5.5.11

os Maias

“Os Maias” é, entre tantas coisas, um passar de olhos afetuoso e crítico sobre Portugal, talvez mais melancolicamente crítico do que abertamente afetuoso. Há sim um carinho pelas coisas natais, um elogio ligeiro da espontaneidade, uma ternura por algumas paisagens, como a de Sintra, muito mais do que a de uma Lisboa tão presente, mas o que ressalta no livro é o tom de auto-ironia, uma certa vergonha desavergonhada dos vexames locais, dos arroubos sentimentais, das brigas patéticas, da bagunça no meio público, da indolência, da desordem, sempre contra o pano de fundo das civilizações supostamente mais altas, da fleugma do estrangeiro, dos setentrionais, em especial dos ingleses, personificados em tantas figuras, como Craft, Clifford, a governanta Sara, e mesmo por esse admirador da Inglattera onde viveu, que é o avô Afonso da Maia, com todo o seu estoicismo e urbanidade.

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A descrição inicial que Eça de Queiroz faz do Ramalhete, residência dos Maias em Lisboa, é inegavelmente elegante, mas soa hoje, já quase um século e meio depois, um tanto “literária” demais, com muita adjetivação, algumas metáforas que perderam força e sobretudo uma atenção maior ao dizer do que ao dito. Está ali o gênio, mas um tanto datado nesse tipo de descrição. Há melhores metáforas na descrição dos Olivais, residência de campo que Carlos comprou de Craft para abrigar Maria Eduarda.
De qualquer modo, muito melhor é o reencontro final com o Ramalhete, quando Carlos Eduardo da Maia e João da Ega retornam, cheios de melancolia, apenas para uma última espiada no casarão fechado. Quando se trata da descrição de ambientes ou lugares, Eça brilha mais na melancolia do que na glória.

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O tema central do começo de “Os Maias” é a decepção de um pai ante o filho. Afonso da Maia vê em Pedro, desde a infância, um filho fraco, dependente, inseguro de si, e não o perdoará por isso, especialmente após o casamento de Pedro com Maria, a bela filha de um ex-traficante de escravos açoriano. O desprezo de classe pelo casamento inadequado se junta às expectativas frustradas ante um filho que não estava à altura do pai, orgulhoso e inflexível no seu amor condicional. É muita bonita a cena da volta do filho à casa paterna, depois da traição da mulher. Afonso decepciona-se uma vez mais e, após o suicídio de Pedro, irá consolar-se com a vivacidade do neto, Carlos Eduardo, que – sente com as próprias mãos de avô – restauraria a virilidade, a dignidade dos Maias. É muito triste a decepção final de Afonso com o destino implacável, que também arrastará Carlos Eduardo a uma paixão impossível.

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Afonso da Maia, sobre a educação do neto, Carlos, a seu cargo:
“O latim era um luxo de erudito. Nada mais absurdo que começar a ensinar uma criança numa língua morta quem foi Fábio, rei dos Sabinos, o caso dos Gracos, e outros negócios de uma nação extinta, deixando-o ao mesmo tempo sem saber o que é a chuva que o molha, como se faz o pão que come, e todas as outras cousas do universo em que vive...
            -- Mas enfim os clássicos – arriscou timidamente o abade.
            -- Qual clássicos! O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessário ser são, e ser forte. Toda a educação consiste nisso: criar a saúde, a força e seus hábitos; desenvolver exclusivamente o animal, armá-lo de uma grande superioridade física. Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois... A alma é outro luxo. É um luxo de gente grande...”

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Eça, sobre Carlos Eduardo da Maia, ou sobre tantos de nós:
“... suas ambições flutuavam, intensas e vagas; ora pensava numa clínica; ora na composição maciça de um livro iniciador; algumas vezes, em experiências fisiológicas, pacientes e reveladoras... Sentia em si, ou supunha sentir, o tumulto de uma força, sem lhe discernir a linha de aplicação. “Alguma cousa de brilhante”, como ele dizia; e isto para ele, homem de luxo e homem de estudo, significava um conjunto de representação social e de atividade científica; o remexer profundo de idéias entre as influências delicadas da riqueza; os elevados vagares da filosofia, entremeados com requintes de esporte e de gosto; um Claude Bernard, que fosse também um Morny... No fundo era um diletante.”

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E sobre João Ega, seu alter-ego, ou melhor, sobre “O Livro do Ega”:
“O Livro do Ega! Fora em Coimbra, nos dous últimos anos, que ele começara a falar do seu livro, contando o plano, soltando títulos de capítulos, citando pelos cafés frases de grande sonoridade. E entre os amigos do Ega discutia-se já o livro do Ega como devendo iniciar, pela forma e pela idéia, uma evolução literária. (...) Bacharéis, contemporâneos ou seus condiscípulos, tinham levado de Coimbra, espalhado pelas províncias e pelas ilhas a fama do livro do Ega. Já de qualquer modo essa notícia chegara ao Brasil... E sentindo esta ansiosa expectiativa em torno do seu livro – o Ega decidira-se enfim a escrevê-lo.”

Deveria chamar-se “Memórias de um Átomo”, “tinha a forma de autobiografia” e seria “uma epopéia em prosa”, “dando sobre episódios simbólicos, a história das grandes fases do Universo e da Humanidade”. A ironia de Eça...

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Que delícia a briga de impropérios e sopapos – mais impropérios que sopapos, é verdade – entre Ega e Alencar. De um lado, o jovem realista, iconoclasta; de outro, o velho lírico romântico. Mais deliciosa ainda, e a nós tão familiar, é a rápida reconciliação, calorosa e emotiva. E Craft, o inglês, só observa: “Já presenciara, mais vezes, duas literaturas rivais engalfinhando-se, rolando no chão, num latir de injúrias; a torpeza do Alencar sobre a irmã do outro fazia parte dos costumes da crítica em Portugal (...).”

“O autor de Elvira deu um passo, o autor das Memórias de um Átomo estendeu a mão; mas o primeiro aperto foi guache e mole. Então, Alencar, generoso e rasgado, exclamou que entre ele e o Ega não devia ficar uma nuvem! Tinha-se excedido... Fora o seu desgraçado gênio, esse calor de sangue, que durante toda a existência só lhe trouxe lágrimas! E ali declarava bem alto que Ana Craveiro era uma santa! Tinha-a a conhecido em Marco de Canaveses, em casa dos Peixotos... Como esposa, como mãe, Ana Craveiro era impecável. E reconhecia, no fundo da alma, que o Craveiro tinha carradas de talentos!....
Encheu um copo de Champagne, ergueu-o alto, diante do Ega, como um cálice de altar:
            -- À tua, João!
Ega, generoso também, respondeu:
            -- À tua, Tomás!
Abraçaram-se. Alencar jurou que ainda na véspera, em casa de D. Joana Coutinho, ele dissera que não conhecia ninguém mais cintilante que o Ega! Ega afirmou logo que em poemas nenhuns corrria, como nos do Alencar, uma tão bela veia lírica. Apertaram-se outra vez, com palmadas pelos ombros. Trataram-se de irmãos na arte, trataram-se de gênios!...”

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Mas o diálogo, e a vileza que ali está, não fazem justiça a este personagem extraordinário que é o poeta Alencar, tão intenso em sua relação com a vida, os amigos e a literatura. Basta citar uma passagem em que se exalta de modo tocante:

“-- Sempre queria que ele provasse este bacalhau! Já que me não aprecia os versos, havia de me apreciar o cozinhado, que isto é um bacalhau de artista em toda a parte!... Noutro dia fi-lo lá em casa dos meus Cohens; e a Raquel, coitadinha, veio para mim e abraçou-me... Isto, filhos, a poesia e a cozinha são irmãs! Vejam vocês Alexandre Dumas... Dirão vocês que o pai Dumas não é um poeta... E então, D’Artagnan é um poema... É a faísca, é a fantasia, é a inspiração, é o sonho, é o arroubo! Então, poço, já vêem vocês, que é poeta!... Pois vocês hão de vir um dia desses jantar comigo, e há de vir o Ega, hei de vos arranjar umas perdizes à espanhola, que vos hão de nascer castanholas nos dedos!... Eu, palavra, gosto do Ega! Lá essas cousas de realismo e romantismo, histórias... Um lírio é tão natural como um percevejo... Uns preferem fedor de sarjeta; perfeitamente, destapa-se o cano público... Eu prefiro pós de marechala num seio branco; a mim o seio, e, lá vai à vossa. O que se quer, é coração. E o Ega tem-no. E tem faísca, tem rasgo, tem estilo... Pois, assim, é que eles se querem, e, lá vai à saúde do Ega!”
Pousou o copo, passou a mão pelos bigodes, e rosnou mais baixo:
            -- E, se aqueles ingleses continuam a embasbacar para mim, vai-lhes um copo na cara, e é aqui um vendaval, que há de a Grã-Bretanha ficar sabendo o que é um poeta português!...”

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Afonso da Maia, sobre o português: “O português nunca pode ser homem de idéias, por causa da paixão da forma. A sua mania é fazer belas frases, ver-lhes o brilho, sentir-lhes a música. Se for necessário falsear a idéia, deixá-la incompleta, exagerá-la, para a frase ganhar em beleza, o desgraçado não hesita... Vá-se pela água abaixo o pensamento, mas salve-se a bela frase.”
O neto, Carlos da Maia, contesta: “(...) E resta saber por fim se o estilo não é uma disciplina do pensamento. Em verso, o avô sabe, é muitas vezes a necessidade de uma rima que produz a originalidade de uma imagem... E quantas vezes o esforço para completar bem a cadência de uma frase não poderá trazer desenvolvimentos novos e inesperados de uma idéia.. Viva a bela frase!”

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A menção ao sexo entre Carlos da Maia e a Condessa de Gouvarinho dentro de um coupé de praça nos faz lembrar a relação de Emma Bovary com seu amante Léon dentro de uma carruagem a toda carreira na Rouen de Flaubert. Mas Eça não quer, trinta anos depois, copiar o francês. Trata-se apenas de uma evocação, uma lembrança ligeira, que talvez seja uma homenagem a Flaubert e à cena marcante de seu romance.
Já sobre Victor Hugo, o que fica é o comentário do senhor Guimarães, quando indagado sobre o escritor francês por João da Ega:
            “-- Esse, meu caro senhor, não é um homem, é um mundo!”

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Apesar do humor, da vivacidade, da aparente leveza, Eça nos oferece, com “Os Maias”, uma visão desiludida e fatalista de Portugal, da vida em família, da vida. Por trás da elegância e da graça dos personagens, há o fio condutor da tragédia, recorrente, que se abate sobre Afonso, sobre Pedro, sobre Carlos, três gerações de uma mesma família. Eça ironiza a si mesmo com o elemento folhetinesco do livro, a paixão entre os dois Eduardos, Carlos e Maria, entre os dois irmãos que não se sabiam irmãos: “E agora, pouco a pouco, subia nele uma incredulidade, contra esta catástrofe de dramalhão.” Tudo está preparado para o final agridoce, mais amargo que doce na verdade, sintetizado na frase de João da Ega: “Falhamos a vida, menino!” É um final bonito e melancólico, como o livro todo.
Portugal também é visto com lentes da desilusão, uma autocrítica ligeiramente amarga. Fatalismo que está um pouco na alma portuguesa, como na dor do fado.
Pela construção – que contrapõe o peso da vida de Pedro à leveza da vida de Carlos –, pela elegância do estilo, “Os Maias” não é senão um grande romance. Se há algo que reprovar, são características próprias do período, do romance longo de então, à Balzac: talvez um excesso de personagens, a convivência com algumas figuras, como Taveira, Siqueira, que mal aparecem, só com um traço, uma referência, um gesto, dizem algo rápido e logo somem, deixando-nos a sensação de casa abarrotada em dia de festa, em que não conhecemos ou não nos interessamos por muitos dos convidados. Mesmo no Ramalhete, há pouco espaço para tanta gente.
A grande lição de Eça talvez seja o mot juste, a graça, a elegância do escrever, que pode transformar uma banalidade em algo sublime. Eça é um mestre na pintura de reuniões sociais, na criação de tiradas, em seu humor fino e iconoclasta. É menos genial no retrato do amor: basta ver como são convencionais a declaração e o primeiro beijo entre Carlos e Maria Eduarda. 

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O alter-ego de Eça é, naturalmente, João da Ega, esse personagem efervescente. Espirituoso, brilhante, corrosivo, Ega tem todo o potencial para o gênio e a glória, mas dispersa-se na indolência e no prazer da vida, afinal tem mais vocação para a crítica cortante do que para a criação laboriosa. Nada escapa à sua iconoclastia: ele pode até defender a escravatura. É um talento perdido, como o de Carlos também, indeciso entre a medicina e as letras, entre o berço e o trabalho. Quando lhe perguntam por que não entra para a diplomacia portuguesa, Ega responde: “Por fim, em que consistia a diplomacia portuguesa? Numa outra forma da ociosidade, passada no estrangeiro, com o sentimento constante da própria insignificância. Antes o Chiado!”
Esse Ega muito mais emotivo que racional está na paixão pela Cohen, nas brigas com Alencar, na amizade por Carlos. É o que explica sua reação um tanto carola, nada iconoclasta, quando sabe do incesto inconsciente entre Carlos e Maria.
Fica aqui uma passagem que dá bem uma idéia de João da Ega:

“(...) Depois, no corredor, confessou a Carlos que, antes de ir ao Espanhol, queria correr ao Fillon, ao fotógrafo, ver se podia tirar um bonito retrato.
            -- Um retrato?
-- Uma surpresa que tem de ir daqui a três dias para Celorico, para o dia de anos de uma criaturinha que me adoçou o exílio.
            -- Oh, Ega!
            -- É horroroso, mas então? É a filha do Padre Correia, filha conhecida como tal; além disso, casada com um proprietário rico da vizinhança, reacionário odioso... De modo que, bem vês, esta dupla peça a pregar à Religião e à Propriedade...
            -- Ah! Nesse caso...
            -- Ninguém deve eximir, amigo, aos seus deveres democráticos!”

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