15.4.12

quatro contos menores de Borges: a forma da espada; três versões de Judas; o fim; a seita de Fênix


Num livro tão inspirado e original como “Ficciones” (1944), de Jorge Luís Borges, quatro contos parecem menores quando comparados aos demais.

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“La forma de la espada” (“A forma da espada”) é o segundo conto da seção “Artificios”. Conta a história de uma cicatriz, um arco no rosto do “Inglês de la Colorada”, irlandês que participou da guerra de independência, passou pelo Brasil e foi parar no interior da Argentina. A história da cicatriz é a história de uma traição, que só se revela ao fim: em lugar do estóico revolucionário que o abrigara na Irlanda, o protagonista-narrador é na verdade o marxista covarde que o traiu e fugiu, levando consigo a marca de sua infâmia. A surpresa final, em que o narrador revela sua identidade, não salva o conto, embora torne compreensível o discurso curiosamente erudito (com menções a Schopenhauer e Shakespeare) que parecia tão incongruente com o aspecto rural e severo do narrador.

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“Trés versiones de Judas” (“Três versões de Judas”), também da segunda parte (Artificios), lembra um conto da primeira (El jardín de senderos que se bifurcan), chamado “Examen de la obra de Herbert Quain”. Ambos tem a forma de um comentário sobre a obra do autor, com o pequeno detalhe de que tanto o autor como a obra são imaginários. Nos dois contos, Borges concebe e disseca algumas idéias fantásticas que não pode desenvolver de outra maneira se não por meio da própria ficção.
O autor examinado em “Trés versiones de Judas” é Nils Runeberg, que viveu em começos do século XX, como acadêmico da Universidade de Lund. Borges analisa os estudos heresiáticos de Runeberg, que procurou reinterpretar o papel de Judas. As três versões de Judas concebidas pelo nórdico, como um progressivo exercício de auto-iluminação, são as seguintes:

1) Judas como reflexo de Jesus: “Judas, único entre los apóstoles, intuyó la secreta divinidad y el terrible propósito de Jesús. El verbo se había rebajado a mortal; Judas, discípulo del Verbo, podía rebajarse a delator.”

2) Judas como praticante da renúncia: “El asceta, para mayor gloria de Dios, envilece y mortifica la carne; Judas hizo lo propio con el espíritu. Renunció al honor, al bien, a la paz, al reino de los cielos, como otros, menos heroicamente, al placer (...) Obró con gigantesca humildad, se creyó indigno de ser bueno.”

3) finalmente, Judas como Deus: “Afirmar que fue hombre y que fue incapaz de pecado encierra contradicción (...) Dios totalmente se hizo hombre hasta la infamia, hombre hasta la reprobación y el abismo. Para salvarnos, pudo eligir cualquiera de los destinos que traman la perpleja red de la historia; pudo ser Alejandro o Pitágoras o Rurik o Jesús; eligió un ínfimo destino: fue Judas.”

Runeberg morreu acossado pelo medo do castigo de Deus, medo de ser punido por haver descoberto sua secreta identidade: Runeberg “agregó al concepto del Hijo, que parecía agotado, las complejidades del mal y del infortunio”.
“Três versões de Judas” não é dos grandes contos de Borges porque não passa de um artifício que ele constrói para desenvolver idéias imaginosas sobre temas extraordinários como a teologia ou a história. Vale, como sempre, por sua prodigiosa imaginação.

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“El fin” (“O fim”) é um conto curtinho de Borges, em que ele narra a história de um duelo e de uma morte, que ao final saberemos que é a desse grande personagem argentino chamado Martín Fierro, do poema de José Hernández.
Borges constrói o conto tendo como ponto de vista a imobilidade de um velho paralisado sobre uma cama, a visão desse dono de bar chamado Recabarren, que sofreu uma espécie de derrame e passa seus dias deitado, olhando a planície pela janela: “hay una hora de la tarde en que la llanura está por decir algo; nunca lo dice o tal vez lo dice infinitamente y no lo entendemos, o lo entendemos pero es intraducible como música”. Por meio dele, saberemos de modo breve a origem da sua paralisia (“al acomodar unos tercios de yerba, se le había muerto bruscamente el lado derecho”) e acompanharemos a chegada de um forasteiro e seu duelo com o negro violonista que queria vingar a morte do irmão. Borges contrasta o mundo retraído do acamado com a espírito viril e violento dos duelistas.
O duelo e os diálogos dos rivais soam hoje previsíveis, os efeitos da contraposição entre a enfermidade e o conflito não impressionam. As melhores passagens falam do estoicismo e da resignação de Recabarren: “a fuerza de apiadarnos de las desdichas de los héroes de las novelas concluimos apiadándonos con exceso de las desdichas propias; no así el sufrido Recabarren, que aceptó la parálisis como antes había aceptado el rigor y las soledades de América”. É um conto de gaucho, com diálogos de western, embora muito inferior aos contos de duelos e gauchos de outros livros de Borges, como “El informe de Brodie”.

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“La secta del Fénix” (“A seita de Fênix”) é um conto estranho de Borges. Em quatro páginas curtas, Borges nos fala dessa confraria – mais um dos seus artifícios imaginosos – que não se distingue por raça, nacionalidade ou traços próprios, mas tão somente por um aparente atributo – seria a eternidade individual ou da própria confraria? – e por um ritual, o Segredo. O Segredo não nos é revelado inteiramente, temos apenas qualificações (ridículo, penoso, vulgar...) e o conhecimento de que é executado por seres inferiores (crianças, escravos) e com objetos simples (rolha, cera ou goma arábica), prescindindo de templos.
Borges nos oferece um conto “aberto”, mas com caminhos tão pouco interessantes a seguir, que não chega a nos tentar a preencher seus dois enigmas.