19.5.11

diário de um fescenino


Rubem Fonseca é, ou foi, um grande escritor, pela agilidade de romances como “A grande arte” ou “Bufo & Spallanzani” e principalmente pelo caráter antológico dos seus livros de contos, de “Lúcia McCartney” e “Feliz ano novo” a “O cobrador” e “Romance negro e outas histórias”. Foi quem melhor retratou o Brasil urbano das últimas décadas e, em particular, a violência da sociedade e das relações, sempre com mordacidade e o melhor humor. A cada novo livro, era um prazer lê-lo, e a dúvida eventual sobre se se tratava de uma literatura fácil ou maior, derivada da enorme fluência da leitura, dissipava-se sempre, a cada passagem genial, a cada achado, na certeza de que se tinha diante dos olhos uma das obras mais impressionantes da literatura brasileira das últimas décadas.
Seus últimos livros não têm como apagar o passado, mas mostram como o escritor parece ter perdido o rumo e se acomodado com uma literatura menor. É difícil saber o momento de parar, seja pela esperança de retomar o gume, seja pelo embalo da notoriedade e da pressão dos leitores cativos.
Exemplo evidente dessa decadência é o “Diário de um fescenino”. Romance na forma de diário, conta a história de Rufus, o escritor em crise (já começa pelo clichê), que, na impossibilidade de avançar no seu bildungsroman, passa a escrever um diário em que vai registrando suas peripécias amorosas e seus comentários sobre sua obra e sobre a literatura em geral. De permeio, há encontros e traições com diversas mulheres (Henriette, Lúcia...), o romance duplo com mãe e filha (Virna e Clorinda), uma estadia no manicômio para fazer uma investigação, uma trama mal ajambrada de uma cilada e de uma acusação de estupro e muitas citações dos mais diversos autores e dele mesmo. Nada necessariamente bom ou ruim, não fosse a excessiva leveza, a displicência com que Fonseca concebeu e escreveu sua história. Sempre um excelente criador de diálogos, ele peca até nisso, embora se ironize de modo perfeito: “Estou treinando a forma dialogada de escrever. Tenho um bom ouvido, acho que estou indo bem, mas depois, na minha ficção, pretendo usá-la com extrema parcimônia. O diálogo é sabidamente um recurso de escritores medíocres.” Um pequeno exemplo de que o ouvido do autor não funcionou é esse diálogo entre Rufus e Lúcia, uma atriz:

            “-- Se você sabe a resposta, por que pergunta?
            -- Estou com uma raiva.
            -- Deixa essa cena para o palco.
            -- Seus livros dizem tudo. Você me diz uma coisa que me deixa encantada e de repente vejo que está num dos seus livros, igualzinho, faz parte do seu arsenal de torpedos velhos. Eles não explodem mais, entendeu?”

Ou a frase dita ao amigo Pedro Martins:
“-- Sou um espalhador de sementes. A civilização, esse processo evolutivo que sofremos, não deve corromper nossa pureza animal.”

Há um tom vulgar que acanalha o livro, como se vê claramente no capítulo sobre a separação de Rufus e Lúcia (10 de abril), e de modo geral na descrição das relações do protagonista com cada uma de suas amantes. Está lá o velho macho narcisista de sempre, tão constante em sua obra, mas o que falta dessa vez é um pouco de graça e sutileza para falar do grosseiro e do vulgar, uma das marcas mais características de Fonseca.
O melhor do livro são, afinal, os comentários bem humorados sobre os escritores e algumas citações divertidas:

''Conforme minha experiência, esses fãs que escrevem para os escritores são todos perigosos. Um sujeito certa ocasião me enviou uma carta dizendo que havia seguido o meu exemplo e abandonado o emprego e a família para se dedicar à literatura. O cara estava maluco, que família eu abandonei? Quem me abandonou foi a família. E que merda de dedicação é a minha? Cinco livros? As mulheres são ainda piores. Idealizam o idiota que escreve, se apaixonam por um mito, esperam que ele realize seus delírios alegóricos. Os escritores são maus amantes, maus amigos, más companhias.''
(...)
“-- Por que você se tornou escritor?
            A única resposta inteligente para essa pergunta é aquela do Montalbán, tornei-me escritor para ficar alto e bonito.”
            (...)
“Wilde tinha razão quando dizia “A man’s face is his autobiography. A woman’s face is her work of fiction.”

Fonseca chega mesmo a discorrer sobre a “síndrome de Zuckerman”, que ataca os que confundem personagem e autor, como outro judeu além de Philip Roth, Woody Allen, também exploraria com graça em seu “Deconstructing Harry”:

“Zuckerman é um personagem de Philip Roth, que decide escrever um livro. Quando o livro é publicado, o inferno de Zuckerman começa. Os leitores, ao se encontrarem com ele, fazem-lhe as piores acusações: Zuckerman, como você foi dizer aquela coisa horrível da santa sua mãe, Zuckerman, você é um homem mau, chamar o seu melhor amigo de ladrão; Zuckerman, você é um nojento, nunca pensei que fosse capaz de fazer aquelas coisas... Os leitores acreditavam que o personagem do livro era o alter ego do autor e que tudo o que ele dizia no seu livro se aplicava a ele e aos seus amigos e parentes, era o universo. (Roth descrevu a doença mas, na verdade, sempre demonstrou que estava cagando para os que acreditavam ser ele o alter ego de seus personagens. Porém são raros os escritores que pensam assim.) Todo leitor padece desse mal, mesmo aqueles que tem como profissão a crítica literária.”

O humor de Fonseca mal compensa a fraqueza do policial, a trama frouxa das traições. São momentos mordazes, mas hoje raros, que fazem lembrar remotamente o autor cortante que um dia escreveu contos que atingiram alguns dos pontos mais altos da ficção na literatura brasileira desde Graciliano, Guimarães e Clarice.

Nenhum comentário:

Postar um comentário