Talvez esperasse um pouco mais de “A Room of One’s Own”, de Virginia Woolf. Baseado em duas conferências dadas na década de 1920, o livro é considerado um dos grandes ensaios da ficcionista. A verdade é que vale mais pela coragem e pioneirismo na defesa dos direitos da mulher e da mulher escritora do que por seus méritos propriamente literários.
A tese de Woolf parece tão simples hoje quanto era controvertida na época: as mulheres não são menos capazes do que os homens para a literatura; o que lhes falta são os meios; dê-se-lhes um espaço de privacidade (“a room of one’s own”) e uma fonte de renda, e elas farão tão boa literatura quanto os homens: “All I could do was to offer you an opinion upon one minor point – a woman must have money and a room of her own if she is to write fiction; and that, as you will see, leaves the great problem of the true nature of woman and the true nature of fiction unsolved.”
Woolf lembra que ela mesma só pôde escrever pelo fato de compartilhar um mesmo sobrenome com a tia rica que lhe deixou uma bela herança: “Indeed, I thought, slipping the silver into my purse, it is remarkable, remembering the bitterness of those days, what a change of temper a fixed income will bring about. No force in the world can take from me my five hundred pounds. Food, house and clothing are mine forever. Therefore not merely do effort and labour cease, but also hatred and bitterness. I need not hate any man; he cannot hurt me. I need not flatter any man; he has nothing to give me.”
Ela desenvolve a tese, e a enriquece com hipóteses e reflexões complementares. Seus protestos contra o preconceito são sempre agudos e certeiros, como é tocante sua indignação por ser impedida de permanecer na biblioteca da universidade que visita ou por não participar, na mesma universidade, do fausto exclusivamente masculino de regalar-se com a boa comida e a boa conversa, em torno dos prazeres dos sentidos. Para Woolf, o prazer dos sentidos, como no bom jantar que vislumbra em seu passeio no campus, parece ser fundamental para a sensibilidade literária. Tudo parece fabuloso no ambiente exclusivo e inacessível das universidades: “The organ complained magnificently as I passed the chapel door. Even the sorrow of Christianity sounded in that serene air more like the recollection of sorrow than sorrow itself; even the groanings of the ancient organ seemed lapped in peace.”
A capacidade de Woolf para a descrição e a metáfora por vezes aparece de forma sublime, como lampejos que despertam a audiência, como na descrição do British Museum: “The swing–doors swung open; and there one stood under the vast dome, as if one were a thought in the huge bald fore head which is so splendidly encircled by a band of famous names.”
Sobre literatura propriamente, Woolf começa suas reflexões com o contraste que estabelece entre a mulher real e a mulher construída pela ficção. A mulher da literatura é um ser à parte: "A very queer, composite being emerges. Imaginatively, she is of the highest importance; practically she is completely insignificant. She pervades poetry from cover to cover; she is all but absent from history. She dominates the lives of kings and conquerors in fiction; in fact she was a slave of any boy whose parents forced a ring upon her finger. Some of the most inspired words, some of the most profound thoughts in literature fall from her lips; in real life she could hardly read, could scarcely spell, and was the property of her husband."
Sobre as escritoras e seu potencial, ela defende a tese, hoje bastante óbvia, de que, oferecidas as mesmas condições, as mulheres poderiam ser tão boas quanto os grandes escritores. Poderia ter existido, por exemplo, uma irmã de Shakespeare tão brilhante quanto ele. O que constrangeu as mulheres foi, no entanto, não apenas a impossibilidade prática e a hostilidade alheia, mas também os grilhões mentais, os preconceitos assimilados e a própria auto-censura: “publicity in women is detestable. Anomymity runs in their blood”, o que explicava a adoção de nomes masculinos, como em Currer Bell, George Eliot e George Sand, e reforçava por sua vez a convenção de que só os homens eram capazes. Não era possível ser indiferente à indiferença, quanto mais à discriminação e à hostilidade, já que o artista é sensível demais para não se importar: “Literature is strewn with the wreckage of men who have minded beyond reason the opinion of others.” E a melhor literatura, segundo Woolf, é, como no caso de Shakespeare, a mais livre dos ressentimentos e queixas, que decorrem muitas vezes do preconceito e da hostilidade: “The reason perhaps why we know so little of Shakespeare – compared with Donne, or Ben Johnson or Milton – is that his grudges and spites and antipathies are hidden from us. We are not held up by some “revelation” which reminds us of the writer. All desire to protest, to proclaim an injury, to pay off a score, to make the world the witness of some hardship or grievance was fired out of him and consumed. Therefore his poetry flows from him free and unimpeded. If ever a human being got his work expressed completely, it was Shakespeare. If ever a mind was incandescent, unimpeded, I thought, turning again to the bookcase, it was Shakespeare’s mind.”
Sem espaço, sem dinheiro, sem apoio, contra vontades e preconceitos, coube à mulher, no máximo, algum sucesso no romance (Austen, Eliot, as irmãs Brontë), mesmo porque requeria, segundo Woolf, menos concentração e privacidade do que a poesia, a história e o teatro (Austen, por exemplo, escrevia em meio ao movimento da família, sem quarto próprio, sem que os visitantes percebessem). O que surpreende no caso delas é o alcance de suas obras sem que tivessem tido a vivência do mundo que é facultada aos homens: “She (Charlotte Brontë) knew, no one better, how enormously her genius would have profited if it had not spent itself in solitary visions over distant fields; if experience and intercourse and travel had been granted her. But they were not granted; they were withheld; and we must accept the fact that all those good novels, Villette, Emma, Wuthering Heights, Middlemarch, were written by women without more experience of life than could enter the house of a respectable clergyman.”
Ainda assim, haveria diferenças fundamentais entre elas, que dizem respeito justamente à capacidade de escrever sem se deixar contaminar pelo ressentimento, ou pela temeridade de escrever como os homens escrevem: “Only Jane Austen did it and Emily Brontë. It is another feather, perhaps the finest, in their caps. They wrote as women write, not as men write. Of all the thousand women who wrote novels then, they alone entirely ignored the perpetual admonitions of the eternal pedagogue—write this, think that. They alone were deaf to that persistent voice, now grumbling, now patronizing, now domineering, now grieved, now shocked, now angry, now avuncular, that voice which cannot let women alone, but must be at them, like some too–conscientious governess.” Austen teria logrado tanto justamente porque, mesmo não tendo o gênio de Charlotte Brontë, soube expressar-se com voz própria, feminina, “a perfectly natural, shapely sentence proper for her own use.”
Woolf defende de forma veemente a idéia de uma voz feminina própria, que é inacessível ao homem, incapaz de pronunciá-la, por oposição a uma voz masculina, inacessível à mulher. O que não signfica que o homem não tenha um elemento de imaginação feminina, e vice-versa. Certa capacidade para a voz andrógina seria uma das virtudes centrais do grande escritor: “Coleridge perhaps meant this when he said that a great mind is androgynous. It is when this fusion takes place that the mind is fully fertilized and uses all its faculties. Perhaps a mind that is purely masculine cannot create, any more than a mind that is purely feminine, I thought.” Também aqui o brilho de Shakespeare seria evidente, embora na boa companhia de outros autores: “One must turn back to Shakespeare then, for Shakespeare was androgynous; and so were Keats and Sterne and Cowper and Lamb and Coleridge. Shelley perhaps was sexless. Milton and Ben Jonson had a dash too much of the male in them. So had Wordsworth and Tolstoi. In our time Proust was wholly androgynous, if not perhaps a little too much of a woman.”
Woolf não chega a desenvolver uma das frases mais intrigantes do livro. Não sei se a compreendo, mas as palavras ressoam com força e certo mistério: “a book is not made of sentences laid end to end, but of sentences built, if an image helps, into arcades or domes” ("um livro não é feito de frases dispostas uma atrás da outra, mas de frases construídas, se uma imagem ajuda, em arcos e cúpulas"). É uma belíssima imagem, tão incompreensível quanto sugestiva.
Olá
ResponderExcluirVou marcar este teu blog e espiar as tuas leituras sempre que puder.
Um grande abraço
Aguinaldo
Parabéns pelo blog. Excelente. Logo que eu puder voltarei pra embrenhar-me nele. Beijo
ResponderExcluirMaurice, adorando seu blog. Abracao, Michel
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