4.5.11

o gato preto

Há muita semelhança entre “The Black Cat” e “The Tell-tale Heart”, ambos contos de terror de Edgar Allan Poe. São histórias de mortes violentas contadas em primeira pessoa pelo assassino, um personagem que revela aos poucos – sem nunca admiti-lo – o seu próprio desequilíbrio mental ou emocional. Ambos escondem suas vítimas na estrutura de uma casa (em baixo do assoalho ou numa parede do sótão), ambos serão traídos e denunciados em parte por seu desequilíbrio, em parte pela vingança fantasmagórica de suas vítimas.
“The Black Cat” é o mais autenticamente sobrenatural dos dois contos, já que em “Tell-tale Heart” as batidas do coração do corpo enterrado não são necessariamente um dado da realidade descrita no conto, mas alucinações do psicopata-narrador. O que há de sobrenatural em “The Black Cat” é o gato preto mesmo, afeiçoado ao seu dono, e logo por ele odiado, brutalmente maltratado – com a extração de um olho – e enforcado. O gato, reencarnado em um sósia também de um olho só, se vingará de seu assassino ao supostamente induzi-lo a outro crime, ainda mais bárbaro – o de sua própria esposa – e ao desmascarar a tentativa do criminoso de cimentar o corpo numa parede do sótão. Neste caso, ao contrário do que ocorre no outro conto de Poe, a descoberta do corpo não decorre do desespero e da loucura do assassino-narrador, mas de um elemento de mistério e horror, a ação diabólica do gato, que também se enterra na parede e denuncia com um grito pavoroso e infernal o lugar do corpo.
Mais do que a vingança sobrenatural do gato preto, o que impressiona mais no conto é a trajetória de perversidade do assassino, o seu lento envolvimento com o vício, a maldade, a morte, como na descrição que ele mesmo faz do enforcamento do gato: “One morning, in cold blood, I slipped a noose about its neck and hung it to the limb of a tree;  – hung it with tears streaming from my eyes and with the bitterrest remorse at my heart;  – hung it because I  knew that it had loved me, and because I felt it had given me no reason of offence (...)”

madame Bovary

O que dizer de um romance como “Madame Bovary” e do estilo de um escritor como Flaubert? Talvez a melhor definição seja a de Nabokov, que no começo de sua aula sobre o livro diz tratar-se de prosa que faz o que a poesia deveria fazer.
Flaubert escreve como muito poucos. Entre os grandes do século XIX, não tem o pendor profético que Forster identifica em Dostoiévski, mas domina o texto como ninguém. Constrói a história e faz prosa poética talvez sem concorrente à altura no período. É, ao mesmo tempo, o profissional da ficção, que leva o ofício de escrever ao paroxismo da disciplina, e o gênio da palavra, pela sofisticação com que combina sentido e som.
E “Madame Bovary” é uma história revolucionária, para seu tempo e além. Não surpreende que Flaubert tenha sido processado por causa do livro, embora pelas razões menos interessantes: a suposta “pornografia” do autor, a obscenidade da trama do adultério e, talvez mais do que tudo, a ousadia de uma personagem como Emma Bovary, inaceitável por sua ardilosidade, volúpia (embora romântica) e iniciativa tipicamente masculinas. Mas a verdadeira revolução do livro é mais sutil. Flaubert inaugura, como diz Kundera, o olhar sobre o cotidiano e sobre a estupidez, entendida como a incorporação acrítica de valores e estereótipos, que escravizam o pensamento e as emoções, como o romantismo de Emma e o filistinismo de Homais, o farmacêutico.
A história é trágica. Emma, órfã da mãe, vive no campo com o pai, que é atendido um dia pelo médico Charles Bovary. Há um ligeiro flerte entre o médico e a moça, mas não passa disso, já que ele é casado e reservado. Sua mulher morre e abre espaço para o novo casamento. A felicidade inicial de Emma logo se dissolve na descoberta de que a vida com Charles não corresponde ao romantismo encontrado nos livros açucarados e nas histórias grandiosas. Ela a tudo idealiza, como na sua relação com a religião e a santidade, a que devota uma paixão que não tem fundamento no dia-a-dia.
É assim com o amor, e resta então a busca de novos amores, até encontrá-lo perfeito e imaculado. Emma flerta de início com Léon, mas ele é tímido e não podendo abordá-la escapa para longe. Encanta-se por Rodolphe, esportista dos casos amorosos, que a seduz, mantém o “affair” por algum tempo, mas o desfaz quando ela imagina largar tudo e começar com ele vida nova. Ela idealiza então o marido, apostando que ele terá fama com um novo método cirúrgico, mas ele é medíocre e a operação quase mata o paciente (Charles só não será medíocre no final, quando se torna mais evidente sua enorme paíxão por Emma, logo ele, o insípido Charles, era afinal o único capaz de amar intensamente, não imagens ou fantasias, mas a sua mulher, de carne e osso). Desiludida, Emma quase morre, mas reencontra Léon, na Rouen de Flaubert. Começa novo caso de adultério, mas as fraquezas do moço o distanciam dos personagens grandiosos. Ela mantém o caso por hábito e volúpia, uma versão corrompida e decadente dos amores imaginados.
Sobrevém o pior. Ela controlava as contas do marido e gastava com suas idealizações e fantasias. Está para arruinar a vida de Charles, que perderá tudo que ama, a sua casa, os seus objetos, o seu cotidiano previsível e, sobretudo, a imagem de Emma. Abandonada pelos amantes, que lhe negam ajuda financeira, e frustrada em suas tentativas de obter o dinheiro, mesmo ao custo de seduções de outros, Emma se envenena com arsênico e sofre a agonia da morte dolorosa, martírica, como devia ser também a dos grandes personagens que amava (“Elle n’existait plus”). Flaubert castiga Emma ao penaliza-a por sua vida, mas é com os próprios métodos da moça. A morte é lacerante e intensa, digna de um livro. Charles, deseperado pela perda de Emma e pela perda posterior da imagem que tinha da mulher, quando descobre as cartas dos casos com os amantes, morre um ano depois, deixando a filha, que Emma sempre ignorou.

xxx

“Madame Bovary” é ao mesmo tempo a história do fracasso e do triunfo da estupidez. Fracasso porque Emma nunca tem o que quer. A realidade nunca está à altura da idealização. Emma se mata por desgosto. Triunfo porque sua vida e morte, com seus altos e baixos, suas paixões e dores, são intensas e românticas como as queria. A dor e a desilusão também compõem a heroína. O triunfo vem ainda do sucesso de Homais, o farmacêutico falastrão e arrivista, que sobrevive a todos os médicos e à sua própria mesquinhez. De uma certa maneira, ele é mais vilão do que os verdadeiros vilões da história, como o agiota Lheureux e os amantes Rodolphe e Léon. Homais, Lestiboudois e Lheureux representam respectivamente, com mais ou menos traços caricatos, a ciência pretensiosa e vazia, a religião incerta de si mesma e incapaz de exercer autoridade, e o financismo voraz e sem escrúpulos. Nada sobra de bom do saber, da fé e do dinheiro, o que talvez também explique o processo contra Flaubert. Emma e Homais são os egoístas mais acabados e perfeitos da trama, só que uma é sacrificada na morte enquanto o outro triunfa ao final e encerra o livro.
O livro começa chato, e assim deve sê-lo, pois começa por falar de Charles, o personagem incolor da trama. O contraste quando Flaubert entra na cabeça de Emma, logo após o casamento, é completo. Antes de casar, Emma não tem psiquê para o leitor. Depois, aparece uma vasta confusão de sentimentos, com uma direção: o gosto pelo acidente, pelo passional e extremo. Flaubert o descreve de modo magistral. E não é só a evocação da memória, com as imagens fabulosas dos livros e gravuras tão adoradas. O movimento, a ação, tudo é a psicologia em Emma. A dança no baile do Visconde, as voltas, o principio de desfalecimento, o inclinar da cabeça sobre o peito do parceiro da dança já revelam as emoções e inclinações do personagem. Enquanto o marido dorme de “bonil de cotton”, cochila nas festas, fuma sem graça, assume suas próprias fraquezas e hulilhações, Emma se perde em seus sonhos.
A cena da feira-comício, misturada ao encontro inicial com Rodolphe (não ainda a sedução na floresta, uma obra à parte), é considerada uma revolução narrativa. Flaubert alterna e entrelaça diversas vozes e situações. Nabokov julga ser a base de Joyce, que, embora genial, não teria feito muito mais do que Flaubert ali fizera. Minha leitura da cena é que Flaubert quer quebrar o romantismo puro do encontro. Quer dizer que não fará como os livros românticos e açucarados que critica. A linguagem dos dois futuros amantes e as descrições dão a ambientação do romantismo barato, mas a quebra, o alerta ao leitor, se dá com a interposição de outras vozes, como a do discurso no comício. É como se Flaubert quisesse dissipar a aura de magia do encontro amoroso e dizer que não podemos nos enternecer diante dele, tolamente.
Curioso é que Flaubert se vale de imagens e metáforas românticas para descrever Emma e suas histórias. Ele precisa delas para criar o romantismo vivido pelo personagem. Mas Flaubert o faz com tamanha sensibilidade e poesia, com uma riqueza de evocações e de sentidos, que nos enternecemos, e não é tolamente. Flaubert também nos dá cenas fortes e sensuais, como o passeio de carruagem pela manhã de Rouen, em desabalada e incessante carreira, num trote que inaugura o caso entre Emma e Léon e se encerra com uma mão lançando para fora os papéis picados da carta em que ela se despediria.
Se “Madame Bovary” não é o grande romance do século XIX – há histórias mais cativantes do que a pequena tragédia de Emma –, é difícil imaginar uma construção ficional tão perfeita de um personagem e de uma época.

ficções

A leitura dos oito contos de “El jardín de senderos que se bifurcan” (1941), primeira parte do livro "Ficciones" mostra quão vasto e variado era o gênio de Borges. O que o fascina não é escrever, criar por acumulação laboriosa uma obra, mas inventar, conceber e lançar, de forma concisa e enxuta, idéias tão lúdicas quanto fantásticas, em que o tema principal é a própria literatura, os livros, reais e imaginários, seus companheiros de sempre. É Borges quem o diz, no prólogo:

“Desvarío laborioso y empobrecedor el de componer vastos libros; el de explayar en quinientas páginas una idea cuya perfecta exposición oral cabe en pocos minutos. Mejor procedimiento es simular que esos libros ya existen y ofrecer un resumen, un comentario. Así procedió Carlyle en Sartor Resartus; así Butler en The Fair Haven; obras que tienen la imperfección de ser libros también, no menos tautológicos que los otros. Más razonable, más inepto, más haragán, he preferido la escritura de notas sobre libros imaginarios.”

o estrangeiro

Curto e muito impressionante, “L’étranger” é o primeiro romance de Camus. Conta a história de Mersault, homem de vida aparentemente previsível, funcionário mediano, de pouca conversa, de relações esporádicas, que mora em Argel. Com uma narrativa seca em primeira pessoa, Camus nos revela, desde o primeiro momento, o alheamento do personagem, o desapego à vida ao redor, aos valores da sociedade e ao seu próprio cotidiano e destino.
O que mais impressiona no livro é a maneira como Camus constrói o protagonista. Sua alienação e estranheza de sentimentos poderia soar artificial e inverossímil, mas Camus o faz parecer perfeitamente natural. A fluência e casualidade do discurso de Mersault lhe dá vida e consistência. Mersault não sofre ou se encanta. Começa seu relato de modo desconcertante, “Aujourd’hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas.” (“Mamãe morreu hoje. Ou talvez ontem, não sei”). Segue sua vida sem sobressaltos: relaciona-se com Marie com certa indiferença (se ela quiser, ele casa), aceita as propostas do patrão sem alterar-se (vai para Paris, se ele assim o designar), participa da vida dos vizinhos sem maior emoção (ajuda o “macho” Raymond, o velho Salamano). Um dia, envolvido involuntariamente nas brigas de Raymond, Mersault acaba por assassinar um árabe, numa praia com sol a pino, no desnorteio do calor, da luz do sol e de sua própria insensibilidade moral. Mata com cinco tiros e é condenado à morte.
A história de Mersault, durante o julgamento e a prisão, é a de uma ligeira autodescoberta, de uma gradual autoconsciência, que não chega a anular, no entanto, a sua condição de estrangeiro aos outros e aos valores sociais em geral. Ele acaba menos insensível à vida, afinal há momentos de revelação, como o amor por Marie, o súbito carinho por Céleste, dono do bar e velho conhecido. Mas o comportamento e os pensamentos ainda são de alguém estranho às coisas da vida. “L’étranger” é um típico romance existencialista, como “La nausée”, de Sartre, onde o vazio do personagem (e a imotivação de suas ações) é o tema principal.
Além de ser uma enxuta reflexão sobre o alheamento, “L’étranger” trata ainda, filosoficamente, do confinamento e da pena de morte. Camus nos fala da relatividade da prisão: a memória ou uma fresta de luz ou de céu podem dar mais liberdade do que a aparente liberdade da vida social. Quanto à pena de morte, ele nos fala da inexorabilidade do destino do condenado, em contraste com a imprevisibilidade da condenação no momento do julgamento. Duas lógicas distintas, uma a da inevitabilidade, outra a da contingência.
É um belo romance, sem excessos e com uma idéia forte. Um começo espetacular de Camus.

exame da obra de Herbert Quain

“Examen de la obra de Herbert Quain”, de Borges, completa a primeira parte (El jardín de senderos que se bifurcan) do livro Ficiones. “Examen” não é mais do que isso, o exame da obra desse escritor imaginário que em tantos pontos se aproxima de Borges. É como se Borges falasse de livros que teria gostado de escrever, ou ao menos de conceber como projeto de livros. Como se falasse de virtudes e vícios de um escritor que em muitos pontos nos lembra Borges. O conto é uma espécie de ensaio, de obituário literário, com traços gerais do autor, enredo e crítica dos seus livros principais.
Borges começa falando de referências a Quain, como o obituário a ele dedicado pelo Times, em que “no hay epíteto laudatorio que no esté corregido (o seriamente amonestado) por un adverbio”. Seguem avaliações que nos fazem lembrar Borges, uma ao começo (“percibía con toda lucidez la condición experimental de sus libros: admirables tal vez por lo novedoso y por cierta lacónica probidad, pero no por las virtudes de la pasión”), outra ao fim (“afirmaba que de las diversas felicidades que puede ministrar la literatura, la más alta era la invención”). Borges também nos fala dos livros de Quain: um romance policial (“The god of the labyrinth”), em que uma frase final faz o leitor reavaliar tudo o que pensara ao longo do livro; “una novela regresiva, ramificada” (“April March”), em que o último capítulo é a culminação possível de nove histórias contadas regressivamente em doze capítulos anteriores, com trifurcações do fim para o começo, com uma história de “carácter simbólico; otra, sobrenatural; otra, policial; otra, psicológica; otra, comunista; otra, anticomunista, etcétera” e de cuja estrutura “cabe repetir lo que declaró Schopenhauer de las doce categorías kantianas: todo lo sacrifica a un furor simétrico”; a “comédia heróica”, em dois atos, “The secret mirror”, cujo sucesso derivou do fato de a crítica a ter considerado freudiana e pouco afetou Quain, habituado já ao fracasso; e por fim, uma obra de oito relatos, “Statements”, em que “cada uno de ellos prefigura o promete un buen argumento, voluntariamente frustrado por el autor”. Borges brinca que um dos relatos inspirou o conto “Ruínas circulares”, mas o que não esconde é que “Statements” é, na verdade, seu livro “El labirinto de senderos que se bifurcan”, que também tem oito contos, oito idéias geniais que ele supostamente teria frustrado.  
O gosto dos jogos, dos labirintos, das combinações, dos livros imaginários, das idéias de livros, tão característico de Borges, está mais presente que nunca em “Examen”. Borges não se cansa de fazer infiltrar sua literatura com o invento, a imaginação. Há uma nota de pé de página no conto que, ao comentar “April March”, vislumbra uma possível inversão do tempo, em que “recordáramos el porvenir e ignoráramos, o apenas presintiéramos, el pasado”. Por falar em tempo invertido, por que não dizer que “April March”, com seus labirintos internos, suas diferentes possibilidades de ordem de leitura dos capítulos, é uma prefiguração de outra grande obra da literatura argentina, “Rayuela”, que Cortázar escreveria muitos anos depois?