11.5.11

cidade de vidro

Não sei se esperava demais – pela crítica quase sempre favorável a Paul Auster e pela alegada ousadia do autor no tratamento dos romances policiais - mas o fato é que o li “City of Glass” (“Cidade de vidro”) com leve gosto de desilusão, com a sensação de uma expectativa traída. O livro é facilmente legível, traz algumas boas iéias sobre identidade e autoria, diverte às vezes, mas talvez não ofereça muito mais do que isso. A legibilidade de Auster parece derivar de pouco caso: a impressão é de um texto construído sem grande esmero, de partes artificialmente amarradas, com soluções inverossímeis.
Daniel Quinn é um escritor renomado que, após perder a mulher e o filho, resolve abandonar sua obra e identidade. Torna-se o escritor de romances policiais William Wilson, mais interessado em vagar por Nova York do que em cultivar círculos sociais ou literários. Atende o telefone um dia – é engano, chamada para o detetive Paul Auster – mas resolve assumir a identidade e a tarefa que pedem a Auster: proteger um ex-“menino-lobo”, ameaçado de morte pelo pai, um teólogo desequilibrado que isolara o filho do mundo e da linguagem. Para o pai, a mensagem de Deus lhe chegaria pela boca do filho, numa língua especial, caso o menino não fosse contaminado pela linguagem dos homens. Quinn/Wilson/Auster, não satisfeito com ter assumido várias identidades, passa também a viver o papel dos personagens de seu caso.
Caso que, na verdade, não se resolve. Mal se sabe o que aconteceu: apenas que o pai teólogo acabou se matando e que o filho perseguido desapareceu. Não interessa. O que interessa para Auster é construir um jogo de espelhos de identidades, em que o escritor já duplo assume traços das personalidades envolvidas na história. Acontece a Quinn o que Auster lembra ter acontecido a Quixote: o desejo de assumir o papel dos cavaleiros que renegava nos romances de cavalaria. O autor/personagem assume novas identidades, para desmoralizá-las ou não.
Auster joga também com a vertigem da autoria. Quem narra, em terceira pessoa, é um conhecido de Quinn e do personagem Paul Auster, que também aparece no livro (não é detetive, mas o próprio escritor). Ocorre que a figura do narrador, comentando a dificuldade de contar a história, só intervém ao final, como se até então a narrativa fosse neutra, irrefutável, e, a partir de então, enigmática, ardilosa, já que o quarto limpo com o caderno no meio não parece ter abrigado um Quinn recluso, isolado, mimético do menino-selvagem Peter Stillman. Não será, portanto, este aparente narrador o próprio Quinn, assumindo nova identidade, após ter forjado a história do Quinn ermitão? É um jogo vertiginoso, em que a identidade do autor passa de personagem a personagem (Auster, Quinn, Wilson, Auster, Stillman, narrador, Quinn…), e não parece ter fim ou sentido.
Será esta uma construção genial do autor? Uma história em que o escritor assume a personalidade daqueles a quem costuma dar vida, dos próprios personagens, numa reversão dos papéis tradicionais, em que o autor apenas dá vida aos personagens, sem tomá-las de volta?
Talvez sim, se Auster não tivesse de fazer tantos malabarismos, tantos esgarçamentos da narrativa, que retiram a consistência e a credibilidade da trama. Incomoda a freqüente inverossimilhança das soluções: o tempo irreal da entrevista com o menino Peter Stillman, por exemplo, ou a espreita meses a fio, no beco, quase sem sono ou comida, sem higiene alguma, como bicho, do até então razoavelmente normal escritor/detetive. Mais do que inverossímeis, soluções como esta soam tolas: bastaria que Quinn subisse ao apartamento do cliente para saber se tudo estava bem. Não é o que ocorre porque a espreita sem sentido é um artifício usado por Auster para justificar a posterior reclusão de seu personagem, que repete a experiência de seu cliente. A essa altura, Auster abandona a verossimilhança e cria um mundo de enigmas e perguntas sem resposta: o novo recluso é alimentado sabe-se lá por quem (uma mão invisível) e vai perdendo a luz do dia sabe-se lá como.
A verossimilhança é uma das bases do gênero romance e das principais formas de narrativa, do conto ao cinema. Ao suplantá-la é preciso estabelecer um corte radical com as expectativas que se têm ante uma trama tradicional, o que foi feito com brilho por autores como Lewis Carroll ou Kafka. O abandono apenas parcial e seletivo do rigor da verossimilhança pode parecer, em contrapartida, um arremedo, principalmente se é lido como um instrumento incidental do autor para adaptar a realidade da história às suas idéias. Soa falso quando o escritor renuncia à disciplina de construir uma aparência de realidade, a verossimilhança, somente nas situações e momentos em que não consegue estabelecer cursos da ação que sejam ao mesmo tempo consistentes com suas idéias e verossímeis como narrativa. Na literatura, talvez possam prosperar tanto a fidelidade à verossimilhança quanto a sua destruição deliberada, mas dificilmente o seu abandono parcial por incapacidade de mantê-la do começo ao fim.
Outro artificialismo na narrativa de “City of Glass” é a introdução de digressões eruditas. Os casos dos homens lobos, o Novo Mundo, as passagens bíblicas e as reflexões teológicas, as intenções de Quixote e Cervantes, tudo parece sobressair como um corpo estranho, como enxertos didáticos e injustificados dentro do romance. Também chamam a atenção alguns clichês: Quinn gosta de olhar as formas criadas na fumaça do cigarro pela luz que entrava; a mulher do cliente beija o suposto detetive para provar não ser frígida, como deixara transparecer seu marido; Quinn quer proteger o jovem Stillman como vingança pela morte de seu próprio filho. E a apelação, de gosto duvidoso: Quinn sentado ao vaso e recebendo uma chamada telefônica no momento em que um “turd” (um “cagalhão”) era excretado.
Ainda assim, Auster intriga. Menos pela história ou pelo estilo do que pelo impulso de fazer metaliteratura.

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