4.5.11

madame Bovary

O que dizer de um romance como “Madame Bovary” e do estilo de um escritor como Flaubert? Talvez a melhor definição seja a de Nabokov, que no começo de sua aula sobre o livro diz tratar-se de prosa que faz o que a poesia deveria fazer.
Flaubert escreve como muito poucos. Entre os grandes do século XIX, não tem o pendor profético que Forster identifica em Dostoiévski, mas domina o texto como ninguém. Constrói a história e faz prosa poética talvez sem concorrente à altura no período. É, ao mesmo tempo, o profissional da ficção, que leva o ofício de escrever ao paroxismo da disciplina, e o gênio da palavra, pela sofisticação com que combina sentido e som.
E “Madame Bovary” é uma história revolucionária, para seu tempo e além. Não surpreende que Flaubert tenha sido processado por causa do livro, embora pelas razões menos interessantes: a suposta “pornografia” do autor, a obscenidade da trama do adultério e, talvez mais do que tudo, a ousadia de uma personagem como Emma Bovary, inaceitável por sua ardilosidade, volúpia (embora romântica) e iniciativa tipicamente masculinas. Mas a verdadeira revolução do livro é mais sutil. Flaubert inaugura, como diz Kundera, o olhar sobre o cotidiano e sobre a estupidez, entendida como a incorporação acrítica de valores e estereótipos, que escravizam o pensamento e as emoções, como o romantismo de Emma e o filistinismo de Homais, o farmacêutico.
A história é trágica. Emma, órfã da mãe, vive no campo com o pai, que é atendido um dia pelo médico Charles Bovary. Há um ligeiro flerte entre o médico e a moça, mas não passa disso, já que ele é casado e reservado. Sua mulher morre e abre espaço para o novo casamento. A felicidade inicial de Emma logo se dissolve na descoberta de que a vida com Charles não corresponde ao romantismo encontrado nos livros açucarados e nas histórias grandiosas. Ela a tudo idealiza, como na sua relação com a religião e a santidade, a que devota uma paixão que não tem fundamento no dia-a-dia.
É assim com o amor, e resta então a busca de novos amores, até encontrá-lo perfeito e imaculado. Emma flerta de início com Léon, mas ele é tímido e não podendo abordá-la escapa para longe. Encanta-se por Rodolphe, esportista dos casos amorosos, que a seduz, mantém o “affair” por algum tempo, mas o desfaz quando ela imagina largar tudo e começar com ele vida nova. Ela idealiza então o marido, apostando que ele terá fama com um novo método cirúrgico, mas ele é medíocre e a operação quase mata o paciente (Charles só não será medíocre no final, quando se torna mais evidente sua enorme paíxão por Emma, logo ele, o insípido Charles, era afinal o único capaz de amar intensamente, não imagens ou fantasias, mas a sua mulher, de carne e osso). Desiludida, Emma quase morre, mas reencontra Léon, na Rouen de Flaubert. Começa novo caso de adultério, mas as fraquezas do moço o distanciam dos personagens grandiosos. Ela mantém o caso por hábito e volúpia, uma versão corrompida e decadente dos amores imaginados.
Sobrevém o pior. Ela controlava as contas do marido e gastava com suas idealizações e fantasias. Está para arruinar a vida de Charles, que perderá tudo que ama, a sua casa, os seus objetos, o seu cotidiano previsível e, sobretudo, a imagem de Emma. Abandonada pelos amantes, que lhe negam ajuda financeira, e frustrada em suas tentativas de obter o dinheiro, mesmo ao custo de seduções de outros, Emma se envenena com arsênico e sofre a agonia da morte dolorosa, martírica, como devia ser também a dos grandes personagens que amava (“Elle n’existait plus”). Flaubert castiga Emma ao penaliza-a por sua vida, mas é com os próprios métodos da moça. A morte é lacerante e intensa, digna de um livro. Charles, deseperado pela perda de Emma e pela perda posterior da imagem que tinha da mulher, quando descobre as cartas dos casos com os amantes, morre um ano depois, deixando a filha, que Emma sempre ignorou.

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“Madame Bovary” é ao mesmo tempo a história do fracasso e do triunfo da estupidez. Fracasso porque Emma nunca tem o que quer. A realidade nunca está à altura da idealização. Emma se mata por desgosto. Triunfo porque sua vida e morte, com seus altos e baixos, suas paixões e dores, são intensas e românticas como as queria. A dor e a desilusão também compõem a heroína. O triunfo vem ainda do sucesso de Homais, o farmacêutico falastrão e arrivista, que sobrevive a todos os médicos e à sua própria mesquinhez. De uma certa maneira, ele é mais vilão do que os verdadeiros vilões da história, como o agiota Lheureux e os amantes Rodolphe e Léon. Homais, Lestiboudois e Lheureux representam respectivamente, com mais ou menos traços caricatos, a ciência pretensiosa e vazia, a religião incerta de si mesma e incapaz de exercer autoridade, e o financismo voraz e sem escrúpulos. Nada sobra de bom do saber, da fé e do dinheiro, o que talvez também explique o processo contra Flaubert. Emma e Homais são os egoístas mais acabados e perfeitos da trama, só que uma é sacrificada na morte enquanto o outro triunfa ao final e encerra o livro.
O livro começa chato, e assim deve sê-lo, pois começa por falar de Charles, o personagem incolor da trama. O contraste quando Flaubert entra na cabeça de Emma, logo após o casamento, é completo. Antes de casar, Emma não tem psiquê para o leitor. Depois, aparece uma vasta confusão de sentimentos, com uma direção: o gosto pelo acidente, pelo passional e extremo. Flaubert o descreve de modo magistral. E não é só a evocação da memória, com as imagens fabulosas dos livros e gravuras tão adoradas. O movimento, a ação, tudo é a psicologia em Emma. A dança no baile do Visconde, as voltas, o principio de desfalecimento, o inclinar da cabeça sobre o peito do parceiro da dança já revelam as emoções e inclinações do personagem. Enquanto o marido dorme de “bonil de cotton”, cochila nas festas, fuma sem graça, assume suas próprias fraquezas e hulilhações, Emma se perde em seus sonhos.
A cena da feira-comício, misturada ao encontro inicial com Rodolphe (não ainda a sedução na floresta, uma obra à parte), é considerada uma revolução narrativa. Flaubert alterna e entrelaça diversas vozes e situações. Nabokov julga ser a base de Joyce, que, embora genial, não teria feito muito mais do que Flaubert ali fizera. Minha leitura da cena é que Flaubert quer quebrar o romantismo puro do encontro. Quer dizer que não fará como os livros românticos e açucarados que critica. A linguagem dos dois futuros amantes e as descrições dão a ambientação do romantismo barato, mas a quebra, o alerta ao leitor, se dá com a interposição de outras vozes, como a do discurso no comício. É como se Flaubert quisesse dissipar a aura de magia do encontro amoroso e dizer que não podemos nos enternecer diante dele, tolamente.
Curioso é que Flaubert se vale de imagens e metáforas românticas para descrever Emma e suas histórias. Ele precisa delas para criar o romantismo vivido pelo personagem. Mas Flaubert o faz com tamanha sensibilidade e poesia, com uma riqueza de evocações e de sentidos, que nos enternecemos, e não é tolamente. Flaubert também nos dá cenas fortes e sensuais, como o passeio de carruagem pela manhã de Rouen, em desabalada e incessante carreira, num trote que inaugura o caso entre Emma e Léon e se encerra com uma mão lançando para fora os papéis picados da carta em que ela se despediria.
Se “Madame Bovary” não é o grande romance do século XIX – há histórias mais cativantes do que a pequena tragédia de Emma –, é difícil imaginar uma construção ficional tão perfeita de um personagem e de uma época.

2 comentários:

  1. Gostei muito desse blogue. Você já escreveu sobre algum livro de Millan Kundera? Li Valsa dos Adeuses, e gostei bastante.

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  2. Obrigado, Ronaldo. Li do Kundera "A insustentável leveza do ser" e um livro sobre romances, "The Art of the Novel". Os dois são excelentes. Pena que eu não fiz anotações sobre o "Insustentável" na época em que o li. Kundera é muito bom e seria mais valorizado como escritor se não tivesse sido um best-seller...

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