9.5.21

Voss

Dizer que um romance é sobre a busca do inapreensível soa clichê, já que a carapuça é larga e ajusta-se a muitos, mas no caso de “Voss”, escrito em 1957 pelo australiano vencedor do Nobel (1973) Patrick White, a afirmação parece exata: White escreveu um formidável romance expressamente sobre a busca do que não se pode alcançar.

Johann Ulrich Voss é um alemão na Austrália semivirgem do século XIX, protagonista de uma obsessão dupla: de um lado, o desejo de travessia ponta-a-ponta do continente australiano, nunca antes realizada; de outro, quase como um desdobramento acidental da personalidade obsessiva, a paixão tortuosa, platônica por uma jovem, Laura Trevelyan, tão interessante em suas convicções quanto convicta em seu sedentarismo. É o velho (e improvável) amor dos opostos, entre o explorador que desbrava o interior inóspito de um continente-ilha e a independente, mas no fundo comportada, sobrinha de um casal abastado, colonizador, na Sydney dos anos 1840. O território e o amor são espaços inconquistáveis, e um campo funciona como metáfora do outro.

Embora australianos, White e seu livro são profundamente ingleses no tema e no estilo. A obsessão britânica pelo choque entre convenções sociais e o abismo da exploração colonial, onde padrões e personalidades são tensionados até o limite da ruptura, está no centro do romance. Patrick White junta-se ao americano Henry James e ao polonês Joseph Conrad na nobre galeria de estrangeiros mais ingleses que os próprios ingleses, encantados com o confronto entre “civilização” e “barbárie”. As cenas de convivência de Voss com os aborígenes no centro da Austrália, especialmente quando eles o mantêm preso, são dignas do Conrad de “Heart of Darkness”. White realiza muito bem o romance de contrastes (colonizador e colonizado, cidade e interior) que o londrino Evelyn Waugh tentou fazer, sem o mesmo vigor, duas décadas antes, em “A Handful of Dust” (1934), em que o protagonista Tony Last, mais entediado que indignado com a traição da mulher em sua mansão inglesa, resolve buscar na Amazônia uma cidade indígena perdida.

Patrick White é um brilhante construtor de personagens. Voss e Laura sobressaem tanto por dilemas amorosos e existenciais, como por ações e gestos. Difícil o leitor não ser marcado por um e por outro, já que White lhes dá, com um zelo de escritor obsessivo, enorme complexidade e estatura.

Sua opção de narrativa não é sem risco, no entanto: com imaginação quase ébria, White revela os personagens por meio de metáforas ousadas, exorbitantes em alguns casos, e tem-se a sensação de que o autor nunca se distancia ou se esconde da obra, e parece querer dizer ao leitor que não abre mão do controle, sempre presente com um comentário ou imagem inusitada a fim de esgotar e dissecar psicologicamente cada um deles. Às vezes, o efeito é magnífico: “Mr. P. was bald, with a moustache that somewhat resembled a pair of dead birds.”

White não recorre ao discurso livre indireto adaptado às características e ao pensamento dos personagens; ao contrário, todos são vistos pela ótica onisciente do autor. E todos os principais personagens, como Robarts, le Mesurier, Palfreyman e Judd, aparecem tão vivos e complexos como Voss e Laura. Harry Robarts, por exemplo, que integra a expedição de Voss, aparece à nossa frente genuinamente como um garoto grandalhão e ingênuo: “Poor Harry Robarts was an easy shadow to wear. His wide eyes reflected the primary thoughts. Voss could sit with him as he would sit with still water, allowing his own thoughts to widen on it.” Já Frank Le Mesurier, outro expedicionário, destila o cinismo de um improvável poeta clandestino: “It was known, however, that he liked to discuss God, after he was drunk, on rum for choice, ploughing through the dark treacle of seductive words and getting nowhere at two o´clock in the morning. Getting nowhere. If he had become coolly cynical rather than embittered, it was because he still entertained a hope that it might be revealed which part he was to play in the general scheme.”

Apesar da complexidade dos personagens, “Voss” não é exatamente um romance de análise psicológica. Tampouco um romance histórico sobre a colonização. É em grande medida um épico da conquista (ou da impossibilidade da conquista), tanto territorial como amorosa, que revela uma Austrália que ainda não se percebe como país e dois protagonistas que projetam nesse espaço virgem de referências o caráter muito peculiar de suas obsessões e dilemas.

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