29.10.11

o leilão do lote 49


Como quase tudo na vida e na obra de Thomas Pynchon, “The Crying of Lot 49” (“O leilão do lote 49”), seu segundo romance, publicado em 1965, é ao mesmo tempo rocambolesco e enigmático, divertido e genial.
Oedipa Maas (que belo nome para uma protagonista) é chamada para fazer o inventário de seu ex-amante, Pierce Inverarity, recém-falecido. Em vez de uma mera execução de inventário, Oedipa, a exemplo do seu distante antecessor grego, desenrola, a sua revelia, toda uma trama de conspirações e pistas falsas, envolvendo organizações secretas, disputas centenárias entre couriers privados, diálogos cifrados em peças de teatro antigas, em bandas e letras de rock imaginárias... Pynchon é o mestre da ficção como torvelinho paranóico, em que personagens de nomes e personalidades altamente inventivas se entrechocam em labirintos de conspirações e manipulações que desnorteiam o leitor, no melhor dos sentidos.
Embora tenha sido desprezado por Pynchon, que na introdução do seu livro de contos, “Slow Learner”, renega o romance, “O leilão do lote 49” tem tudo que notabilizou o escritor norte-americano. As imagens ricas e em crescendo estão lá, como na minuciosa descrição dos restos humanos no interior dos carros comercializados por Mucho Maas, marido de Oedipa e dublê de DJ de uma estação de rádio, ou na cena de progressivo envolvimento, como num strip-tease ao revés, entre Oedipa e Metzger, que tenta seduzi-la exibindo o filme B em que fazia o papel de uma criança em fuga, enquanto lá fora, ao pé da janela do quarto do motel, uma banda de rock, “The Paranoids”, livremente inspirada nos recém-lançados Beatles (Pynchon escrevia em começos dos anos 60), toca a sua serenata histriônica. Pynchon carrega na riqueza simbólica do visual: vemos a cidade de cima, com sua geometria particular que antecipa o labirinto em que Oedipa cairá, vemos os objetos acumulados e cheios de histórias no fundo de um lago artificial de um complexo hoteleiro para mergulhadores, que esconde segredos de corporações e grupos mafiosos.
Também está no romance a inventividade da linguagem, como no gosto pelos trocadilhos, pelas letras de música absurdas, pelos nomes infames: Oedipa e Mucho Maas, Pierce Inverarity, Funch, Dr. Hilarious, Baby Igor, “Yoyodine”, Mike Fallopian, Manny Di Presso, “Fangoso Lagoons Security Force” (uma empresa de segurança formada por ex-atores de western e ex-policiais motociclistas de Los Angeles), “Sick Dick and the Volkswagens” (outra banda de rock), Winthrop Tremain... Ao gosto pela imagem que acumula simbolos, Pynchon soma o jogo da palavra que multiplica os sentidos, quase sempre com um ironia e humor. A peça de teatro do século XVII que ele inventa e que revela a origem das conspirações do grupo Trystero (“The Courier’s Tragedy”, de um suposto dramaturgo Richard Wharfinger) já é em si um conto impagável dentro do livro.
Pynchon faz tudo isso sem esquecer os personagens. A caracterização dos protagonistas, em contraste com as caricaturas hilárias que os cercam, faz lembrar a sofisticação psicológica de um retratista como Saul Bellow. Oedipa e Mucho, por exemplo, são pintados com uma sutil ambigüidade. Apesar de curto o livro, ao menos para os padrões pynchianos de romances em calhamaços, é difícil esquecer uma personagem “cool” como Oedipa Maas, em que certa serenidade sexy do começo vai dando lugar a um progressivo, mas ainda charmoso, desnorteamento diante da trama de conspirações que a encurralam.
“O leilão do lote 49” é uma boa introdução ao estranho mundo de Thomas Pynchon, em que o surreal, o paranóico e o lúdico têm o seu melhor encontro na literatura contemporânea.

20.10.11

a morte e a bússola


Além do gosto pelas narrativas curtas e pela poesia, Borges tinha em comum com Edgar Allan Poe a versatilidade de seus contos, do fantástico ao “gaucho”, do cômico ao policial. O quarto conto da seção “Artifícios” do livro “Ficciones” é um sofisticado conto policial, “La muerte y la brújula” ("A morte e a bússola"). Sofisticado porque Borges nos faz imaginar que terá uma solução mais ou menos previsível (as iniciais dos assassinados formariam o nome oculto de Deus), mas na verdade nos conduz a uma revelação mais sutil e engenhosa, em que os crimes são praticados não por inspiração de uma seita hasídica, mas tão somente pelo desejo do assassino de valer-se do acaso para criar uma armadilha de vingança.
O protagonista é o agente Erik Löonrot, mais dado a pistas e interpretações intelectuais dos crimes do que à busca de evidências banais. Saberemos ao final que é esta inclinação de Löonrot que será sua perdição, já que é dele que o assassino busca vingar-se, e usará os assassinatos em série como um chamariz para atrair o agente. Em lugar de formar um nome, como seria de esperar pelas pistas hasídicas deixadas pelo criminoso, a série de mortes formará um losango geográfico, que só Löonrot, em função de pistas que Borges nos vai revelando (os losangos em paredes e roupas, a idéia do tetragrámaton), conseguirá deduzir.
O desenho dos crimes (no caso, o losango) não deixa de ser uma solução interessante para a época em que Borges escreveu, em que assassinatos em série não haviam sido banalizados pelo cinema e pela televisão. O que agrada no conto, no entanto, é a idéia de construção dos crimes seriais a partir do acaso (a frase que a primeira vítima havia deixado sobre a máquina de escrever) e do desejo de envolver a vítima principal num labirinto que irá encantá-lo e conduzi-lo à própria morte. Nenhum assassinato terá tido execução mais literária, nenhuma dupla assassino-vítima terá sido mais borgiana, e é isso, esse elemento puramente lúdico, literário e labiríntico que encanta nesse belo conto policial.