4.5.11

esaú e jacó

Que Machado de Assis foi, senão o maior, um de nossos maiores escritores, e que os romances de sua fase madura são o que de melhor escreveu, não há o que questionar. Mas será “Esaú e Jacó”, o seu penúltimo romance, que ao lado do precioso “Memorial de Aires” marca a fase mais filosófica do autor, um livro à altura dos demais?
“Esaú e Jacó” não nos dá nem uma grande história nem uma boa filosofia. A trajetória dos gêmeos e de Flora é um tanto aborrecida, e as reflexões esparsas sobre o tempo, embora interessantes, são quase sempre pouco costuradas ou justificadas pelo contexto. Já quase no fim de sua brilhante carreira, Machado parece escrever sem entusiasmo, imaginação ou disciplina; seguro de seu brilho, solta a pena, opiniático e leve, sem o rigor das obras imediatamente anteriores.
A história é simples e começa bem, com uma mistura de enigma bíblico e de profecia trágica grega. O título já faz antecipar a suspeita, evocando a usurpação da progenitura de Esaú por Jacó, que a pitonisa/mãe de santo lançará com sua mensagem críptica: os futuros gêmeos serão grandes, mas por que parecem brigar já no ventre da mãe? A idéia de gêmeos brigando antes de nascer é provocadora, ainda mais quando cercada pela aura de mistério de um pronunciamento vindo de um oráculo em pleno morro. Pena que a história da rivalidade entre Pedro e Paulo, entre o monarquista e o republicano, e do amor pela mesma mulher, Flora, se arraste sem maior graça e acabe de modo pouco convincente com a morte da moça, marcada pela angústia de não querer amar nenhum dos dois por não poder renunciar a nenhum dos dois. A trama sustenta-se numa dúvida insustentável, a de Flora, que não sabe quem ama e morrerá por não saber.
Machado não encanta com a história nem com seus artifícios e reflexões, brilhantes em outros livros. Começa com a justificativa para o texto, que é confusa; o livro seria a parte final do “Memorial de Aires”, um de seus cadernos, embora o próprio Aires apareça retratado em 3a pessoa, como um personagem externo a ele mesmo, e não como narrador de um diário, como no próprio “Memorial”. “Esaú e Jacó” seria, segundo Machado, uma história “escrita como pensamento interior e único”, o que justificaria seu tratamento em separado, mas não a mudança ilógica do foco de narração.
Machado é mestre no estilo conversacional, na conversa com o leitor, mas em “Esaú e Jacó” as paradas freqüentes para o bate-papo enfraquecem a trama sem colocar algo único e indispensável no lugar. Na verdade, as reflexões e conversas sobre as dificuldades do contar, sobre a estrutura do texto, sobre a escolha de palavras e de capítulos mal esconde o desinteresse da trama. Machado parece tão desinteressado quanto o leitor, e foge a todo momento de seus personagens. O excesso de digressões leves e o tom zombeteiro soam como se a própria história e os personagens não fossem sérios ou merecessem a seriedade do leitor. O problema é que, ao contrário do que diz no livro, nem Machado pode sacralizar o banal. A idéia de que “a mesma banalidade na boca de um bom narrador faz-se rara e preciosa” tem seus limites. O preço que Machado paga pela leveza é o de personagens rasos, para usar a categoria de Forster. A leveza de Machado costuma ser sublime por alguns aspectos de seu texto, a começar pela recusa ao naturalismo descritivo (descrever é enfadonho, ele nos diz), mas a leveza torna-se trivial quando o autor não consegue dar densidade aos personagens ou às idéias.
Há momentos de gênio, no entanto, afinal um Machado menor é ainda um Machado. Basta lembrar a cena em que Aires diz que ajudará Flora e faz o contrário, recomendando a Batista que aceite a presidência de província: ele o faz por sadismo, ceticismo, frieza, sabedoria? Há algo de enigmático na cena, que proporciona um grande efeito. “Esaú e Jacó” traz ainda elementos importantes e recorrentes em toda a obra do escritor, como a desilusão sutil com a mesquinharia (do irmão das almas com sua esmola de mil réis; de Santos com seus parentes; do vendedor de gravuras), com a curiosidade (de Natividade e de Santos) e com o oportunismo político (de Batista e sua mulher Cláudia). Há também boas reflexões sobre o tempo e o nada, sobre o tempo que não pode ser capturado, sobre a imortalidade. Pena que nem estes brilhos esparsos do bom e velho Machado consigam dar vida ao livro.

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