24.6.11

Herzog


Saul Bellow era desses raros escritores que combinavam uma inteligência muito privilegiada e uma espantosa capacidade de narrar e ironizar. À frente de Philip Roth, Bernard Malamud e Isaac Bashevis Singer, Bellow foi o personagem principal da geração de escritores judeus que fizeram o que há de melhor na literatura americana do pós-Guerra.
“Herzog” é um livro e tanto. Engraçado, auto-irônico, ao mesmo tempo sádico e compassivo com o protagonista, autobiográfico e, portanto, sádico e compassivo com o próprio Bellow. Diz-se que tudo que Bellow escreve é fortemente autobiográfico. Ao ler-se “Herzog”, com seu completo desnudamento do personagem, com a brilhante dissecação de suas fraquezas, idéias e fracassos, que revelam um ser inteiro, não se pode pensar que seja produto da imaginação. É Bellow em grande medida, embora nem por isso seja menos genial.
Com seu auto-exame permanente, com sua coleção de dramas e humilhações, Moses Herzog desperta grande empatia no leitor, que por ele se compadece ou com ele se diverte. As descrições que o apresentam de início já são impagáveis, pela ironia e concisão: “He went on taking stock, lying face down on the sofa. Was he a clever man or an idiot? (...) What sort of character was it? Well, in the modern vocabulary, it was narcissistic; it was masochistic; it was anachronistic. (…) Was he intelligent? His intellect would have been more effective if he had an aggressive paranoid character. (…) Resuming his self-examination, he admitted that he had been a bad husband – twice. (…) To his son and his daughter he was a loving but bad father. (…) With his friends, an egotist. With love, lazy. With brightness, dull. With power, passive. With his own soul, evasive”.
Herzog, o personagem, é um professor de vasta inteligência mas de pouco sucesso, que passa a vida (erros e desencantos) em revista, escreve cartas compulsivamente a destinários reais ou imaginários, vivos ou mortos, e pergunta-se, incerto de sua própria sanidade mental e emocional, se ainda tem alguma chance para o recomeço. Sua vida foi estraçalhada pela separação da segunda mulher: perdeu Madeleine, que amava, teve de afastar-se da filha June, que também amava, e perdeu também o melhor amigo, Valentine, que ficou com Madeleine. O ressentimento e a desilusão o corroem, por ter investido tanto na relação, por ter sofrido a sórdida traição e o triunfo magistral da mulher e do amigo que ajudara, e por temer que ambos maltratem a filha. O livro é uma sucessão de pequenas tragédias rememoradas, cômicas apenas pela ironia com que Bellow fragiliza e expõe Herzog, sem retirar-lhe no entanto uma dignidade que faz do leitor seu aliado. A única força que resta a Herzog é o seu charme já um tanto decadente, sua vitalidade ainda viril, seu gosto pelas mulheres, e em particular sua relação com Ramona, a ex-aluna européia-argentina, deusa do sexo e da conversa, que pede a ele que esqueça o passado e inaugure com ela uma vida nova.
Mas a revolta e as lembranças o assombram a todo tempo, como a imagem da separação, aquele exato momento em que Madeleine sentencia, agressiva e vitoriosa, que tudo acabou, que não há mais jeito. A cena é construída de modo sensível e sutil: há um contraste não apenas entre um Herzog passivo e acuado, que conserta a casa, e uma Madeleine exultante, segura de si, pronta para ir à vida, mas também entre a luminosidade que atravessa os vitrais e garrafas e o pensamento turvo e confuso de Herzog. A mensagem ali já está clara, embora Herzog só mais tarde a conheça e entenda: enquanto para ele a separação é fracasso e fim, para ela, é libertação e recomeço (“He realized that he was witnessing one of the very greatest moments of her life”). É o sinal de um triunfo e de uma crueldade quase patológica, que só aos poucos ele reconhecerá na ex-mulher.
Igualmente humilhantes para Herzog, e geniais pela ironia de Bellow, são as cenas do personagem com o amigo advogado Sandor, com o amigo zoólogo Lucas Asphalter, e com a tia de Madeleine, Zelda. Na cena com Sandor, Bellow chega a ser sádico na caracterização da passividade de Herzog e na frieza de Sandor, fazendo suspeitar que mais um amigo terá caído nos encantos da ex-mulher. Com Asphalter e sua melancolia pela perda da macaca querida, Bellow constrói um ambiente depressivo, fétido, decadente, patético, para revelar a Herzog a história da traição da mulher e dos supostos maus tratos à filha. Para completar o ultraje e desnudar de vez o protagonista, Tia Zelda irá dizer o quanto Madeleine se insatisfazia com a ejaculação precoce de Herzog.
Não é, no entanto, às custas do patético apenas que Bellow constrói seu personagem. Sua pena também é eficiente ao retratar o belo. Uma das cenas mais inspiradas do livro é a do fascínio de Herzog ao observar Madeleine se vestindo numa manhã já distante, do tempo em que ainda eram apenas namorados, ele um adúltero do primeiro casamento. É o encanto dele diante de uma Madeleine “se fazendo mais velha no banheiro”, maquiando-se, deixando intocada apenas sua “eyeball” (globo ocular), transformando-se como uma atriz, senhora de si e do novo personagem que emergirá do banheiro, completamente estranho àquele que saíra da cama. Ali, naquela cena sutil e inaugural, já se prenunciava o choque entre quem contempla e ama e quem executa e ignora. Antecipa-se o fim, em que Herzog pensa em matar Madeleine e Valentine, mas apenas consegue bater o carro em que carrega a filha, desperdiçando de vez a chance de ganhar sua custódia. Herzog não é um homem de ação; ele não sabe fazer as coisas. Sabe apenas pensar e escrever, pensar sobre assuntos completamente deslocados da realidade e escrever cartas que não enviará.
Saul Bellow é muito sofisticado na narrativa. Começa com a narrativa em terceira pessoa, mas o megulho na cabeça do personagem é tão profundo que o escritor, ao compartilhar as idéias e sentimentos de Herzog com o leitor, acaba por avançar para a primeira pessoa. O narrador pensa como Herzog, deixa que ele exponha diretamente seus pensamentos.
“Herzog” é também um livro em que Bellow discute idéias por meio de seu alter-ego. Professor e obsessivo, Herzog escreve cartas para todos e sobre tudo, o que dá a Bellow certa liberdade para discorrer sobre qualquer tema, sem soar professoral e didático. Seu romance não é mero pretexto para apresentar teses; as tese misturam-se na verborragia de Herzog, marcam sua desorientação e estabelecem uma pausa entre uma humilhação e outra. Mais do que um vendedor de idéias, o romancista deve ser um construtor de personagens, e é isso que Bellow faz de maneira refinada, seja na sucinta caracterização de uma figura secundária (como o erudito Shapiro, que “was not good-humored, although his face was a good-humored face”), seja na revelação dos personagens principais, como Madeleine, rica o suficiente em contornos e nuances, principalmente na relação com os pais, para que sua personalidade avassaladora não pareça caricatural ou inverossímil.
Saul Bellow é um grande retratista do homem moderno, este homem que pode ser ao mesmo tempo sofisticado de intelecto, cético de espiríto e inseguro de emoções. Com “Herzog”, Bellow atinge o alvo na mosca, criando um personagem que é ao mesmo tempo um retrato de si e de sua época.

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