8.6.13

autoria ou afasia?


Em sua coluna de hoje (8/6/2013), no jornal O Globo, intitulada "Autoria ou afasia?", José Castello fez uma crítica muito elogiosa ao meu livro, “Memória da pedra”, que transcrevo aqui:

"Autores não dominam seus livros. Ainda que o fizessem, jamais conseguiriam controlar a leitura que deles fazemos. Leitores também não têm a plena posse de suas leituras. A literatura é um fantasma que se agita entre os escritores, seus originais e seus leitores. Experimentei esses sentimentos de desgoverno ao ler “Memória da pedra”, de Maurício Lyrio (Companhia das Letras). Alguns leitores ainda esperam que eu faça a “crítica” das ficções que leio. Mas o que se passa aqui é outra coisa. Elas, sim, me interrogam e me criticam. Vão mais longe: interrogam e criticam a cena literária que as produz e dentro da qual eu tento pensar.

Tento mais uma vez. A literatura brasileira contemporânea cultiva uma forte atração pela marginalidade. Obsessão pela violência, pelo submundo e pelas gangues, que se transformaram nos clichês de certa “cena local” brasileira. O marco original desse sentimento é, provavelmente, “Feliz ano novo”, o extraordinário livro de contos que José Rubem Fonseca publicou em 1975. Lá se vão quase 40 anos, mas o encantamento — como uma memória que se petrifica e embrutece — perdura.

Agora surge Mauricio Lyrio, um diplomata de 45 anos que, ainda que retido na mesma trama, dá um passo à frente. Sem abandonar a obsessão pela miséria, personificada pelo menino Romário, ele escreve para pensar. Seu protagonista, o professor de filosofia Eduardo, entrega-se cegamente (contra seus princípios) ao fascínio da pobreza. Nem a couraça filosófica o salva. Apesar de si mesmo, contudo, ele pensa.

Não será por acaso que a história narrada por Lyrio se passa nos anos 1990, a década em que Patricia Melo lançou “O matador”, Paulo Lins nos deu “Cidade de Deus”, Marçal Aquino se preparava para escrever “Cabeça a prêmio” e Dalton Trevisan, um renitente admirador da miséria e do desastre, acabava de publicar “Pão e sangue”. São livros emblemáticos, embora divergentes, que ditaram o fio sutil que, desde os anos 1990, desenha a face de certa “literatura brasileira internacional”.

O menino Romário sintetiza essa ambivalência: raivoso e sedutor, inteligente e debochado, ele atrai e repugna. Reflete, assim, a personalidade do próprio professor. Inteligente, mas disperso, o cerebral Eduardo é prisioneiro de seus impulsos interiores. Vive uma relação inconstante com a mulher, Laura, que compensa com suas lições de Filosofia Moral. Ele conhece o menino em um sinaleiro. Depois descobre que o garoto se esconde em uma toca nas paredes do Túnel Velho. Aquele refúgio de pedra é o inaceitável. Logo, uma questão filosófica se formula: acaso ou determinação?

Eduardo perdeu os pais ainda criança, em um acidente de automóvel. Para a polícia, o pai dormiu ao volante. Já o professor é perseguido pela ideia de suicídio, provocado pela descoberta de um câncer. A busca o aproxima do oncologista Gilberto e o leva a conviver com a cáustica Marina, sua mulher. Persegue a si mesmo.

Sem pensar, Eduardo decide levar o garoto para casa. Como abandonar o menino em uma cova de pedra? Romário se parece com um bicho: sequer sabe o próprio nome. Romário é só um apelido. Diante dele, também Eduardo é tomado por uma espécie sutil de afasia: não encontra palavras que digam o que faz. O irracional os conecta.

Na sala de aula, as meditações filosóficas do professor espelham suas dúvidas íntimas. Diz: “O ponto mais importante é saber se o que fazemos é determinado por elementos externos, fora do nosso controle, ou se é algo livremente escolhido”. Fala de si. Enquanto isso, através do professor, Maurício Lyrio fala dos impasses em que certa ficção brasileira contemporânea, desde os anos 1990, se embrenhou.

Eduardo procura sentidos literários para sua crise. Qual seria a diferença entre Smerdiakov e Ivan, os irmãos Karamazov? O professor vê nos personagens de Dostoievski “dois extremos da ideia de responsabilidade moral”. Smerdiakov, o assassino de Fiodor, atribui seu ato a fatores externos, que é incapaz de controlar. Não se reconhece como culpado. Enquanto isso, Ivan, “que não cometeu crime algum, apenas manifestou o desejo momentâneo de ver o pai morto”, arde de culpa pelo que não fez. Será Romário responsável por seus atos? Quando pensamos em um menino de rua, cabe pensar em responsabilidade moral? Quem toma para si a salvação do outro sabe, realmente, o que está fazendo?

Até que ponto um desejo obscuro (de salvação? de purgação?) move a literatura brasileira contemporânea? Mas até que ponto fatores extra-literários — os apelos do mercado, os valores da “literatura internacional” — movem, na verdade, nossos escritores? Do mesmo modo: que nome dar à obsessão de Eduardo por Romário? O que há de deliberado, o que há de impulsivo? O que o professor realmente deseja? O que move o próprio Lyrio?

Romário sente medo e sabe que deve “ficar frio e duro que nem o chão”. Transformar-se em pedra, ou não viverá. Mas transformar-se em pedra é uma maneira de viver? Eduardo segue o menino em uma viagem pela periferia. No Complexo do Alemão, avista um balão que “subia com uma lentidão sobrenatural, como se naufragasse no ar”. Defronta-se com a morosidade enervante do real, que não se modifica segundo nossos desejos. O real é como o corpo de sua mulher, Laura. Ela o vê como “uma continuação de si”, algo que “habitava e conduzia como uma entidade externa”. Se vemos a nós mesmos como estranhos, como suportar a presença do outro?

Eduardo admira em Laura seus preconceitos contra os arroubos e as paixões, mas ele mesmo é prisioneiro de uma ideia fixa. Afirma preferir a distância, como os quadros que Laura pinta, “entre o abstrato e o figurativo”. O fascínio do Eduardo pelo menino inverte, ainda, a frieza da vida acadêmica, com seus professores elegantes e impessoais. Salva o menino, ou salva a si mesmo? “Era difícil saber do outro, do que está encerrado no fundo da memória ou do sentimento como um quarto escuro”. Não só a memória, mas o desejo também é de pedra. Afásico, Eduardo martela o mundo, mas, apesar da bengala filosófica, não sabe o que busca. Ao criá-lo, Maurício Lyrio se afirma como autor e dá um passo à frente de seus contemporâneos."