9.5.21

Voss

Dizer que um romance é sobre a busca do inapreensível soa clichê, já que a carapuça é larga e ajusta-se a muitos, mas no caso de “Voss”, escrito em 1957 pelo australiano vencedor do Nobel (1973) Patrick White, a afirmação parece exata: White escreveu um formidável romance expressamente sobre a busca do que não se pode alcançar.

Johann Ulrich Voss é um alemão na Austrália semivirgem do século XIX, protagonista de uma obsessão dupla: de um lado, o desejo de travessia ponta-a-ponta do continente australiano, nunca antes realizada; de outro, quase como um desdobramento acidental da personalidade obsessiva, a paixão tortuosa, platônica por uma jovem, Laura Trevelyan, tão interessante em suas convicções quanto convicta em seu sedentarismo. É o velho (e improvável) amor dos opostos, entre o explorador que desbrava o interior inóspito de um continente-ilha e a independente, mas no fundo comportada, sobrinha de um casal abastado, colonizador, na Sydney dos anos 1840. O território e o amor são espaços inconquistáveis, e um campo funciona como metáfora do outro.

Embora australianos, White e seu livro são profundamente ingleses no tema e no estilo. A obsessão britânica pelo choque entre convenções sociais e o abismo da exploração colonial, onde padrões e personalidades são tensionados até o limite da ruptura, está no centro do romance. Patrick White junta-se ao americano Henry James e ao polonês Joseph Conrad na nobre galeria de estrangeiros mais ingleses que os próprios ingleses, encantados com o confronto entre “civilização” e “barbárie”. As cenas de convivência de Voss com os aborígenes no centro da Austrália, especialmente quando eles o mantêm preso, são dignas do Conrad de “Heart of Darkness”. White realiza muito bem o romance de contrastes (colonizador e colonizado, cidade e interior) que o londrino Evelyn Waugh tentou fazer, sem o mesmo vigor, duas décadas antes, em “A Handful of Dust” (1934), em que o protagonista Tony Last, mais entediado que indignado com a traição da mulher em sua mansão inglesa, resolve buscar na Amazônia uma cidade indígena perdida.

Patrick White é um brilhante construtor de personagens. Voss e Laura sobressaem tanto por dilemas amorosos e existenciais, como por ações e gestos. Difícil o leitor não ser marcado por um e por outro, já que White lhes dá, com um zelo de escritor obsessivo, enorme complexidade e estatura.

Sua opção de narrativa não é sem risco, no entanto: com imaginação quase ébria, White revela os personagens por meio de metáforas ousadas, exorbitantes em alguns casos, e tem-se a sensação de que o autor nunca se distancia ou se esconde da obra, e parece querer dizer ao leitor que não abre mão do controle, sempre presente com um comentário ou imagem inusitada a fim de esgotar e dissecar psicologicamente cada um deles. Às vezes, o efeito é magnífico: “Mr. P. was bald, with a moustache that somewhat resembled a pair of dead birds.”

White não recorre ao discurso livre indireto adaptado às características e ao pensamento dos personagens; ao contrário, todos são vistos pela ótica onisciente do autor. E todos os principais personagens, como Robarts, le Mesurier, Palfreyman e Judd, aparecem tão vivos e complexos como Voss e Laura. Harry Robarts, por exemplo, que integra a expedição de Voss, aparece à nossa frente genuinamente como um garoto grandalhão e ingênuo: “Poor Harry Robarts was an easy shadow to wear. His wide eyes reflected the primary thoughts. Voss could sit with him as he would sit with still water, allowing his own thoughts to widen on it.” Já Frank Le Mesurier, outro expedicionário, destila o cinismo de um improvável poeta clandestino: “It was known, however, that he liked to discuss God, after he was drunk, on rum for choice, ploughing through the dark treacle of seductive words and getting nowhere at two o´clock in the morning. Getting nowhere. If he had become coolly cynical rather than embittered, it was because he still entertained a hope that it might be revealed which part he was to play in the general scheme.”

Apesar da complexidade dos personagens, “Voss” não é exatamente um romance de análise psicológica. Tampouco um romance histórico sobre a colonização. É em grande medida um épico da conquista (ou da impossibilidade da conquista), tanto territorial como amorosa, que revela uma Austrália que ainda não se percebe como país e dois protagonistas que projetam nesse espaço virgem de referências o caráter muito peculiar de suas obsessões e dilemas.

12.4.15

os detetives selvagens


Um dos temas centrais de “Los detectives salvajes”, de Roberto Bolaño, é a impossibilidade de apreender uma individualidade, de saber do outro. Mais do que uma obra sobre a literatura, com suas referências diretas ou indiretas ao baixo e ao alto clero da literatura mexicana e hispano-americana em geral, o livro é uma reflexão sobre a opacidade do indíviduo e sobre as possibilidades precárias, narrativas, apenas aproximativas, de se construir/compreender a identidade do outro.

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A ideia da busca do outro estrutura-se no livro como uma busca dupla, em dois níveis: os “protagonistas” Arturo Belano (alter ego de Bolaño) e Ulises Lima procuram desvendar a vida e a obra de uma poeta dos anos 1920, Cesárea Tinajero, que consideram uma precursora do movimento real-visceralista que os dois lideram; os leitores, por sua vez, como detetives em busca dos detetives, serão “apresentados” aos protagonistas sempre de maneira indireta, por aproximações, pela sobreposição de narrativas daqueles que entraram em contato com os dois, ouviram falar de suas vidas, viveram experiências já distantes no passado. Da mesma maneira que Cesárea é uma inspiração fugidia, mais mito que existência no imaginário dos dois (que sequer conheciam um poema dela), Arturo e Ulises nunca nos falam em primeira pessoa, nem nos aparecem por meio de uma terceira pessoa onisciente, confiável. Arturo e Belano ouvem o relato precário, alcoolizado, do velho Amadeo Salvatierra sobre Cesárea; nós lemos os relatos desencontrados, cacofônicos (ainda assim, quase sempre sedutores, brilhantes) das histórias que ajudam a formar, embora precariamente, suas identidades.

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No livro, a explicitação da busca de si mesmo, implícita ou não nas buscas do outro, é um breve interregno. Circunscreve-se à primeira e menor das três partes do livro. O jovem aspirante a poeta, García Madero, de 17 anos, que conheceu os protagonistas e ao fim os acompanhará numa fuga que é ao mesmo tempo a busca do passado de Cesárea, tenta dar conta, em seu diário, de uma identidade “em formação”, o jovem que começa a se definir afetivamente, sexualmente, artisticamente. Nesse esboço de Bildungsroman, mais sobre a iniciação sexual do que literária do narrador, envolvido com a garota María Font e a garçonete Rosaria, vemos um México provinciano, violento, mas um tanto romântico e alternativo, com seus personagens desviantes, adoravelmente loucos ou idealistas, como o pai de María, Quin Font.

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Os relatos da segunda parte do livro, a principal, compõem um mosaico vertiginoso, um labirinto de referências à vida de Arturo e Belano a partir das histórias daqueles que conviveram com os dois. Como em Balzac e sua criação de todo um arco de relações que insere e define o personagem, Bolaño traça uma complexa rede de relações em torno de Arturo e Belano, como se fosse a trama em torno do indivíduo que ajudasse a identificá-lo, a estabelecer uma identidade. Os ângulos são os mais diversos, da intimidade sexual ao ouvir dizer do meio social ou literário. Ainda assim, os relatos revelam muito mais sobre os depoentes do que sobre os retratados. O retrato do outro será sempre parcial, incompleto; nem a intimidade a dois permite o conhecimento. O indivíduo não é mais do que o conjunto de discursos daqueles que o cercam. Sua identidade, oblíqua, turva, narrativa, aproximativa, é literatura.

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Arturo e Ulises são espelhos, um do outro, ambos embaçados, envoltos numa névoa que se dissipa e retorna. Não conhecemos seus pensamentos. Conhecemos apenas seus atos, filtrados pela memória alheia. O ato faz o homem, embora nunca se saiba exatamente o que é o homem. Bolaño presta assim uma homenagem indireta aos autores que diziam rejeitar a psicologia, a narrativa psicológica, a começar por Borges. A ironia é que para sabermos algo sobre Arturo e Ulises, entramos na cabeça de todos os que, por suas vozes, relatam seus contatos com eles. Uma das façanhas do livro é justamente a montagem desse universo múltiplo, complexo de figuras que cercam os protagonistas e que nos são revelados também por sua riqueza psicológica.

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A busca de Cesárea por Arturo e Ulises, assim com a busca dos dois pelo leitor, é também a expressão de uma dor, a melancolia da impermanência do ser. Aquele que viveu, ao começar a desaparecer da memória alheia, passa a inexistir da forma mais completa, morto primeiro como ser, depois como imagem recordada. Daí a busca desesperada, irracional, em plena aridez e vazio dos desertos de Sonora, pela obra e vida de Cesárea, à beira do desaparecimento último. Daí a celebração do encontro de um de seus poemas, tão insubstancial quanto enigmático. No limite, não saberemos quem existiu, e por quê, como nos relata Luis Sebastián Rosado (p.353):

“Antes yo había hablado con algunos amigos, gente que se dedicaba a la historia de la literatura mexicana y nadie supo darme ningún dato sobre la existencia de aquella poeta de los años veinte. Una noche Piel Divina admitió que tal vez era posible que Belano y Lima se la inventaran. Ahora los dos están desaparecidos, dijo, y ya nadie puede preguntarles nada.”

Parte da revolta dos protagonistas ante figuras como Octavio Paz vem sim da disjunção entre o canônico e o marginal, mas também da indignação ante o fato de que o cânone representaria a superação do olvido, a suposta eternização de alguns poucos (justa ou injustamente), em contraste com o desaparecimento completo dos demais.

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Um dos propósitos da segunda parte, que contém os relatos dos conhecidos de Arturo e Ulises, é criar uma atmosfera de mistério, quase sempre esfumaçada, quase sempre duvidosa, em torno dos dois protagonistas. Em alguns casos, Arturo e Ulises revelam-se mais estranhos que interessantes, e o envolvimento do leitor com os testemunhos é afetado em alguma medida pela falta de carisma e charme dos dois. No mais das vezes, no entanto, os próprios depoentes, ou a maneira como enredam suas histórias, despertam o fascínio do leitor.

É extraordinário, por exemplo, o relato de Auxilio Lacouture, a uruguaia que se refugiou no banheiro da UNAM (Universidade Nacional do México) durante a invasão e a tomada da universidade pelos militares em 1968. Comove seu amor da poesia, dos poetas mexicanos, de Arturo Belano, do idealismo, da literatura e sua voz de resistência, uma voz tão romântica quanto latino-americana: assim lemos seus 10 ou 15 dias sem comer nem sair do banheiro da faculdade (pg. 190-199). Mais desconcertante é o depoimento de Xosé Lendoiro, advogado galego que conta a queda do garoto no fosso escuro e o resgate pelo vigia do camping, que vem a ser Arturo Belano. A relação com Arturo, que passa a namorar sua filha, a revista de poesia que Lendoiro edita, a autoimagem de gigante, a obsessão com o fosso e os urros diabólicos que vêm do buraco ajudam a compor uma história que impressiona pelo sombrio (p. 427-448).

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Os relatos mais marcantes são, no entanto, os que nos permitem compreender um pouco melhor as figuras de Ulises e Arturo. No caso do primeiro, a viagem a Israel e sua tortuosa paixão por Claudia. No caso do segundo, a fantástica viagem à África, em meio à guerra, à recorrência da doença, à aproximação da morte. Como para Marlow, em Coração das Trevas, de Conrad (um antecessor, e provável inspirador, de Bolaño na ideia do romance como busca de um personagem), o continente africano é para Arturo o lugar para perder-se, abandonar as angústias por meio do abandono da própria vida. A melancolia de sua trajetória africana, a consciência resignada de que há algo maior, diabolicamente e tragicamente maior, já é um reflexo do desejo de Arturo de desprender-se de uma existência anterior. Curiosamente, o leitor conhece um pouco melhor sua identidade justamente no momento em que Arturo quer desfazer-se dela. 

O romance se encerra com a retomada do diário de García Madero, agora descrevendo a viagem de carro pelo deserto, em parte fuga, pela proteção à prostituta María, perseguida por seu cafetão, em parte busca, pela visita aos vilarejos onde Cesárea viveu. Aqui vemos Arturo, Ulises e García Madero conjugarem seus desesperos.

Entre tantas virtudes, Bolaño é um extraordinário contador de histórias, e este seu “Los detectives salvajes”, publicado em 1998, ao apagar das luzes de um século marcado pela permanente desconstrução do romance, provavelmente sobreviverá ao esquecimento com um dos grandes romances latino-americanos do período.

28.12.14

o concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro


A relação, substantiva e formal, entre a literatura e as demais formas de manifestação artística pode ser tanto um bom tema como um instrumento de renovação da prosa de ficção.
Algumas linhas da literatura brasileira das últimas décadas, especialmente a ficção urbana representada pela figura maior de Rubem Fonseca e seus herdeiros, parecem influenciadas pelo ritmo, caráter fragmentário, elíptico e essencialmente visual da narrativa do cinema, o que gerou e continua a gerar algumas boas obras e outras menos inspiradas. Mais recentemente começou a ganhar relevância, embora em escala menor, outra vertente da literatura brasileira, que explora a interação entre a prosa e as artes visuais, desenvolvida – com maior ou menor sucesso, com ou sem uso de fotografias ao estilo Breton/Sebald – por escritores-artistas (ou artistas-escritores), como Nuno Ramos, Verônica Stigger e Laura Erber.
Curiosamente, uma das tentativas mais bem sucedidas na literatura brasileira contemporânea de estabelecer um diálogo entre artes (e, portanto, de enriquecer formalmente a própria ficção) foi realizada por Sérgio Sant’Anna num belo conto que aproxima a literatura não do cinema ou das artes visuais, mas do teatro e da música.
“O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro”, publicado pela editora Ática, em 1982, e reeditado agora pela Companhia das Letras, é o conto principal do livro de Sérgio Sant’Anna que leva o mesmo nome, e possivelmente um dos contos mais significativos do autor.
Centrado num show que João Gilberto se recusou (no dia mesmo) a fazer no Canecão por inadequação de acústica, o conto é uma interessante reflexão sobre o lugar do silêncio tanto na música quanto na literatura. É no fundo uma defesa do não-dito (não-emitido/não-pronunciado) como fundamento, por contraste, da própria arte, seja ela musical ou literária. Somente a redescoberta do silêncio em meio à hipertrofia de estímulos, à balbúrdia e à cacofonia restabeleceria o valor artístico do som ou da palavra.
O tema do silêncio é recorrente ao longo do conto. Já na cena inicial, no aeroporto em Nova York, John Cage (compositor de pausas e silêncios) presenteia João Gilberto com uma gaiola (“cage”) vazia, onde está o suposto pássaro da perfeição. João o leva para o Rio e, tanto quanto o pássaro invisível e mudo, não cantará no dia do concerto, para não quebrar o silêncio com o som inadequado, aquém da perfeição. A economia do som (e da palavra) é a condição de sua qualidade, de seu impacto e valor como arte.
Formalmente, Sant’Anna traduz esse elogio à abstenção por meio de um texto recortado, uma colagem de vinhetas, diálogos, citações e situações que realçam o silêncio e o vazio entre as cenas e, por extensão, tornam cada cena mais expressiva: a chegada de João Gilberto e Luís Carlos Prestes ao Rio; o comentário do diretor do Pinel, ao lado do Canecão; a notinha da revista Amiga; os instantâneos de conversas de bar do autor e seus amigos. Também ele, autor, precisa deixar de dizer para reforçar o sentido de cada fragmento que ajuda a construir a sua história. Como se buscasse o contraponto literário da parcimônia de João Gilberto e John Cage.
O diálogo interartístico no conto não se limita à interação entre autor e compositor, entre ficção e música. Além de João Gilberto, outro interlocutor do narrador/autor é o diretor Antunes Filho. Sant’Anna não esconde seu interesse pelo teatro, o que se revela não apenas nas incursões noturnas e reflexões do seu alter-ego narrador, mas na própria montagem dos fragmentos do conto como sketches, pequenos números teatrais, em que os personagens muitas vezes parecem mais representar do que ser ou estar: Bob Wilson e Antunes como personagens de si; Caetano Velloso como repositório de uma sabedoria inapreensível; o urubu mensageiro carioca como interlocutor do urubu da Condor Filmes (ou mesmo do pato da Bossa Nova); o “autor” Sérgio Sant’Anna como personagem do escritor Sérgio Sant’Anna. Num dos muitos exercícios de metaliteratura no conto, Sant’Anna chega a citar o comentário de Silviano Santiago de que seus personagens são acima de tudo atores, aos quais ele mal dá a liberdade de se desenvolverem plenamente. Como no teatro, os personagens no conto revelam-se muito mais por enunciação própria, nos diálogos, do que por uma descrição ou caracterização psicológica intermediada pelo narrador.
Há no conto, na justaposição e criatividade dos fragmentos, uma leveza de invenção e irreverência que, ironicamente, também faz lembrar o cinema, o frescor jovem e criativo de um Goddard dos anos 1960, no jocoso fingimento de não se levar muito a sério. De um lado, vemos cenas que remetem a um Rio mitológico, insouciante, do Botafogo de Garrincha à Ipanema de Jobim, do Canecão de João Gilberto ao Maracanã de Sinatra; de outro, descobrimos uma riqueza de jogos e pequenos achados literários que dão graça e colorido à narrativa.
Se há algo a questionar é o desejo de Sérgio Sant’Anna de explicar alguns achados e truques que insere ao longo do texto, como se precisasse certificar-se de que o leitor irá percebê-los. O efeito é reduzir o charme e a sutileza de algumas das tiradas metaliterárias, dos pequenos achados musicais, visuais ou verbais, tão frequentes no conto. Os elementos de metaliteratura – a auto-referência a Sérgio Sant’Anna, o diálogo com Silviano Santiago ou Rubem Fonseca, os dilemas explicitados do autor/narrador na construção do conto sobre João Gilberto – são quase sempre oportunos e mesmo necessários, mas em alguns poucos casos Sant’Anna retira do leitor a graça de desvendar os seus enigmas por si só. Isso acontece, por exemplo, na brincadeira do autor/narrador sobre o Hino Nacional (pg. 170), na bela imagem do corpo branco sob a capa preta ao som da canção bicolor de Tom e Chico (pg. 186) e, sobretudo, em alguns dos momentos em que Sant’Anna procura analisar a estrutura e estilo do conto que está escrevendo (o texto como ensaio, os fragmentos como integrantes de uma orquestra, o fragmentário como o novo realismo, o comentário sobre Syberberg...). Uma coisa é a literatura que se comenta pelo apelo do jogo de espelhos, e por toda a ressonância de significados que gera; outra, a literatura que se explica como forma de legitimação. Nesse último caso, o silêncio, como endossaria o próprio Sant’Anna, talvez fosse a solução estilisticamente mais elegante.
São escolhas do autor no sempre difícil equilíbrio entre o dito e o não-dito, e que mesmo ao juízo de um leitor que pode se sentir subestimado, não tiram o brilho do conto. Para além dos achados e jogos, Sant’Anna produz pequenas preciosidades de texto, inseridas aqui e ali como frases despretensiosas (“Quando eu bebo, só tenho medo no dia seguinte”) ou como metáforas simples (“O Planeta rolando vertiginosamente no Cosmos e você ali boiando nas ondas do mar, como um passageiro de primeira classe”), sempre com um ótimo efeito no desenrolar do conto.
“O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro” é, ao mesmo tempo, uma homenagem às figuras centrais da cultura brasileira das décadas de 1960 e 1970 (como JG, Tom, Gláuber, Chico, Caetano, Antunes, Rubem Fonseca...) e uma inventiva e divertida experiência de fecundar o conto por meio do diálogo com a música e o teatro. Um belo show de Sérgio Sant’Anna sobre o expressivo no-show de João Gilberto.

5.10.14

a vida nova


Não sei o que impressiona mais em César Aira, a prodigalidade de histórias ou a originalidade de estilo(s). São quase 70 livros de ficção, e aqueles que li (naturalmente, um percentual muito limitado do universo Aira) me pareceram não só imaginosos no limite do nonsense, mas também com estilos marcadamente diferentes. Já é difícil classificar o que Aira faz como gênero: ele mesmo diz que não escreve romances/novelas, mas “artefatos literários”, “poesia escrita como exercícios de prosa”. E dentro dessa enorme coleção de artefatos ou exercícios, o que menos há é repetição, homogeneidade.
Apesar da indefinição do objeto literário, em Aira convivem a imaginação vertiginosa e a precisão. O fabulista e o dicionarista. O devaneio e o método. Ele é capaz de inventar um personagem César Aira que quer controlar o mundo roubando o DNA de Carlos Fuentes, mas como a mosca que programou acaba picando a gravata e não a pele de Fuentes, clonam-se por engano gigantescos bichos da seda, que destroem a cidade de Caracas (“El congreso de literatura”). Esse mesmo Aira, o autor, não o personagem, é capaz de redigir mais de 600 verbetes sobre os mais diferentes escritores latino-americanos, com o rigor e a minúcia de um ourives-escrivão (“Diccionario de autores latinoamericanos”).
“La vida nueva” é a quinquagésima-sexta “novela” de Aira. Na verdade, não mais do que um parágrafo de 76 páginas narrado em primeira pessoa por um escritor que (como Aira) vive em Flores, arredores de Buenos Aires. Pode ser lido como uma brincadeira séria em torno de algumas idéias caras a Borges. As possibilidades do e no tempo. As bifurcações possíveis. Os futuros possiveis de um homem. A gratuidade dos eventos que nos levam a uma vida ou a outra. Não surpreende que o protagonista do livro, que nunca consegue lançar seu primeiro romance, desfie aqui e acolá anedotas sobre Borges, como a visita que teria feito à redação de uma revista para enfiar exemplares de seu primeiro livro nos bolsos dos casacos pendurados nos cabideiros.
As agruras do escritor inédito em “La vida nueva” são retratadas com tons surreais, buñuelescos, que parecem derivar mais de uma essência absurda da vida do que de contingências objetivas e materiais que atingem o personagem, até porque seu manuscrito goza de bom conceito entre seus leitores e de um editor disposto a publicá-lo (embora nunca capaz de fazê-lo, pelas razões mais diversas). A novela é sobretudo uma reflexão sobre a circularidade da vida, o eterno e gratuito retorno, o homem como Sísifo, sempre mais patético a cada volta. Aira esgarça e subverte o tempo da narrativa, transformando semanas em anos ou décadas, para realçar o absurdo e a gratuidade de cada gesto, de cada tentativa. O homem em geral sim, mas é sobretudo o escritor na sua particularidade quem carrega a pedra que nunca se fixa no alto.

“Nos despedimos con un “hasta pasado mañana”, que sonaba a una variación casi humorística del clásico “hasta mañana”. Lo llamé, efectivamente, pero no a los dos días sino mucho más tarde. Cuánto? Perdi la cuenta. Seis, siete años después. Quizás más. Pasaron tantas cosas, y a la vez parecía como si no pasara ninguna.”

As noções tradicionais de tempo não fariam sentido porque não há causalidade linear, relação clara entre o que supostamente seria causa e o que supostamente seria efeito. A graça da novela de Aira está nesta dupla transgressão do tempo e da racionalidade, em mais uma de suas críticas à verossimilhança como base do romance pós-século XIX, período que, segundo o autor, teria esgotado todas as possibilidades do romance realista. Aira chega a ser quase didático na voz de seu alter ego:

“Cada pequeño incidente de la sucesión (y ésta era una sucesión de incidentes y de nada más) venía provisto de causa y efecto, pero las causas y efectos, que por lo demás se estaban transformando unas en otros todo el tiempo, eran a su vez pequeños incidentes atorbellinados que partían en todas direcciones.”

Não é, no entanto, apenas o esgotamento de um modelo artístico que desautoriza a linearidade e a verossimilhança. A narrativa em “La vida nueva” desenrola-se em saltos e descontinuidades porque a memória e a identidade constroem-se dessa maneira. O protagonista de existência flácida é inseguro de seu passado e parcialmente inconsciente do seu presente porque é assim que a identidade individual se forma. Nunca de maneira exaustiva, contínua, homogênea no tempo, apesar da existência ininiterrupta no tempo. Isso é agravado quando se escreve, já que é preciso refabular a fábula que é a memória:

“Quizás era improcedente hablar de recuerdo y olvido cuando el objeto de la memoria era uno mismo: el recuerdo exigía una discontinuidad, y uno no había dejado de ser uno mismo desde su más remoto pasado, no había habido interrupción. (...) Con la vida de los escritores siempre se había fantasiado mucho, lo que a la larga debía de haber afantasmado un poco las vidas reales de los escritores reales, a tal punto que correspondía preguntarse si no sería todo una gran fantasía: vidas que no vivía nadie, ni siquiera los que vivían (lo que terminaba siendo otra contradicción.)”

Para além de uma alegoria sobre as dificuldades de publicação do escritor inédito, sobre a improvisação romântica de escritores e editores, “La vida nueva” é uma reflexão um tanto irônica, um tanto séria, sobre o desenrolar do tempo: o tempo na vida, com as escolhas e ciclos que marcam o indivíduo; o tempo na memória, com sua seletividade, seu ritmo, seu método; o tempo na literatura, com suas possibilidades menos ou mais inovadoras.

25.8.13

a odisséia


De forma mais velada e sutil do que Shakespeare faria com “Macbeth”, “A Odisséia”, de Homero, é uma história sobre a “hubris”, a arrogância do poder, o orgulho da vitória. A viagem tortuosa, quase interminável, que Odisseu/Ulisses faz de Tróia a Ítaca é a punição de uma egotrip anterior, da autoimagem de infalibilidade e onipotência de quem arquitetou e executou a tomada de Tróia. Poseidon lança a maldição sobre Odisseu porque o herói, não satisfeito em cegar o ciclope que o aprisionava na volta, quis dar-lhe uma lição de moral. Ao escapar, Odisseu, indignado com a morte de seus companheiros, impreca contra o monstro e não resiste à tentação de proclamar seu nome, apesar dos apelos dos demais sobreviventes para que se cale. O bravo herói, que se livra da prisão com a astúcia de sempre, é também orgulho e ressentimento. A nova vitória não pode ficar anônima. Precisa da palavra para afirmar o vencedor, mais uma vez. E a palavra será a queda. O ciclope descobre a identidade do inimigo e conta ao pai, Poseidon, que irá se vingar, com correntes, tempestades e tragédias, daquele que imolou seu filho.

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As agruras de Odisseu combinam vícios dos deuses e vícios dos homens. Há vileza e incompetência (e portanto falibilidade humana) no Olimpo e na Terra. A tripulação de Odisseu é particularmente anti-heróica. Demonstra suas fraquezas não apenas na fuga do ciclope ou na história do saco dos ventos, mas também na Ilha do Sal, em que os marujos não resistem à tentação de comer os animais. Na Grécia de Homero, há os vícios dos grandes – deuses e heróis – como a “hubris”, a prepotência, a vaidade, e os vícios dos pequenos – os homens em geral – como a cobiça, a gula, a curiosidade. Mas até Odisseu, apesar de todas as suas virtudes de herói, peca por vícios menores, como a leniência na hora de evitar a insubordinação de seus homens. Em contraste com o mundo confuciano, oriental, da preservação das hierarquias (Imperador-súdito; pai-filho; marido-mulher), o mundo grego é o da subversão das hierarquias pelo triunfo da individualidade (herói contra deus; homem contra herói).

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Mais do que a Ilíada, que é narrada de forma mais direta e “neutra”, “A Odisséia” é uma história sobre histórias. É uma narrativa sobre narrativas. O envolvimento do leitor se dá pela intermediação de um narrador que assumidamente diz contar uma história. Ou de um herói que resolve contar sua história dentro de outra história. Enquanto “vemos” o filho Telêmaco agir, mantemo-nos distantes, à espera do herói. Quando o próprio herói intervém para contar de si (ao falar de seus infortúnios a Alcínoo, rei dos Feácios) é que nos sentimos atraídos para o centro de suas fabulações. Não parece mera coincidência que Odisseu acabe por inventar um passado e um nome para si ao reencontrar Penélope, já de volta a Ítaca. Ele só conseguiu voltar à sua terra porque soube, por meio de histórias inventadas, testar os outros, estimular-lhes a curiosidade, guiá-los para onde queria. Fez isso com Penélope, Eumaeus e Laerte, pai do herói. Na Odisséia, a palavra é, ao mesmo tempo, queda e salvação.

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O capítulo final da Odisséia costura, de forma circular, irônica, moralizante, o ciclo iniciado pelo capítulo inicial da Ilíada. Se no começo desta, vemos Agamenon e Aquiles brigando (em torno da apropriação pelo monarca da “mais-valia” do trabalho dos guerreiros/saqueadores), no final da Odisséia vemos o espírito de Agamenon e de Aquiles reecontrarem-se no Hades, desta vez mortos, estéreis, pacificados. Apesar dos horrores do Hades, para Odisseu a vida não vale ser vivida a qualquer preço. Por isso havia desprezado a oferta de imortalidade que Calipso lhe fez. Para o herói, voltar para morrer vale mais do que viver sem voltar.