4.5.11

no caminho de Swann


Não é trivial escrever sobre uma obra complexa como "Em busca do tempo perdido", de Marcel Proust, procurar identificar o sublime e o novo, e ao mesmo tempo ter a consciência de que tanto já foi dito e nem por isso será possível esgotar sua riqueza.
Para Proust não é só a literatura que é uma criação do intelecto. Também a vida é uma espécie de representação mental, apreendida e criada pelos sentidos, pelas idéias, pela memória. Como diz Marcel, o narrador de “Du Côté de Chez Swann” (“No caminho de Swann”, o primeiro livro da Recherche), “celle de toutes les diverses vies que nous menons parallèlement, qui est la plus pleine de péripéties, la plus riche en épisodes, je veux dire la vie intellectuelle”. A realidade nunca parece ser vivida diretamente, mas sim por meio da interpretação que dela fazemos. As sensações e as reminiscências estão acima dos fatos, da cronologia usual, do aparentemente real e importante: a morte da tia Léonie pode ser contada “en passant”, como lembrança dos passeios de outono, ao passo que seus gestos insignificantes podem ser esquadrinhados como jóias, pelas marcas que deixaram na memória. O efêmero e a lembrança constituem realidades.
Se para Oscar Wilde a vida deve ser vivida como arte, para Proust a vida é apreendida por meio da arte. A arte é um espécie de código de leitura e de relação com a vida, sua realidade última. O Marcel narrador descreve seus personagens por meio de quadros, como a duquesa de Guermantes, enquanto Swann acha Odette bonita quando a vê como personificação de uma figura de Boticelli. Há em Marcel algo de Madame Bovary, no sentido de que a interação com a vida é intermediada por modelos, ou seja, é preciso uma idealização prévia, uma chancela da arte, para se amar o real. Por si só, Odette não desperta o desejo carnal de Swann; terá de intervir a pintura. A realidade decepciona, mas a imaginação e a memória fazem-na mais atraente.
Nabokov vê razões mais concretas e sexuais para a maneira como Proust constrói seus personagens. As pinturas como modelos de leitura da vida servem para esconder seu desejo pelo corpo masculino e sua indiferença pelo feminino. A evocação das obras, evitando a descrição direta, mascarava sua homossexualidade e, portanto, sua inabilidade em descrever os encantos de uma mulher.
Independentemente das razões do autor, o fato é que a arte “concebe” a vida, e não o inverso. O exemplo mais contundente desta inversão é o amor de Swann por Odette, que deriva em grande medida do estado amoroso proporcionado pela frase musical que ele adora e que reaparecerá diversas vezes. O poder da arte é tal que somente ela pode redimir a morte e o nada, como na belíssima passagem sobre o poder encantatório da música: “Peut-être est-ce le néant qui est le vrai et toute notre rêve est-il inexistant, mais alors nous sentons qu’il faudra que ces phrases musicales, ces notions qui existent par rapport à lui, ne soient rien non plus. Nous périrons, mais nous avons pour otages ces captives divines qui suivront notre chance. Et la mort avec elles a quelque chose de moins amer, de moins inglorieux, peut-être de moins probable.”

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O tema central da “Recherche” é o tempo. O tempo como matéria, não-cronológico. Como diz Nabokov, “the whole is a treasure hunt where the treasure is time and the hiding place the past.” Daí a importância da memória como fonte direta dos sentimentos, quase sempre induzida pelos sentidos e o contato com um objeto, como se um espírito do passado habitasse as coisas e pudesse ser recapturado. Os momentos mais intensos dos personagens são aqueles em que uma sensação se tranforma em sentimento, em que um estímulo sensorial desperta uma lembrança, uma imagem, como a madeleine de Marcel ou o tema musical de Swann. A memória não é apenas o motor da arte; é o substrato da realidade. Não surpreende que o quarto de infância de Marcel seja uma plataforma para o mundo vivido, o começo do mundo.
Esse mundo mental, auto-referente, vai além das imagens. É também o mundo das palavras. O nome do país, da cidade, é a própria fonte do lugar, melhor e mais vivo do que o país ou a cidade reais. Não há por que ir ao Champs Elysées se o Champs Elysées não foi lido nos livros, se não houve seu cultivo prévio por meio da imaginação.
Há muitos outros temas recorrentes em Proust. Ele disseca o amor maduro e o amor jovem, o ciúme como o duplo do prazer. Se “Combray” é um tratado sobre a memória, a infância e os sentidos, “Um amor de Swann” é um tratado sobre o amor e o ciúme. Proust é um obcecado do amor não correspondido. A base é o amor furtivo da mãe, representado pela angústia do pequeno Marcel à espera do beijo de boa noite. À maneira de Freud, Proust trata da questão da transferência do amor da mãe para outros. Tanto em Swann como em Marcel, a fugacidade do amor materno fundador será refletida na inapreensão do amor maduro, respectivamente de Gilberte e Albertine, em ciclos recorrentes de amor e ciúme, como temas musicais que se alteram um pouco, mas sempre retornam na sua essência.
Os personagens em Proust são vistos de múltiplos ângulos, de vários olhares, Odette, Swann, Vinteuil. Nunca são apreendidos de forma direta ou plena. A imagem social de uma pessoa é uma ilusão formada a partir de uma meia-memória, um meio-esquecimento (mi-mémoire, mi-oubli). Vemos os outros sempre por meio de outros. Talvez por isso alguns deles sejam memoráveis: a avó doce e debochada pela família; a tia-avó Léonie, esperando uma tragédia que a tornasse heroína; Françoise e sua mesquinharia; Legrandin e seu cretinismo; M. Vinteuil apequenado socialmente pela escolha sexual da filha.
Embora o retrato dos personagens seja quase sempre um sofisticado trabalho de construção psicológica, Proust também pode ser cáustico ao ponto da caricatura. Edmund Wilson atribui essa tendência à forte influência da obra de Dickens sobre Proust, que não escondia sua admiração pela literatura inglesa e norte-americana de maneira geral. Caricaturais não são apenas os Verdurin, que servem como contraponto para acentuar a angústia e a humilhação de Swann, mas personagens como Odette, cujos gostos risíveis traem certa misoginia do autor. Mesmo em seu momento cáustico e caricatural, Proust nunca deixa de ser brilhante como retratista.
E dessa genialidade ficam cenas inesquecíveis: a aflição inicial pelo beijo da mãe, a espera da camponesa, o encontro com o tio da prostituta (Odette), a visão da duquesa de verruga, os jantares de Verdurin, a angústia de Swann na noite, o seu amor torto (“l’idéal est inaccessible, le bonheur, médiocre”) e a sua desgraça por ter desperdiçado a vida ao amar quem não merecia, o sombrio no concerto na casa da Marquesa de Saint-Euverte, a aproximação de Gilberte e Marcel, o presente, o chamar-se pelo primeiro nome. São todas cenas de puro virtuosismo. Proust pode abdicar do encadeamento linear dos fatos, do suspense e da atração do leitor pela mera expectativa do acontecimento. Sua narrativa é circular, anti-climática e por isso ainda mais genial. O que prende não é o suspense, mas o sublime. Sua prosa reflete uma combinação de sensibilidade estética e de sofisticação de análise poucas vezes igualada na literatura.

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