25.3.12

Hedda Gabler


“Hedda Gabler”, a personagem que dá título à peça de Henrik Ibsen, é uma arrogante, egocêntrica e entediada filha de um general já falecido. Com pendores aristocrátcos, mas sem paixão alguma, casa-se com um acadêmico e torna-se Hedda Tesman, o que em nada muda sua insensibilidade e egoísmo. Em torno dela, e por sua ação, ocorrerão pequenos conflitos, algumas mortes, previsíveis ou não. Em lugar de movê-la de seu tédio, esse conjunto de perversões domésticas aumenta sua desilusão e indiferença diante da vida. Num gesto banal, quase corriqueiro, Hedda comete o ato extremo.
A peça tem a contenção e a frieza da Noruega de Ibsen. Não gira em torno de grandes temas sociais, eventos históricos ou paixões arrebatadoras. Trata de relações familiares doentias, de diferenças sutis de classe, de personagens desapaixonados. A motivação do dramaturgo parece ser a de criar um ser gélido e seu pequeno império de manipulação familiar, que determina a vida dos personagens que a cercam como peças de um jogo caprichoso. O cenário ideal deste jogo é o salão de Hedda Tesman, onde o marido, o conselheiro e os amigos orbitam em torno da personalidade forte da anfitriã. Vive-se o formalismo banal, a frieza do mundanismo, regidos pela atitude doentia da protagonista. De anormal e transgressor há apenas a figura de Lövborg, ex-amigo e pretendente de Hedda, que morre por seus excessos, em parte pelas mãos dela mesma, que quer vingar-se dele por conta de sua relação com uma conhecida, Thea Elvestad. Genialidade e paixão não têm lugar no salão do casal Tesman.
Ibsen constrói sua peça com pequenos movimentos, mudanças e gestos sutis, que revelam o caráter de Hedda, como a cena do chapéu de Julie Tesman, da troca do nome de Thea (Thora), da oferta de bebida a Lövborg. As mudanças do cenário funcionam como um relógio ao longo de um dia (o piano em novo lugar, a vela queimando, portas e cortinas que se abrem e fecham), tão delicadas como a escolha das palavras. Mesmo os grandes gestos e rupturas, como o tiro simulado no conselheiro, a queima do manuscrito de Lövborg e o suicídio, são marcados pela indiferença da protagonista, o que retira qualquer elemento trágico da história. Uma tragédia requer sentimentos e desejos fortes, causas elevadas ou grandes injustiças, tudo o que não se encontra no mundo pequeno da entediada Hedda e de seu círculo de cultivadores. É a frieza dos personagens e de seu meio, que Ibsen quer mostrar-nos de maneira igualmente fria e desapaixonada.

10.3.12

pornopopéia


O humor ocupa um lugar muito particular na literatura. Não é difícil saber se algo é cômico ou não; engraçado ou entediante. O riso é o metro. Mas a quantidade de riso e choro que uma obra provoca não define sua grandeza. Se assim fosse, os dramalhões e os anedotários seriam as formas maiores da literatura. Quase sempre é difícil avaliar o valor literário do humor.
Tome-se a literatura brasileira. Há humor em obras de Machado, Nelson Rodrigues, Mário e Oswald de Andrade, Drummond, Rubem Fonseca, entre outros. Mas são poucas as obras de certo peso que foram deliberada e fundamentalmente construídas em torno do humor. Penso, por exemplo, em “O púcaro búlgaro”, de Campos de Carvalho, ou “Armadilha para Lamartine”, de Carlos & Carlos Sussekind. Não há dúvida de que foram escritas como peças cômicas e de que funcionam bem como tal, mas é possível enquadrá-las como obras centrais da literatura brasileira? A tentação é grande de interpretar o humor que muitas ou algumas vezes resvala no escracho ou na piada excessiva como indigno da literatura como L maiúsculo.
Foi o que senti ao acabar de ler “Pornopopéia”, de Reinaldo Moraes. É um dos livros mais engraçados que já li, um calhamaço de 500 páginas sobre as aventuras sexuais de um cineasta decadente, contadas com uma linguagem de humor e escracho bem trabalhada, inventiva, brilhante às vezes. As risadas vêm das situações em si e de certo virtuosismo chulo, verbal, do autor na hora de narrá-las. Se as investidas de Bukovski tivessem de ser reescritas por Philip Roth ou Pynchon com o vocabulário dos redatores do Casseta & Planeta, “Pornopopéia” bem poderia ser o resultado dessa estranha mistura de propósitos e estilos literários.
O cineasta Zeca, diretor do experimental “Holisticofrenia”, está às voltas com a produção de um vídeo institucional sobre embutidos de frangos, pois precisa de algum dinheiro para as aventuras sexuais e alucinógenas e, sobrando algo, para a mulher e o filho. Em meio a sua crise de criatividade, compreensível tendo em conta o valor artístico de um comercial de frios de galinha, ele se mete em orgias e enrascadas dos mais diversos tipos. Reinaldo Moraes nos conta a história em tom de conversa com o leitor, um “você” insubstancial que acompanha o livro inteiro. Vale-se também de uma narrativa muito visual e descritiva, que faz jus ao narrador cineasta. Embora o livro não pareça um roteiro de filme, como Zeca parece pretender, são muitas as descrições detalhadas de pessoas (“Toda pose, a fulana, tailleur moderno, cor de aurora boreal em Júpiter”), de ambientes (o templo da Surubrâmane, o apartamento da produtora Khmer VideoFilmes Ltda.) e de situações pornoeróticas:

“O pentelhal do magrelo era apenas um prolongamento da pelagem de hominídeo cavernoso que lhe recobria peito, barriga e pernas. E a bunda era uma anedota macabra, chupada para dentro do rego, como se o cu, faminto, estivesse tentando engolir suas nádegas e a ele por inteiro. Era até atraente a figura, de tão repulsiva. Se eu me meter uma dia a refilmar o ‘Nosferatu’ do Murnau, como já passou pela minha cabeça (e do Herzog também, um pouco antes), vou propor ao Anselmo o papel do vampiro maledetto.”

O que dá graça ao livro é a riqueza da linguagem escrachada, o humor e a versatilidade do vocabulário, os trocadilhos, até certa preocupação de “mot juste” mesmo nas situações mais pornográficas e aviltantes. Moraes arrisca e consegue ser, umas poucas vezes, quase poético, como na cena do afogamento, em que desencava uma ou outra boa imagem para descrever seu estado de nadador em desespero (“eu era um náufrago de navio nenhum”; “um urubu geômetra descrevia círculos concêntricos em cima da minha ereção”; “o mar boiava em si mesmo”). A linguagem, por mais chula que seja, é adequada à história e, de certa maneira, mais atraente que a própria história, que não passa de uma sucessão de transas e trapalhadas. É raro ver o vocabulário urbano de gírias e palavrões do português explorado numa narrativa pornocarnavalesca com certa pretensão literária:

“O Rubinho nunca esteve em nenhum lugar onde viver não lhe doesse – como deve ter dito mil vezes o Fernando Pessoa.”

“Era inacreditável, mas eu estava pegando no pau dum cara com peitos maiores que os da Marilyn Monroe. (...) Aquela dessintonia manupeniana me provocou um profundo desconforto cognitivo.”

Embora tenha sido reduzido, como já disse o autor, de sua versão original de mais de mil páginas para as 500 da publicação, “Pornopopéia” se beneficiaria de cortes adicionais. São cacetes as supostas instruções ao potencial editor do roteiro/livro ou o excesso de conversas com o leitor, mesmo porque Moraes não tem o dom de Machado. O livro cai um pouco com a fuga do protagonista para Porangatuba. Há menos brilho e peripécias longe da São Paulo do cineasta.  
“Pornopopéia” encaixa-se bem na pequena lista de livros brasileiros que conseguem fundir humor e literatura, escracho e invenção. Moraes não chega a praticar o humor mais sofisticado (surrealista e nonsense) de uma Campos de Carvalho, mas seu livro, pela originalidade e malabarismos pornoverbais, tem o seu lugar na literatura brasileira.