6.11.11

garotos da fuzarca


“Garotos da Fuzarca”, que reúne contos e “histórias” de Ivan Lessa é, como não podia deixar de ser, uma bateria contra tudo e contra todos, um manual de iconoclastia e, muitas vezes, razão para uma boa risada. Não chega a provar que o filho de Orígenes Lessa é um escritor indispensável, como os comentários na contracapa e o prefácio de Millôr Fernandes nos obrigam a crer, mas não há dúvida de que seu humor nigérrimo, implacavelmente incorreto, muitas vezes preconceituoso, tem, apesar de tudo, a sua graça. Não é, no entanto, na tirada imprevista, que fuzila alguém, uma etnia ou uma nacionalidade inteiras, e que mistura referências culturais e populares as mais disparatadas, que o texto de Lessa é mais engraçado ou criativo. O melhor do autor é quando acerta no nonsense e na paródia.
Dois dos melhores contos do livro são “Como Bashir, a cabra, expulsou os demônios” e “Diários de Londres”. O primeiro é uma sátira impagável da devoção, islâmica nesse caso, em que o fervoroso seguidor de Alá, após transar com a filha do conhecido – com seu consentimento e mediante pagamento, “comme il faut” – presencia a descida do Inferno, dos diabos e gafanhotos que avançam com suas proezas sexuais e escatológicas. A mistura do fervor meticuloso (“Agachando-me com o natural cuidado de não dar as costas nem a frente para Meca, a túnica presa entre os quatro dentes que me restam na boca, comecei a obrar enquanto meditava sobre os ensinamentos do Profeta”) e das imagens gráficas e hiperbólicas (“Quatrocentos jatos de sêmen de fogo riscaram o ar e a inesquecível Bashir tombou como um folha de palmeira nas areias ora escaldantes de chamas diabólicas. Mas Alá, com sua providência, quis que os Demônios-Loiros se confundissem, pois, assustados com a súbita ejaculação, começaram a apontar e a disparar seus falos nojentos aos quatro ventos. Um dos Gafanhotos-Infernais, impregnados do líquido maldito, explodiu como explode por dentro o Homem quando este conhece Mulher”) criam um efeito cômico e uma heresia divertidamente carnavalesca.
Já nos “Diários de Londres”, Lessa leva a iconoclastia ao extremo, com toda a baixaria sexual, racial e moral, regada a humor cáustico e, apesar disso, ou por conta disso, com momentos divertidos. É uma festa de imagens e referências, com personagens improbabilíssimos e já cômicos no nome, como o Negro Ken, a Jovem Pat, o Doce Zulfa, reunidos num apartamento, quarto na verdade, de expatriados em Londres. Há um quê de Roberto Arlt de “Los siete locos”, o disparate como elo de um grupo de desviantes: “A Jovem Pat esfaqueou o Negro Ken. O Doce Zulfa, meditando sentado sobre uma bacia de chá de erva-cidreira, sorveu, por sucção anal, de um só – gole? – a infusão e disse que não agüentava mais nosso quartão em Earl’s Court. Eu acabara de me decidir a apoiar o PSD local, uma vez que este, assim como eu, nada representa ou ambiciona, a não ser a sua própria existência.”
Lessa também acerta em alguns contos mais convencionais, como em “Garotos da Fuzarca”, em que acentua a crueldade do estupro e da morte de Zefinha (atribuídos erroneamente ao negro Euclides), pela naturalidade como os narra e pelas referências banais ao cinema e à música, à Copacabana da época, à aparente inocência dos garotos e seus jogos de botões. Ou em “Senhor, tem pena de mim”, que, já críptico em suas referências ao Centro do Rio de Janeiro, é um conto do subentendido: um crime é cometido contra uma mulher, conhecemos alguns pensamentos do provável assassino, mas não temos acesso às circunstâncias da morte e a detalhes da vítima ou do próprio criminoso; o crime é um subtema distante do conto, que nada mais é do que um perambular pelas ruas do Rio.
Conto cruel e divertido é “A difícil arte de não escrever”, que já pelo título faz prever a bofetada na pretensão de escritores que deveriam reunciar ao ofício. O narrador do conto exerce uma tarefa muito mais complicada, a de tomar notas: “Aí está, pois: eu tomo notas. Livro é coisa de pobre; de gente que lê Veja; que escreve para publicação brasileira; que foi, é ou vai ser contratada pela Globo.” Suas notas, diz ele em alguma parte, são “chatas como um parágrafo de Autran Dourado”.
Mais leve na paródia, com humor menos negro, mas nem por isso menos eficiente, é o conto sobre Bolívar e seu cavalo Paco, “A espada de Bolívar, el Libertador de las Américas”. Entre outras aventuras, Simón senta-se a uma árvore de nachos ou faz uma promessa à Santa María de la Enchilada: “Nessas notas alegres – mi, sol, dó, fá, pa-ram-pan-pan – foram as Américas Liberadas”. O conto nelson-rodrigueano “Uma boneca ao relento”, sobre a esposa que “se oferece” para poder salvar o marido, também tem a sua graça, mas não o charme das histórias e o estilo do mestre que o inspira.
Ivan Lessa também é eficiente na evocação de um espírito de época, do período em que viveu no Brasil, quando certa melancolia se mistura à sua iconoclastia. “Perfeito roteiro para Londres” é uma coleção de frases e pensamentos soltos que formam um painel interessante na cabeça de um carioca dos anos 50. Há certa cacofonia brasileira, certa loquacidade, meio malandra, meio sem sentido, que soa bem, pela graça e pelo acerto. Neste caso, Londres é um pretexto, o lugar onde o carioca exorcisa sua carioquice. Nostalgia que não chega a neutralizar a militância de Lessa contra o Brasil e os brasileiros, ridicularizados até o último hábito, como nesta passagem de “Que fim levou o Edélsio Tavares?”: “Mas, como essas coisas de que nós, brasileiros, não conseguimos escapar – esta oscilação entre o passado e o futuro: a nostalgia da febre amarela e o regalar-se com a AIDS – tenho minhas ambivalências: ele me faz uma certa falta. Como me faz uma certa falta o garçom fanho, as mocinhas com barriguinha de feijão, o operário caindo do andaime, a testa suada do político dando vexame na televisão, os peixes morrendo na Lagoa Rodrigo de Freitas.”
Apesar do talento para o humor, Lessa pode ser chato, muito chato por vezes, com uma escrita espantosamente pretensiosa, hermética, auto-referencial, de onde não se tira ou compreende nada, como em “As convenções: as convenções” e em “Altos edifícios da noite”, que começa como paródia e termina como uma barafunda telegráfica. Lessa também chega, em algumas poucas vezes, a esforçar-se por ser cômico sem ter graça alguma, pela desmedida do escracho ou pela infantilidade da piada, como em “O bombonette” (sobre a relação entre o guerrilheiro torturado e o torturador), em “Carlos Zéfiro na região dos Lagos com Edélcio Tavares” (uma sátira ingênua de tão puerilmente pornográfica), e em “Algúrios a alguém algures no Algarve” (sobre um suposto brasileiro em Lisboa). A mistura de citações obscuras de música popular e cinema com uma linguagem ao mesmo tempo coloquial e cifrada mais irrita do que diverte, e tem-se a impressão de que o autor mais parece sofrer alucinações a toque de álcool (afinal até a Baía tem cor de conhaque) do que verdadeiramente querer atingir algo maior. 
O livro se encerra com “A bênção”, que bem pode ser uma paródia do “Samba da bênção”, de Vinicius de Moraes, só que aqui, em vez de agradecer aos músicos que o inspiraram, como o poeta, Lessa presta uma homenagem aos humoristas que admira, narrando o assédio que sofreu de todos eles quando lhe vieram pedir o autógrafo.

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