27.8.11

manuscrito encontrado numa garrafa


Edgar Allan Poe é quase sempre hiperbólico no que escreve, o que, no seu caso, é antes uma virtude do que um defeito. Poe carrega na adjetivação, no uso de imagens e metáforas extremas para expressar o que está no limiar. Isso é particularmente perceptível nos seus contos que envolvem fenômenos da natureza que estão na fronteira do sobrenatural, ou já a ultrapassaram, como no exemplo de “A Descent into the Maelström” (“Uma descida no Maelstron”), já resenhado aqui.
Outro conto nessa linha é “Ms. Found in a Bottle” (“Manuscrito encontrado numa garrafa”), com que Poe, iniciando-se como contador de histórias, ganhou um prêmio de US$ 50 do “Baltimore Saturday Visitor”, em 1833. O narrador relata sua estranha experiência nos mares do sul. Seu navio, que partira de Java, é atingido por uma espécie de furacão de espumas, que mata todos os seus tripulantes, menos o narrador e um velho sueco. O navio será levado ainda mais em direção ao sul, à noite de um pólo navegável e onde, durante meses, não se pode conhecer o dia. Mais tarde, o navio entrará em novo redemoinho e, ao chocar-se com outra embarcação muitas vezes maior e mais pesada, o narrador acabará por cair nesse outro barco. A história centra-se na natureza misteriosa desse segundo navio, fantástico e antigo, onde tudo e todos são muito velhos, os tripulantes, os instrumentos, a madeira, o próprio navio, que faz lembrar um galeão espanhol de séculos anteriores. Os tripulantes, como fantasmas de outro tempo, não percebem a presença do intruso, que com eles não tem como interagir e limita-se a registrar em seu diário, no “manuscrito encontrado numa garrafa”, sua perplexidade, suas experiências e mais um abismo, agora de gelo, em que o navio misterioso sucumbirá.
Não é um conto à altura de “A Descent into the Maelström”. Não há em “Ms. Found in a Bottle” um evento único, cristalizador da história, mas uma sucessão de furacões e redemoinhos, o que fragmenta um pouco a narrativa e mina a própria credulidade do leitor, posta à prova a cada nova peripécia. Mistura-se o “sobrenatural” da natureza (os furacões, os redemoinhos, o pólo sul navegável) com o “sobrenatural” do homem (a sobrevivência do narrador, a tripulação fantasma) e o que se tem é um acúmulo de mistérios sem respostas, num conto que é sobretudo uma coleção de perguntas. Perguntas que, como todas as hipérboles de Poe, e apesar do charme das suas histórias, são sempre feitas com pontos de exclamação.

12.8.11

os ratos

Um homem – um funcionário público tão medíocre quanto sua vizinhança curiosa – tem um dia para conseguir os 53 mil réis que deve ao leiteiro, sem o que a mulher e o filho pequeno deixarão de receber, já no dia seguinte, o leite diário. Naziazeno é o seu nome e ele percorrerá as ruas da cidade, os conhecidos dos bares, a ante-sala do chefe na repartição, em busca da ajuda que o salve. Ao longo do dia, acreditará em soluções, ganhará e perderá na roleta, ouvirá sobretudo evasivas, ponderações, admoestações. Ao fim do dia, depois de tantas idas e vindas, de tanto cansaço nas pernas e humilhação no peito, um “esquema” que combina empréstimos de terceiros e penhor de um anel de um conhecido o salvará provisoriamente, para que novos dias longos e extenuantes como aquele possam reproduzir-se novamente. Para que novamente ele possa percorrer as ruas da cidade como um pequeno roedor em busca de migalhas, e chegar em casa com a tarefa cumprida, na hora certa para perder o sono e ouvir passinhos miúdos de ratos no forro do assoalho, prontos para roer o parco dinheiro duramente conquistado.
Essa é a história de “Os ratos”, esse romance angustiante de Dyonelio Machado. Não há muito prazer na leitura. A narrativa é tão desadornada, e a língua tão árida, quanto a jornada de Naziazeno. Não há adereço ou beleza, um parágrafo que impressione, tudo é miúdo e mesquinho como a moeda esparsa sobre o pires de café na mesa de cada bar que ele freqüenta. Dyonelio escreve sua história circular, seu mito de Sísifo, em que o herói vai e vem pelas ruas da cidade atrás de cada ilusão frustrada, como se percorresse um labirinto de ratos, com os passos incessantes e inúteis. A vertigem da humilhação, da alma aviltada, é especialmente bem retratada nos capítulos finais, em que o autor quebra a narrativa linear e a confunde com as lembranças cortadas e as alucinações de um Naziazeno siderado e insone. É a degradação final de um homem sitiado por ratos imaginários, por suas próprias misérias.

2.8.11

diário de um louco

Lu Xun (1881-1936) foi um dos maiores escritores chineses do século XX. Sua inteligência e aguda compreensão da realidade, sua projeção como intelectual íntegro e engajado, sua habilidade no conto e no ensaio são algumas das características que o notabilizaram. Nos anos vinte e trinta, período extremamente conturbado da história da China, Lu Xun foi uma referência de integridade, um dos homens mais admirados e respeitados pelo povo chinês.
Foi com alguma curiosidade que li seu “Diary of a Madman” (“Diário de um louco”), um conto de 1918, traduzido por William A. Lyell. Curiosidade por toda a riqueza de ressonâncias e referências que o título evoca: “Diary of a Madman” é também um belo conto/novela de Gogol, um filme com Vincent Price e um disco de Ozzy Osbourne, se é possível associar gêneros e artistas tão distintos numa mesma frase.
À semelhança do texto de Gogol, o conto de Lu Xun é a narrativa em primeira pessoa, na forma de diário, de um homem que vai revelando aos poucos seu desequilíbrio. Ele crê progressivamente que as pessoas que o cercam são canibais, prontos a executar o plano de matá-lo e degustá-lo. Há algo de Edgar Allan Poe na construção que revela aos poucos, com certo grau de morbidez, o desequilíbrio mental onde parecia haver lucidez e indignação, mas sem o brilho ou ao menos o frescor de Poe e Gogol, que escreveram quase um século antes. O melhor do conto são alguns passagens com frases curtas e cortantes, interpostas no meio da narrativa, que ao mesmo tempo quebram e dão um sentido de urgência a história: “Pitch black out. Can’t tell if it’s day or night. The Zhao family’s dog has started barking again. Savage as a lion, timid as a rabbit, crafty as a fox…” ("Breu lá fora. Não dá para dizer se é dia ou noite. O cachorro da família Zhao começou a latir de novo. Selvagem como um leão, tímido como um coelho, astuto como uma raposa..."). Ou quando o protagonista é encarcerado pelo próprio irmão, “The sun doesn’t come out. The door doesn’t open. It’s two meals a day.” (O sol não aparece. A porta não abre. São duas refeições por dia.")
São pequenas peças de lucidez e concisão, que não chegam a fazer do conto uma história memorável, mas dão uma graça à agonia mental do protagonista.   

23.7.11

o poder e a glória


A vida de Graham Greene parece ter sido tão extraordinariamente conturbada e internacional quanto os personagens e os cenários de seus livros. Os casos de adultério, as viagens, sua relação com o catolicismo, com o socialismo, sua busca do exótico, seu papel como espião inglês, seus problemas com o fisco, suas manias, sua angústia, tudo parece demasiado para uma única vida.
Até o anedótico em Greene intriga, como o fato de que esse homem de vida tão intensa se dava ao luxo de estipular o número de palavras que escrevia diariamente, como um cozinheiro desocupado a contar o número de grãos de arroz no prato de comida que prepara. Diz-se que, ao concluir o romance “A Burnt-Out Case”, Greene mandou um telegrama a uma amiga em que dizia, “FINISHED THANK GOD 325 WORDS SHORT OF ORIGINAL ESTIMATE” (TERMINADO GRAÇAS A DEUS 325 PALAVRAS MENOS DO QUE O PREVISTO).
A estranha mania com os números me soa tão humana e familiar, que só engrandece a figura de Greene. Li, com admiração, seu “The Power and the Glory”, onde aparece esse personagem genial do padre sem nome, angustiado com seus próprios pecados. Como o título sugere, o romance mistura dois dos temas favoritos de Greene, sobre os quais teria produzido seus melhores livros: política e religião. A mistura neste caso é conflituosa: o Governo de uma província no sul do México, no período anti-clerical dos anos 30, tenta eliminar o catolicismo e seus pregadores. Um policial inflexível, movido pelas idéias de revolução social e de supressão de uma religião anestesiante, persegue o último padre, um padre dilacerado por seus dois pecados, o alcóol e uma filha concebida numa noite de fraqueza. O fervor e o fanatismo do perseguidor nascem na ideologia; a dúvida e a falibilidade do perseguido germinam em meio à religião.
Greene conta a história de uma fuga para o nada. Como a religião que cultiva, a sobrevivência é para o “whisky priest” um hábito, uma tarefa que persegue sem convicção. Os pecados do padre o desencontraram de Deus. Ele mais teme do que crê no alto. Receia a morte como momento de danação e persevera na vida pelo inércia do ofício religioso e pelo pavor de prestar contas a Deus. O padre, a quem Greene não dá nome, não tem pouso em que possa descansar: na terra, tornou-se indesejado, já que o policial ameaça de morte os que souberem de seu paradeiro e não o revelarem; no céu, o espera a punição.
Esse padre criado por Greene é um personagem interessantíssimo; complexo, profundo, “round” como classifica Forster. Greene o constrói com a ambigüidade necessária: lhe é crítico, mas lhe dá humanidade. O padre não é um mero violador de uma religião perfeita e sagrada, que por isso deve pagar caro. O autor não o condena, da mesma maneira que não idealiza o catolicismo ao qual se havia convertido anos antes.
Greene é um mestre na criação de cenas envolventes, o que talvez explique sua incomum popularidade para um grande escritor. O livro, embora curto, tem pelo menos três momentos memoráveis. O primeiro é o cerco do vilarejo em que mora a filha do padre. Além do encontro dilacerante e passional com sua criação, o padre é inquirido pelo policial pela primeira vez, mas não é identificado. O segundo momento é o da compra do vinho e do desespero ante seu consumo inusitado por seus inimigos políticos. A impotência do padre comove. O terceiro é o de sua prisão como portador de álcool. A noite na cela infecta e abarrotada e a perspectiva de sua revelação são de uma angústia rara. Sua captura, por fim, é anti-climática, prevista pelo leitor e pelo próprio padre, que suspeitava da traição do mestiço que o perseguira. E Greene, com uma bela elipse e pelos olhos de um antigo conhecido do padre, nos faz acompanhar de longe a execução final.
Graham Greene domina com tanto desembaraço as técnicas de criação, que se permite criar personagens e tramas secundárias que não desenvolve, apesar de despertar a curiosidade do leitor. O que aconteceu com a família Fellows e, em particular, com a menina Coral, que dera abrigo ao padre e prometera vingança contra os perseguidores? E Mr. Tench, o outro inglês, partiria de vez do México? E que fim teria a filha do padre, tão interessante quanto Coral na sua precoce maturidade de 6 ou 7 anos? Principalmente as mulheres, as crianças fortes e enigmáticas de Greene, fazem o leitor perguntar por seu futuro, embora ele não responda.
Greene não é um escritor ousado estilisticamente. Mas escreve com sofisticação, seja pela agudeza com que disseca a psicologia torturada de seu protagonista, seja pela qualidade das metáforas que cria. Seu humor para imagens é precioso, como por exemplo na descrição do dentista Tench observando a boca cariada do chefe de polícia: “He stared moodily into the mouth as though a crystal were concealed between the carious teeth.” Ou na resignação do padre diante da morte: “He felt like someone who has missed happiness by seconds at an appointed place.”
O pecado do autor é seu indisfarçado preconceito etnocêntrico. O México de Greene não é um país; é o inferno. Corrupto, paupérrimo, sujo, povoado por sujeitos ignorantes e doentes. O clima e a paisagem são inóspitas. A beleza, inexistente. O México é personificado na figura do mestiço que engana e denuncia o padre: é um sujeito ardiloso, mesquinho, sem dentes e com febre.
Caricaturas à parte, John Updike talvez tenha razão ao julgar “The Power and the Glory” o melhor romance de Graham Greene.

18.7.11

fim de jogo


“Final del juego” é um conto de Cortázar em que três meninas – supostamente irmãs, vivendo com a mãe, a tia e o gato – têm como “reino” os fundos da casa, onde praticam o jogo de se fingirem de estátuas e de encenar “atitudes” (estados de espírito) para os passageiros do trem que passa sempre à mesma hora. São elas Letícia, a mais velha e mais meiga, com uma espécie de paralisia infantil que imobiliza as costas; Holanda e a narradora, ambas cúmplices na picardia, na energia e na graça que Letícia parece não ter.
Cortázar mostra-nos a vida familiar das meninas com uma verossimilhança psicológica e uma precisão de voz (da narradora em primeira pessoa) que comovem. Pela maldade das meninas com o gato, pelo desprezo pela mãe e a tia, faz-nos prever um jogo perverso e trágico, para na verdade mostrar apenas que se trata de personagens com os sentimentos, as fraquezas e a complexidade de qualquer jovem.
O jogo e a maneira como as três meninas o praticam – alternam-se sorteando quem será a imitadora da vez e o que encarnará – formam o centro do conto. Tudo se precipita quando um passageiro (um estudante) passa a lançar bilhetes da janela, comentando as estátuas e atitudes. Mostra-se particularmente fascinado por Letícia – “la más linda es la más haragana” (preguiçosa) – cuja deformidade se escondia na imobilidade das estátuas. Chega a pedir para encontrá-las, mas é recebido somente por Holanda e a narradora, já que Letícia não quer revelar-se na frente dele. É desse fascínio do menino por Letícia e do ciúme que provoca nas outras duas que nasce a tensão e a força da história.
O final é tão bonito quanto o resto do conto. Letícia faz chegar uma carta ao menino explicando sua condição e, como numa despedida do jogo, faz um gesto triunfal, catártico: “levantó los brazos como si en vez de una estatua fuera a hacer una actitud, y con las manos señaló el cielo mientras echaba la cabeza hacia atrás (que era lo único que podia hacer, pobre) y doblaba el cuerpo hasta darnos miedo. Nos pareció maravillosa, (...). No sé por qué las dos corrimos al mismo tiempo a sostener a Letícia que estaba con los ojos cerrados y grandes lacrimones por toda la cara.”
Ariel, o menino, a viu assim, uma vez mais, e no dia seguinte “cuando llegó el tren vimos sin ninguna sorpresa la tercera ventanilla vacía, y mientras nos sonreíamos entre aliviadas y furiosas, imaginamos a Ariel viajando del otro lado del coche, quieto en su asiento, mirando hacia el río con sus ojos grises.”