28.12.14

o concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro


A relação, substantiva e formal, entre a literatura e as demais formas de manifestação artística pode ser tanto um bom tema como um instrumento de renovação da prosa de ficção.
Algumas linhas da literatura brasileira das últimas décadas, especialmente a ficção urbana representada pela figura maior de Rubem Fonseca e seus herdeiros, parecem influenciadas pelo ritmo, caráter fragmentário, elíptico e essencialmente visual da narrativa do cinema, o que gerou e continua a gerar algumas boas obras e outras menos inspiradas. Mais recentemente começou a ganhar relevância, embora em escala menor, outra vertente da literatura brasileira, que explora a interação entre a prosa e as artes visuais, desenvolvida – com maior ou menor sucesso, com ou sem uso de fotografias ao estilo Breton/Sebald – por escritores-artistas (ou artistas-escritores), como Nuno Ramos, Verônica Stigger e Laura Erber.
Curiosamente, uma das tentativas mais bem sucedidas na literatura brasileira contemporânea de estabelecer um diálogo entre artes (e, portanto, de enriquecer formalmente a própria ficção) foi realizada por Sérgio Sant’Anna num belo conto que aproxima a literatura não do cinema ou das artes visuais, mas do teatro e da música.
“O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, publicado pela editora Ática, em 1982, e reeditado agora pela Companhia das Letras, é o conto principal do livro de Sérgio Sant’Anna que leva o mesmo nome, e possivelmente um dos contos mais significativos do autor.
Centrado num show que João Gilberto se recusou (no dia mesmo) a fazer no Canecão por inadequação de acústica, o conto é uma interessante reflexão sobre o lugar do silêncio tanto na música quanto na literatura. É no fundo uma defesa do não-dito (não-emitido/não-pronunciado) como fundamento, por contraste, da própria arte, seja ela musical ou literária. Somente a redescoberta do silêncio em meio à hipertrofia de estímulos, à balbúrdia e à cacofonia restabeleceria o valor artístico do som ou da palavra.
O tema do silêncio é recorrente ao longo do conto. Já na cena inicial, no aeroporto em Nova York, John Cage (compositor de pausas e silêncios) presenteia João Gilberto com uma gaiola (“cage”) vazia, onde está o suposto pássaro da perfeição. João o leva para o Rio e, tanto quanto o pássaro invisível e mudo, não cantará no dia do concerto, para não quebrar o silêncio com o som inadequado, aquém da perfeição. A economia do som (e da palavra) é a condição de sua qualidade, de seu impacto e valor como arte.
Formalmente, Sant’Anna traduz esse elogio à abstenção por meio de um texto recortado, uma colagem de vinhetas, diálogos, citações e situações que realçam o silêncio e o vazio entre as cenas e, por extensão, tornam cada cena mais expressiva: a chegada de João Gilberto e Luís Carlos Prestes ao Rio; o comentário do diretor do Pinel, ao lado do Canecão; a notinha da revista Amiga; os instantâneos de conversas de bar do autor e seus amigos. Também ele, autor, precisa deixar de dizer para reforçar o sentido de cada fragmento que ajuda a construir a sua história. Como se buscasse o contraponto literário da parcimônia de João Gilberto e John Cage.
O diálogo interartístico no conto não se limita à interação entre autor e compositor, entre ficção e música. Além de João Gilberto, outro interlocutor do narrador/autor é o diretor Antunes Filho. Sant’Anna não esconde seu interesse pelo teatro, o que se revela não apenas nas incursões noturnas e reflexões do seu alter-ego narrador, mas na própria montagem dos fragmentos do conto como sketches, pequenos números teatrais, em que os personagens muitas vezes parecem mais representar do que ser ou estar: Bob Wilson e Antunes como personagens de si; Caetano Velloso como repositório de uma sabedoria inapreensível; o urubu mensageiro carioca como interlocutor do urubu da Condor Filmes (ou mesmo do pato da Bossa Nova); o “autor” Sérgio Sant’Anna como personagem do escritor Sérgio Sant’Anna. Num dos muitos exercícios de metaliteratura no conto, Sant’Anna chega a citar o comentário de Silviano Santiago de que seus personagens são acima de tudo atores, aos quais ele mal dá a liberdade de se desenvolverem plenamente. Como no teatro, os personagens no conto revelam-se muito mais por enunciação própria, nos diálogos, do que por uma descrição ou caracterização psicológica intermediada pelo narrador.
Há no conto, na justaposição e criatividade dos fragmentos, uma leveza de invenção e irreverência que, ironicamente, também faz lembrar o cinema, o frescor jovem e criativo de um Goddard dos anos 1960, no jocoso fingimento de não se levar muito a sério. De um lado, vemos cenas que remetem a um Rio mitológico, insouciante, do Botafogo de Garrincha à Ipanema de Jobim, do Canecão de João Gilberto ao Maracanã de Sinatra; de outro, descobrimos uma riqueza de jogos e pequenos achados literários que dão graça e colorido à narrativa.
Se há algo a questionar é o desejo de Sérgio Sant’Anna de explicar alguns achados e truques que insere ao longo do texto, como se precisasse certificar-se de que o leitor irá percebê-los. O efeito é reduzir o charme e a sutileza de algumas das tiradas metaliterárias, dos pequenos achados musicais, visuais ou verbais, tão frequentes no conto. Os elementos de metaliteratura – a auto-referência a Sérgio Sant’Anna, o diálogo com Silviano Santiago ou Rubem Fonseca, os dilemas explicitados do autor/narrador na construção do conto sobre João Gilberto – são quase sempre oportunos e mesmo necessários, mas em alguns poucos casos Sant’Anna retira do leitor a graça de desvendar os seus enigmas por si só. Isso acontece, por exemplo, na brincadeira do autor/narrador sobre o Hino Nacional (pg. 170), na bela imagem do corpo branco sob a capa preta ao som da canção bicolor de Tom e Chico (pg. 186) e, sobretudo, em alguns dos momentos em que Sant’Anna procura analisar a estrutura e estilo do conto que está escrevendo (o texto como ensaio, os fragmentos como integrantes de uma orquestra, o fragmentário como o novo realismo, o comentário sobre Syberberg...). Uma coisa é a literatura que se comenta pelo apelo do jogo de espelhos, e por toda a ressonância de significados que gera; outra, a literatura que se explica como forma de legitimação. Nesse último caso, o silêncio, como endossaria o próprio Sant’Anna, talvez fosse a solução estilisticamente mais elegante.
São escolhas do autor no sempre difícil equilíbrio entre o dito e o não-dito, e que mesmo ao juízo de um leitor que pode se sentir subestimado, não tiram o brilho do conto. Para além dos achados e jogos, Sant’Anna produz pequenas preciosidades de texto, inseridas aqui e ali como frases despretensiosas (“Quando eu bebo, só tenho medo no dia seguinte”) ou como metáforas simples (“O Planeta rolando vertiginosamente no Cosmos e você ali boiando nas ondas do mar, como um passageiro de primeira classe”), sempre com um ótimo efeito no desenrolar do conto.
“O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro” é, ao mesmo tempo, uma homenagem às figuras centrais da cultura brasileira das décadas de 1960 e 1970 (como JG, Tom, Gláuber, Chico, Caetano, Antunes, Rubem Fonseca...) e uma inventiva e divertida experiência de fecundar o conto por meio do diálogo com a música e o teatro. Um belo show de Sérgio Sant’Anna sobre o expressivo no-show de João Gilberto.

5.10.14

a vida nova


Não sei o que impressiona mais em César Aira, a prodigalidade de histórias ou a originalidade de estilo(s). São quase 70 livros de ficção, e aqueles que li (naturalmente, um percentual muito limitado do universo Aira) me pareceram não só imaginosos no limite do nonsense, mas também com estilos marcadamente diferentes. Já é difícil classificar o que Aira faz como gênero: ele mesmo diz que não escreve romances/novelas, mas “artefatos literários”, “poesia escrita como exercícios de prosa”. E dentro dessa enorme coleção de artefatos ou exercícios, o que menos há é repetição, homogeneidade.
Apesar da indefinição do objeto literário, em Aira convivem a imaginação vertiginosa e a precisão. O fabulista e o dicionarista. O devaneio e o método. Ele é capaz de inventar um personagem César Aira que quer controlar o mundo roubando o DNA de Carlos Fuentes, mas como a mosca que programou acaba picando a gravata e não a pele de Fuentes, clonam-se por engano gigantescos bichos da seda, que destroem a cidade de Caracas (“El congreso de literatura”). Esse mesmo Aira, o autor, não o personagem, é capaz de redigir mais de 600 verbetes sobre os mais diferentes escritores latino-americanos, com o rigor e a minúcia de um ourives-escrivão (“Diccionario de autores latinoamericanos”).
“La vida nueva” é a quinquagésima-sexta “novela” de Aira. Na verdade, não mais do que um parágrafo de 76 páginas narrado em primeira pessoa por um escritor que (como Aira) vive em Flores, arredores de Buenos Aires. Pode ser lido como uma brincadeira séria em torno de algumas idéias caras a Borges. As possibilidades do e no tempo. As bifurcações possíveis. Os futuros possiveis de um homem. A gratuidade dos eventos que nos levam a uma vida ou a outra. Não surpreende que o protagonista do livro, que nunca consegue lançar seu primeiro romance, desfie aqui e acolá anedotas sobre Borges, como a visita que teria feito à redação de uma revista para enfiar exemplares de seu primeiro livro nos bolsos dos casacos pendurados nos cabideiros.
As agruras do escritor inédito em “La vida nueva” são retratadas com tons surreais, buñuelescos, que parecem derivar mais de uma essência absurda da vida do que de contingências objetivas e materiais que atingem o personagem, até porque seu manuscrito goza de bom conceito entre seus leitores e de um editor disposto a publicá-lo (embora nunca capaz de fazê-lo, pelas razões mais diversas). A novela é sobretudo uma reflexão sobre a circularidade da vida, o eterno e gratuito retorno, o homem como Sísifo, sempre mais patético a cada volta. Aira esgarça e subverte o tempo da narrativa, transformando semanas em anos ou décadas, para realçar o absurdo e a gratuidade de cada gesto, de cada tentativa. O homem em geral sim, mas é sobretudo o escritor na sua particularidade quem carrega a pedra que nunca se fixa no alto.

“Nos despedimos con un “hasta pasado mañana”, que sonaba a una variación casi humorística del clásico “hasta mañana”. Lo llamé, efectivamente, pero no a los dos días sino mucho más tarde. Cuánto? Perdi la cuenta. Seis, siete años después. Quizás más. Pasaron tantas cosas, y a la vez parecía como si no pasara ninguna.”

As noções tradicionais de tempo não fariam sentido porque não há causalidade linear, relação clara entre o que supostamente seria causa e o que supostamente seria efeito. A graça da novela de Aira está nesta dupla transgressão do tempo e da racionalidade, em mais uma de suas críticas à verossimilhança como base do romance pós-século XIX, período que, segundo o autor, teria esgotado todas as possibilidades do romance realista. Aira chega a ser quase didático na voz de seu alter ego:

“Cada pequeño incidente de la sucesión (y ésta era una sucesión de incidentes y de nada más) venía provisto de causa y efecto, pero las causas y efectos, que por lo demás se estaban transformando unas en otros todo el tiempo, eran a su vez pequeños incidentes atorbellinados que partían en todas direcciones.”

Não é, no entanto, apenas o esgotamento de um modelo artístico que desautoriza a linearidade e a verossimilhança. A narrativa em “La vida nueva” desenrola-se em saltos e descontinuidades porque a memória e a identidade constroem-se dessa maneira. O protagonista de existência flácida é inseguro de seu passado e parcialmente inconsciente do seu presente porque é assim que a identidade individual se forma. Nunca de maneira exaustiva, contínua, homogênea no tempo, apesar da existência ininiterrupta no tempo. Isso é agravado quando se escreve, já que é preciso refabular a fábula que é a memória:

“Quizás era improcedente hablar de recuerdo y olvido cuando el objeto de la memoria era uno mismo: el recuerdo exigía una discontinuidad, y uno no había dejado de ser uno mismo desde su más remoto pasado, no había habido interrupción. (...) Con la vida de los escritores siempre se había fantasiado mucho, lo que a la larga debía de haber afantasmado un poco las vidas reales de los escritores reales, a tal punto que correspondía preguntarse si no sería todo una gran fantasía: vidas que no vivía nadie, ni siquiera los que vivían (lo que terminaba siendo otra contradicción.)”

Para além de uma alegoria sobre as dificuldades de publicação do escritor inédito, sobre a improvisação romântica de escritores e editores, “La vida nueva” é uma reflexão um tanto irônica, um tanto séria, sobre o desenrolar do tempo: o tempo na vida, com as escolhas e ciclos que marcam o indivíduo; o tempo na memória, com sua seletividade, seu ritmo, seu método; o tempo na literatura, com suas possibilidades menos ou mais inovadoras.