“O jogo dos papéis” (Il giuoco delle parti) é um peça de teatro filosófica e surrealista de Luigi Pirandello. Nela, um homem procura afastar-se de seus próprios sentimentos e agir conforme a vontade alheia, particularmente a de sua mulher. Sempre lhe diz sim e lhe dá liberdade total, não se importando que ela viva sozinha e tenha outros relacionamentos. Exasperada com o comportamento submisso do marido, ela o leva a aceitar um duelo com um hábil esgrimista. Na última hora, ele renuncia a seu papel de provedor das vontades alheias e consegue fazer com que não mais ele, mas o amante de sua mulher, assuma o desafio e o duelo. Livre, retorna ao vazio de sua vida.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">Pirandello criou uma peça estranha e incômoda, que parte de duas idéias básicas, duas teses. A primeira é a de que não só é possível desligar-se dos desejos e sentimentos pessoais, encarnando um personagem à mercê dos desejos alheios; haveria mesmo certa sabedoria e autodefesa em abandonar o próprio ego: o personagem que representa esse budismo laico de Pirandello é Leone Gala, o marido. A segunda idéia é a de que a liberdade total é uma prisão quando concedida, já que o gesto de concessão da liberdade anula o seu caráter libertador, como demonstrado pelo comportamento da mulher de Leone, Silia.</span></div><div style="text-align: justify;"> <div style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Com base nessas hipóteses, Pirandello cria um conflito entre dois pólos inconciliáveis -- Leone e Silia, renúncia e liberdade, nada querer, tudo querer. O casal Gala é complementado pela figura do amante de Silia, Guido Venanzi, vítima da dupla justamente por não encontrar papel no jogo neurótico que eles constroem. O triângulo circula pela peça movido por diálogos pouco verossímeis, com um toque surrealista, e por uma trama fácil, um tanto tola, que vai da invasão de domicílio da esposa à obrigação de desafiar o invasor ao duelo. São situações e diálogos que não sustentam ou aprofundam a caracterização dos personagens, e o resultado é uma peça de alguma ousadia mas de pouca graça. “O jogo dos papéis” não chega, portanto, ao nível das melhores peças de Pirandello, como “Assim é se lhe parece” ou “Seis personagem à procura de um autor.”</span></div></div>Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-7900911543123476522012-01-08T15:43:00.000-02:002012-01-08T15:43:30.362-02:00tema do traidor e do herói<style>
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<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“Tema del traidor y del héroe” é o terceiro conto da seção “Artifícios”, de Ficciones, de Jorge Luis Borges. A exemplo de “La forma de la espada”, conto do mesmo livro, também fala de uma história de heroísmo e traição entre irlandeses revolucionários. É, no entanto, um conto mais sutil e sofisticado, porque desenvolve – com inteligência e delicadeza – a idéia de que a história pode imitar a literatura.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Ryan quer descobrir o mistério em torno da morte do avô, o herói irlandês Fergus Kilpatrick, que teria sido assassinado por um traidor em um teatro, em 1824, às vésperas da revolução com que tanto sonhou. Em sua pesquisa, Ryan vai revelando uma série de coincidências do crime com a história (o assassinato de Júlio César) e com a literatura (elementos de Macbeth). Descobre ao fim que a morte de Kilpatrick foi de fato tramada, mas não pelos inimigos da revolução, e sim pelos próprios revolucionários, já que Kilpatrick, o líder, era na verdade o traidor. Desmascarado e sentindo-se culpado, Kilpatrick aceita “atuar” em seu próprio assassinato, que é planejado com base em Shakespeare (não só “Macbeth”, mas também “Julius Cesar”) e executado com precisão, como se fosse a morte não de um traidor, mas de um herói. A revelação de sua traição seria um golpe à causa e aos demais revolucionários; já sua morte heróica daria impulso à revolução.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">O conto é muito inventivo, econômico (nada sobra) e ainda termina de modo genial: </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“En la obra de Nolan (o verdadeiro herói, que desmascara Kilpatrick e com ele planeja sua morte gloriosa), los pasajes imitados de Shakespeare son los <i style="mso-bidi-font-style: normal;">menos</i> dramáticos; Ryan sospecha que el autor los intercaló para que una persona, en el porvenir, diera con la verdade. Comprende que el también forma parte de la trama de Nolan... Al cabo de tenaces cavilaciones, resuelve silenciar el descubrimiento. Publica un libro dedicado a la gloria del héroe; tal vez eso, también, estaba previsto.”</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Não deixa de ser irônico que Borges diga que os executores do crime tenham utilizado as partes <i style="mso-bidi-font-style: normal;">menos </i>dramáticas das duas peças de Shakespeare. Borges não esconde sua relação de amor e ódio com o bardo, que ele julgava ser, em espírito, muito mais italiano e judeu do que propriamente inglês, pelo seu amor do drama e da hipérbole. Como disse Borges numa entrevista à Paris Review, um tanto ciumento e injusto com Shakespeare, </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“He was very bombastic. (...) Even in such a famous phrase as Hamlet’s last words, I think: “The rest is silence.” There is something phony about it; it’s meant to impress. I don’t think anybody would say anything like that.” </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">(Ele era muito bombástico. (...) Mesmo numa frase famosa, como a das últimas palavras de Hamlet, creio que “O resto é silêncio”. Há algo de falso, de impostura nisso; foi feita para impressionar. Não acho que alguém diria algo assim.)</span></div>Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-75299022991152951162011-12-31T16:12:00.002-02:002011-12-31T16:47:33.161-02:00guerra e paz - primeira parte<style>
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<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">O que dizer de Liev Tolstói? Talvez o que mais impressione seja a sua capacidade de criar, à maneira de Balzac, um mundo próprio e auto-suficiente, vasto como a vida, todo um planeta extensamente povoado de personagens marcantes e seus, de tramas que vão e vêm como marés em toda a sua complexidade e inexorabilidade, de reflexões inteligentes sobre tudo e sobre todos. Em suma, uma monstruosa capacidade de escrever, de combinar a imaginação vertiginosa com a fluência absoluta da expressão, o divagar, o descrever, o narrar. Pode-se criticar uma parte ou outra de suas obras por ser previsível, ou mesmo dispensável. O que não se pode é desprezar o poder demiúrgico que poucos escritores como Tolstói tiveram de criar um universo. </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Da leitura da primeira parte de “Guerra e Paz”, o que fica é justamente o assombro diante do inverossímil, inverossímil não na obra, que segue sem dor os cânones realistas e até históricos, já que se trata de um romance histórico, mas na fluência de Tolstói. Encerra-se a leitura do primeiro volume de mil páginas (eu tinha lido a versão francesa da Folio Classique, já que Tolstói escreveu várias partes em francês e não havia ainda a tradução do Rubens Figueiredo) com a impressão de que tudo ainda está no começo, de que o escritor desenterrou um mundo tão amplo e insondável, que aquilo é apenas uma amostra, um pedaço pequeno e visível de uma montanha.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Diversas histórias se cruzam – o desabrochar da bela Natacha, as dores do amor e da guerra para André, a relação entre o Príncipe Bolkonsky e a filha Maria, as danças e os bailes dos Rostov, o idealismo ingênuo de Nicolas, as dúvidas e a solidão de Pierre –, tudo contra o pano de fundo da guerra contra Napoleão, com os detalhes de cada batalha, da primeira salva alegre e ingênua do canhão, de cada movimento, cada paisagem vista na distância, na fronteira inimiga, cada ato de heroísmo ou tolice, cada dor da derrota. O romance não tem centro, é um vasto painel de uma época, de uma elite russa ao mesmo tempo afrancesada e em guerra contra a França, uma coleção intrincada de personagens marcantes e relações complexas que se constroem e desconstroem com o passar do tempo, com o deslocar de vidas e poderes entre Moscou, São Petersburgo, Austerlitz.... </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Se algo é referência maior talvez sejam as dúvidas do grande, gordo e benigno Pierre Bezoukhov, possível alter ego de Tolstói, com sua fortuna herdada, seu desprezo pela mulher ao mesmo tempo nobre e arrivista, seu fascínio súbito e naïve pela maçonaria, seu olhar perdido, sua inconveniente atração por Natacha: </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">“Pierre appartenait au nombre de ces hommes qui ne sont forts que quand ils se sentent absolument purs. Et depuis le jour où le désir s’était emparé de lui tandis qu’il se penchait sur la tabatière chez Anna Pavlovna, un sentiment inavoué de culpabilité paralysait sa volonté.” </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">É o personagem mais interessante de uma rede de personagens fascinantes, que falam e agem vivíssimos, com vida própria, uma das maiores virtudes de Tolstói. Basta um parágrafo para encher um personagem inteiro, um toque sutil que já diz muito, como essa breve descrição de Anna Pavlovna, anfitriã da festa que abre o livro:</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">“L’enthousiasme était devenu sa fonction sociale et il lui arrivait de se montrer enthousiaste alors même qu’elle n’en avait aucune envie, uniquement pour ne pas décevoir l’attente de ceux qui la connaissaient. Le sourire contenu qui jouait constamment sur le visage d’Anna Pavolovna, bien qu’il ne se harmonisât guère avec ses traits flétris, exprimait, comme chez les enfants gâtés, qu’elle avait conscience de ce charmant défaut dont elle ne voulait, ne pouvait et ne trouvait pas nécessaire de se corriger.” </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Ou a descrição elogiosa do bom diplomata Bilibine (pg. 258), ou sutilmente irônica do militar Berg: </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">“Berg s’exprimait toujours avec précision, d’un ton posé et poli, et parlait uniquement de lui-même; quand la conversation roulait sur un sujet qui ne le concernait pas directement, il gardait calmement le silence, et il pouvait ainsi se taire pendant des heures sans en éprouver la moindre gêne, sans en provoquer chez les autres; mais aussitôt que l’entretien le touchait personnellement, il parlait d’abondance et avec un plaisir évident.” </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Ou o hábito do sucesso no Príncipe Basile, tão astuto nas suas ações e tão seguro em seus ardis: </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">“C’était tout simplement un homme du monde qui avait réussi dans le monde et s’était fait de cette réussite une habitude.”</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Tolstói é particularmente brilhante na descrição dos dramas interiores dos personagens, dos seus momentos de descoberta, dúvida ou perplexidade. Tome-se por exemplo, a esupefação de André com o seu próprio desejo de glória, em que se imagina capaz de tudo, de todos os sacrifícios, até da vida ou da família, em meio à desilusão da derrota em Austerlitz (p.435). Ou o misto de dúvida e de culpa que se apodera de Pierre no momento crucial em que é induzido pelo Príncipe Basile a pedir a mão de Helène, numa das cenas mais geniais do livro (p.353-354). Ao contrário de seu contemporâneo Eça de Queiroz, Tolstói constrói de modo magistral as cenas de amor e de anúncio de casamento, e são raros os trechos em que escorrega um pouco, e recorre a um clichê ou outro, a uma linguagem mais fácil do que o costume, como na hora de descrever a paixão que sente Natacha no momento em que avista André: </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">“La tête levée, les joues roses, essayant visiblement de contenir sa respiration haletante, elle le regardait. Et la vive lumière d’un feu intérieur auparavant éteint brillait de nouveau en elle. Elle était complètement transfigurée. De laide elle était devenu telle qu’elle avait été au bal.”</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Logo em seguída, Tolstói corrige-se ao descrever o sentimento de André no momento em que decide casar-se: </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">“Le Prince André tenait ses mains dans les siennes, la regardait droit dans les yeux et ne retrouvait plus en lui le même amour. Quelque chose avait soudain basculé dans son âme: ce n’était plus l’enchantement poétique et mystérieux du désir, mais un sentiment de pitié pour sa faiblesse de femme et d’enfant, de crainte devant sa confiance et son abandon, et la conscience douloureuse et pourtant joyeuse du devoir qui le liait à elle à jamais. Le sentiment actuel, bien que moins lumineux et poétique, était plus grave et plus puissant.” </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Um terceira cena genial de noivado reúne o cinsimo do pretendente e da pretendida, uma vez que Boris procura esconder certo sentimento de repugnância, ao passo que Julie parece exigir o que lhe cabe:</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">“-- Vous connaissez mes sentiments pour vous!...</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Il n’était pas nécessaire d’en dire davantage; le visage de Julie rayonnait de triomphe et de vanité; mais elle obligea à lui dire tout ce qu’on dit en pareil cas, à lui dire qu’il l’aimait et n’avait jamais aimé aucune femme comme il l’aimait. Elle savait que pour les propriétés de Penza et les forêts de Novgorod, elle avait le droit d’exiger cela, et elle obtint ce qu’elle exigeait.”</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><br />
</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Há outras cenas e passagens memoráveis no livro, como a caça das lebres e dos lobos, o papel de homens, cavalos e cachorros, a preparação, a coreografia no momento do bote, toda uma história à parte que já teria vida e luz própria (p.805-830). </span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">Dizer que o livro só têm virtudes seria um exagero, já que há pontos da trama que pecam por certa inverossimilhança, por viradas ou reviravoltas que parecem atender mais ao oportunismo e à conveniencia do autor do que ao curso possível e esperado dos eventos. Como explicar que a intensa paixão de Natacha por André se transforme subitamente no enamoramento por Anatole? Nem a resistência da família de André nem a distância entre os dois parece dar conta do súbito desinteresse pelo amado, muito menos de uma paixonite por um Anatole tolo e vaidoso, tão diferente de André.</span></div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11pt;">O que permanece do livro é, no entanto, a inteligência com que Tolstói constrói seus personagens centrais e descreve os dilemas que atravessam. Há um elemento de imponderabilidade na construção de algumas figuras (como é o caso de Pierre) que nos faz lembrar os personagens de outro genial conterrâneo seu, Dostoiévski. O que dizer do comportamento desse atormentado Pierre, que, no meio do maremoto emocional que envolve André e Natacha, dois de seus amigos mais próximos, consegue desenterrar o estranho sentimento que nutria há tempos, mais inconscientemente do que conscientemente, por Natacha e fazer-lhe uma críptica declaração de amor, inesperada até para ele mesmo? </span></div>Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4027727004133826684.post-28826755246656928462011-12-23T10:20:00.000-02:002011-12-23T10:20:35.428-02:00assassinato<div style="text-align: justify;"> <style>
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<div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Com humor tipicamente britânico, Kingsley Amis teria dito que Evelyn Waugh é “a marvellous writer, but one of a sort peculiarly likely to write a bad book at any moment” (“um escritor maravilhoso, mas de um tipo que poderia escrever um mau livro a qualquer momento”). “A Handful of Dust” (“Um punhado de pó”), considerado um dos melhores romances de Waugh, não parece encaixar-se nem na categoria do maravilhoso nem na coleção de maus livros incidentais.</span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">O romance combina um tanto artificialmente duas histórias de um mesmo personagem: de um lado, o fim do casamento do protagonista, em Londres, em razão do caso “extra-marital” (se cabe o eufemismo) de sua mulher; de outro, sua expiação e exílio no exótico, numa expedição à Amazônia. A sensação é de quebra: a história londrina é bruscamente interrompida para se dar início a um conto de viagem. O enxerto não chega a surpreender quando se lê a entrevista que Waugh concedeu à <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Paris Review</i>: o escritor afirma que o ponto de partida do romance foi um conto seu que corresponderia à parte final do livro. Sua curiosidade ante o passado do personagem do conto o teria motivado a “completar” sua história de vida.</span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">A história, aliás, é bastante simples. Tony e Brenda Last vivem a monotonia de seu casamento nos arredores de Londres, na casa gótica de Hetton em que Tony viveu sua infância e, já adulto, encontrou sua razão de viver. Brenda se apaixona por Beaver, londrino pobre, pretensioso e arrivista, e passa a viver em Londres, com a desculpa dos estudos de economia na faculdade. Com a morte do filho único dos Last, Brenda se separa de Tony, e este, desiludido, segue em expedição à Amazônia, o começo do conto enxertado. Lá torna-se o leitor cativo de um homem analfabeto, que o obriga a ler para ele textos de Dickens em voz alta e priva-o dos meios de voltar à civilização. Com a suposta morte de Tony, Hetton é herdada por seus primos, enquanto Brenda, sem dote a oferecer, é abandonada por Beaver e acaba por casar-se com um terceiro homem.</span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">O que desagrada na construção da trama é a imotivação dos acontecimentos. O leitor não se convence de que deveriam ocorrer ou de que, uma vez concretizados, soam verossímeis. O caso entre Brenda e Beaver nasce do nada: não parece haver atração ou empatia entre os dois; é um caso descarnado, deserotizado. Waugh prefere descrever a casa de Hetton a criar uma atmosfera de envolvimento amoroso que pudesse desencadear o affair. A morte do filho, por sua vez, não provoca o impacto esperado em Tony ou em Brenda: reagem friamente, britanicamente demais. Tony tampouco se altera de modo passional com a descoberta da traição: até admite simular seu próprio adultério para facilitar o divórcio. Reagirá apenas quando descobrir que Brenda quer uma elevada pensão para “comprar” o casamento com Beaver, o que implicará a perda da casa de Hetton. E, ao cabo, o homem da pacata Hetton, daquele mundo provinciano, resolve ir para onde, tendo a seu dispor o mundo inteiro? Para a Amazônia, em busca de uma cidade indígena misteriosa. Nenhuma dessas situações convence.</span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Por trás das ações inverossímeis, circulam personagens desinteressantes, que não despertam simpatia ou empatia no leitor. No mais das vezes, causam aversão: o cinismo de Brenda, a ingenuidade de Tony. Não há, aliás, personagem razoável. A hipocrisia e o egoísmo reinarão em Londres ou na selva. </span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">Se o livro envolve o leitor em algumas partes, o faz pela indignação, pela expectativa de que o autor corrija a história, dê a ela um pouco de credibilidade, como quando Tony finalmente se recusa a conceder o divórcio e uma alta pensão a Brenda. O próprio autor reconhece, na mesma entrevista da <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Paris Review</i>, não dar importância à psicologia dos personagens: ele se diz interessado em acontecimentos, circunstâncias, diálogos. Ocorre que a psicologia se revela nos acontecimentos, e é a coerência dos eventos que dará forma à cabeça dos personagens.</span></div><div class="MsoNormal" style="mso-outline-level: 1; text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold;">“A Handful of Dust” é uma leitura fácil, com seus diálogos freqüentes e fluentes. Waugh encadeia com leveza pequenas cenas e diálogos. Mais longo é o “conto final”, que também tem seu charme, mas sobressai como um corpo estranho no romance. O conto foi uma forma divertida que Waugh encontrou para ajustar contas com o legado de Dickens: por ser brilhante e grandioso, Dickens tormou-se a prisão do inglês, leitor-prisioneiro, que dele não consegue libertar-se. </span></div><div style="text-align: justify;"> <div style="text-align: justify;"><span lang="PT-BR" style="font-family: Georgia; font-size: 11.0pt; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: "Times New Roman"; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-bidi-font-weight: bold; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: ZH-CN;">Infelizmente, o romance de Waugh não está à altura do velho Dickens nem do belo verso de T.S.Eliot que inspirou seu titulo.</span></div></div>Mauricio Lyriohttp://www.blogger.com/profile/01231339926782971616noreply@blogger.com0