23.7.11

o poder e a glória


A vida de Graham Greene parece ter sido tão extraordinariamente conturbada e internacional quanto os personagens e os cenários de seus livros. Os casos de adultério, as viagens, sua relação com o catolicismo, com o socialismo, sua busca do exótico, seu papel como espião inglês, seus problemas com o fisco, suas manias, sua angústia, tudo parece demasiado para uma única vida.
Até o anedótico em Greene intriga, como o fato de que esse homem de vida tão intensa se dava ao luxo de estipular o número de palavras que escrevia diariamente, como um cozinheiro desocupado a contar o número de grãos de arroz no prato de comida que prepara. Diz-se que, ao concluir o romance “A Burnt-Out Case”, Greene mandou um telegrama a uma amiga em que dizia, “FINISHED THANK GOD 325 WORDS SHORT OF ORIGINAL ESTIMATE” (TERMINADO GRAÇAS A DEUS 325 PALAVRAS MENOS DO QUE O PREVISTO).
A estranha mania com os números me soa tão humana e familiar, que só engrandece a figura de Greene. Li, com admiração, seu “The Power and the Glory”, onde aparece esse personagem genial do padre sem nome, angustiado com seus próprios pecados. Como o título sugere, o romance mistura dois dos temas favoritos de Greene, sobre os quais teria produzido seus melhores livros: política e religião. A mistura neste caso é conflituosa: o Governo de uma província no sul do México, no período anti-clerical dos anos 30, tenta eliminar o catolicismo e seus pregadores. Um policial inflexível, movido pelas idéias de revolução social e de supressão de uma religião anestesiante, persegue o último padre, um padre dilacerado por seus dois pecados, o alcóol e uma filha concebida numa noite de fraqueza. O fervor e o fanatismo do perseguidor nascem na ideologia; a dúvida e a falibilidade do perseguido germinam em meio à religião.
Greene conta a história de uma fuga para o nada. Como a religião que cultiva, a sobrevivência é para o “whisky priest” um hábito, uma tarefa que persegue sem convicção. Os pecados do padre o desencontraram de Deus. Ele mais teme do que crê no alto. Receia a morte como momento de danação e persevera na vida pelo inércia do ofício religioso e pelo pavor de prestar contas a Deus. O padre, a quem Greene não dá nome, não tem pouso em que possa descansar: na terra, tornou-se indesejado, já que o policial ameaça de morte os que souberem de seu paradeiro e não o revelarem; no céu, o espera a punição.
Esse padre criado por Greene é um personagem interessantíssimo; complexo, profundo, “round” como classifica Forster. Greene o constrói com a ambigüidade necessária: lhe é crítico, mas lhe dá humanidade. O padre não é um mero violador de uma religião perfeita e sagrada, que por isso deve pagar caro. O autor não o condena, da mesma maneira que não idealiza o catolicismo ao qual se havia convertido anos antes.
Greene é um mestre na criação de cenas envolventes, o que talvez explique sua incomum popularidade para um grande escritor. O livro, embora curto, tem pelo menos três momentos memoráveis. O primeiro é o cerco do vilarejo em que mora a filha do padre. Além do encontro dilacerante e passional com sua criação, o padre é inquirido pelo policial pela primeira vez, mas não é identificado. O segundo momento é o da compra do vinho e do desespero ante seu consumo inusitado por seus inimigos políticos. A impotência do padre comove. O terceiro é o de sua prisão como portador de álcool. A noite na cela infecta e abarrotada e a perspectiva de sua revelação são de uma angústia rara. Sua captura, por fim, é anti-climática, prevista pelo leitor e pelo próprio padre, que suspeitava da traição do mestiço que o perseguira. E Greene, com uma bela elipse e pelos olhos de um antigo conhecido do padre, nos faz acompanhar de longe a execução final.
Graham Greene domina com tanto desembaraço as técnicas de criação, que se permite criar personagens e tramas secundárias que não desenvolve, apesar de despertar a curiosidade do leitor. O que aconteceu com a família Fellows e, em particular, com a menina Coral, que dera abrigo ao padre e prometera vingança contra os perseguidores? E Mr. Tench, o outro inglês, partiria de vez do México? E que fim teria a filha do padre, tão interessante quanto Coral na sua precoce maturidade de 6 ou 7 anos? Principalmente as mulheres, as crianças fortes e enigmáticas de Greene, fazem o leitor perguntar por seu futuro, embora ele não responda.
Greene não é um escritor ousado estilisticamente. Mas escreve com sofisticação, seja pela agudeza com que disseca a psicologia torturada de seu protagonista, seja pela qualidade das metáforas que cria. Seu humor para imagens é precioso, como por exemplo na descrição do dentista Tench observando a boca cariada do chefe de polícia: “He stared moodily into the mouth as though a crystal were concealed between the carious teeth.” Ou na resignação do padre diante da morte: “He felt like someone who has missed happiness by seconds at an appointed place.”
O pecado do autor é seu indisfarçado preconceito etnocêntrico. O México de Greene não é um país; é o inferno. Corrupto, paupérrimo, sujo, povoado por sujeitos ignorantes e doentes. O clima e a paisagem são inóspitas. A beleza, inexistente. O México é personificado na figura do mestiço que engana e denuncia o padre: é um sujeito ardiloso, mesquinho, sem dentes e com febre.
Caricaturas à parte, John Updike talvez tenha razão ao julgar “The Power and the Glory” o melhor romance de Graham Greene.

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