22.5.11

a queda da casa de Usher


“The Fall of the House of Usher”, de Edgar Allan Poe, é um conto clássico de horror. Poe não chegou a inventar o conto de horror, mas foi o primeiro grande escritor do gênero, com especial predileção pela fronteira entre a loucura e o sobrenatural, pela imbricação entre um estado-limite da mente e uma realidade inapreensível e aparavorante.
Em “A queda da casa de Usher”, o protagonista-narrador recebe uma carta do seu colega de infância, Roderick Usher, que agoniza e pede que ele se hospede em sua casa, para consolar-lhe o fim da vida. Usher faz parte de uma família reclusa e misteriosa, cujos últimos representantes – ele e a irmã, Madeline – convivem na mesma casa e parecem próximos da morte. Por piedade ou fascínio, o narrador acompanhará a queda final tanto da família como da própria casa, o que será precipitado pelo enterro em vida da cataléptica Madeline e por sua vingança contra o irmão.
Poe procura criar uma atmosfera de mistério e de terror – de limite entre o verossímil e o inexplicával – por meio do contraste entre o relativo destemor ou ingenuidade do protagonista e o ambiente viciado e fantasmagórico que o cerca. A tensão do conto sustenta-se na inexplicável permanência do narrador numa casa e entre personagens amaldiçoados. Roderick é uma espécie de bruxo que definha, marcado por castigos e mistérios, Madeline, um espírito sombrio que os ronda, e a casa, com vida própria, carrega os pecados e maldições milenares em sua escuridão e noite permanentes. O primeiro contato do narrador, ainda sobre seu cavalo, já antecipa tudo – a sombra e a queda – quando, impressionado pela sensação de incompreensão e pavor que a casa lhe inspira (“an utter depression of soul which I can compare to no earthly sensation more properly than to the after-dream of the reveller upon opium”), ele olha o seu reflexo no lago em frente na esperança de desfazer-se daquele sentimento e acaba por abalar-se ainda mais com sua imagem invertida. 
Poe é menos econômico em “The House of the Fall of Usher” do que em outros contos. Aqui temos um texto muito adjetivado, hiperbólico no uso do vocabulário, como se ele fizesse um esforço para nos transmitir a sensação e a atmosfera de mistério e horror. Ainda assim, é um dos seus grandes contos, com um poema precioso incrustado em sua narrativa (“The Haunted Palace”, “O palácio mal-assombrado”) e um final que excede os limites da verossimilhança e adentra o mistério, com a fusão entre literatura e realidade, entre a história que o narrador lê para Roderick e a história que Poe nos conta.

19.5.11

diário de um fescenino


Rubem Fonseca é, ou foi, um grande escritor, pela agilidade de romances como “A grande arte” ou “Bufo & Spallanzani” e principalmente pelo caráter antológico dos seus livros de contos, de “Lúcia McCartney” e “Feliz ano novo” a “O cobrador” e “Romance negro e outas histórias”. Foi quem melhor retratou o Brasil urbano das últimas décadas e, em particular, a violência da sociedade e das relações, sempre com mordacidade e o melhor humor. A cada novo livro, era um prazer lê-lo, e a dúvida eventual sobre se se tratava de uma literatura fácil ou maior, derivada da enorme fluência da leitura, dissipava-se sempre, a cada passagem genial, a cada achado, na certeza de que se tinha diante dos olhos uma das obras mais impressionantes da literatura brasileira das últimas décadas.
Seus últimos livros não têm como apagar o passado, mas mostram como o escritor parece ter perdido o rumo e se acomodado com uma literatura menor. É difícil saber o momento de parar, seja pela esperança de retomar o gume, seja pelo embalo da notoriedade e da pressão dos leitores cativos.
Exemplo evidente dessa decadência é o “Diário de um fescenino”. Romance na forma de diário, conta a história de Rufus, o escritor em crise (já começa pelo clichê), que, na impossibilidade de avançar no seu bildungsroman, passa a escrever um diário em que vai registrando suas peripécias amorosas e seus comentários sobre sua obra e sobre a literatura em geral. De permeio, há encontros e traições com diversas mulheres (Henriette, Lúcia...), o romance duplo com mãe e filha (Virna e Clorinda), uma estadia no manicômio para fazer uma investigação, uma trama mal ajambrada de uma cilada e de uma acusação de estupro e muitas citações dos mais diversos autores e dele mesmo. Nada necessariamente bom ou ruim, não fosse a excessiva leveza, a displicência com que Fonseca concebeu e escreveu sua história. Sempre um excelente criador de diálogos, ele peca até nisso, embora se ironize de modo perfeito: “Estou treinando a forma dialogada de escrever. Tenho um bom ouvido, acho que estou indo bem, mas depois, na minha ficção, pretendo usá-la com extrema parcimônia. O diálogo é sabidamente um recurso de escritores medíocres.” Um pequeno exemplo de que o ouvido do autor não funcionou é esse diálogo entre Rufus e Lúcia, uma atriz:

            “-- Se você sabe a resposta, por que pergunta?
            -- Estou com uma raiva.
            -- Deixa essa cena para o palco.
            -- Seus livros dizem tudo. Você me diz uma coisa que me deixa encantada e de repente vejo que está num dos seus livros, igualzinho, faz parte do seu arsenal de torpedos velhos. Eles não explodem mais, entendeu?”

Ou a frase dita ao amigo Pedro Martins:
“-- Sou um espalhador de sementes. A civilização, esse processo evolutivo que sofremos, não deve corromper nossa pureza animal.”

Há um tom vulgar que acanalha o livro, como se vê claramente no capítulo sobre a separação de Rufus e Lúcia (10 de abril), e de modo geral na descrição das relações do protagonista com cada uma de suas amantes. Está lá o velho macho narcisista de sempre, tão constante em sua obra, mas o que falta dessa vez é um pouco de graça e sutileza para falar do grosseiro e do vulgar, uma das marcas mais características de Fonseca.
O melhor do livro são, afinal, os comentários bem humorados sobre os escritores e algumas citações divertidas:

''Conforme minha experiência, esses fãs que escrevem para os escritores são todos perigosos. Um sujeito certa ocasião me enviou uma carta dizendo que havia seguido o meu exemplo e abandonado o emprego e a família para se dedicar à literatura. O cara estava maluco, que família eu abandonei? Quem me abandonou foi a família. E que merda de dedicação é a minha? Cinco livros? As mulheres são ainda piores. Idealizam o idiota que escreve, se apaixonam por um mito, esperam que ele realize seus delírios alegóricos. Os escritores são maus amantes, maus amigos, más companhias.''
(...)
“-- Por que você se tornou escritor?
            A única resposta inteligente para essa pergunta é aquela do Montalbán, tornei-me escritor para ficar alto e bonito.”
            (...)
“Wilde tinha razão quando dizia “A man’s face is his autobiography. A woman’s face is her work of fiction.”

Fonseca chega mesmo a discorrer sobre a “síndrome de Zuckerman”, que ataca os que confundem personagem e autor, como outro judeu além de Philip Roth, Woody Allen, também exploraria com graça em seu “Deconstructing Harry”:

“Zuckerman é um personagem de Philip Roth, que decide escrever um livro. Quando o livro é publicado, o inferno de Zuckerman começa. Os leitores, ao se encontrarem com ele, fazem-lhe as piores acusações: Zuckerman, como você foi dizer aquela coisa horrível da santa sua mãe, Zuckerman, você é um homem mau, chamar o seu melhor amigo de ladrão; Zuckerman, você é um nojento, nunca pensei que fosse capaz de fazer aquelas coisas... Os leitores acreditavam que o personagem do livro era o alter ego do autor e que tudo o que ele dizia no seu livro se aplicava a ele e aos seus amigos e parentes, era o universo. (Roth descrevu a doença mas, na verdade, sempre demonstrou que estava cagando para os que acreditavam ser ele o alter ego de seus personagens. Porém são raros os escritores que pensam assim.) Todo leitor padece desse mal, mesmo aqueles que tem como profissão a crítica literária.”

O humor de Fonseca mal compensa a fraqueza do policial, a trama frouxa das traições. São momentos mordazes, mas hoje raros, que fazem lembrar remotamente o autor cortante que um dia escreveu contos que atingiram alguns dos pontos mais altos da ficção na literatura brasileira desde Graciliano, Guimarães e Clarice.

17.5.11

o invasor de Shady Hill

John Cheever atinge outro ponto altíssimo com o extraordinário “The Housebreaker of Shady Hill”. Não há nesse conto o brilho da idéia da travessia das piscinas do bairro como metáfora da queda (“The Swimmer”), tampouco o elemento poético e agridoce na construção de um personagem-escritor mais real e vivo que os personagens de um romance, como o Bascomb de “The World of Apples”. A história é interessante pelo estranho desvio de Johnny Hake, que, com as contas penduradas e a incapacidade de falar do fracasso à mulher e aos filhos, sucumbe ao impulso de roubar as casas dos amigos na vizinhança, uma reverberação do roubo do dinheiro da carteira do pai, que mal viu em sua vida. O personagem tem o seu apelo, essa figura ao mesmo tempo inconseqüente – como no abandono do emprego – e amargurada com seus próprios vícios, a começar pelos tiques e o tremor provocados pela idéia e pela prática do roubo.
O que torna o conto especial não é, no entanto, a história ou o personagem, por mais sólidos que sejam, mas a genialidade dos comentários e reflexões de Cheever, seja como observação social, seja como análise psicológica. Cheever mostra neste conto uma dicção e uma inteligência sutil à altura de outro autor cuja marca é justamente a sofisticação intelectual, seu conterrâneo e contemporâneo Saul Bellow. Ler contos como “The Housebreaker of Shady Hill” é observar o trabalho de uma mente extremamente afiada na captura do que surpreende em nosso mundo moderno, urbano e narcísico.
Tome-se, por exemplo, a descrição de personagens, casais, famílias. Primeiro, a descrição inicial do protagonista: “My name is Johnny Hake. I’m thirty-six years old, stand five feet eleven in my socks, weigh one hundred and forty-two pounds stripped, and am, so to speak, naked at the moment and talking into the dark.” Ou do casal Warburton, as primeiras vítimas do protagonista: “The Warburtons are rich, but they don’t mix; they may not even care. She is an aging mouse, and he is the kind of man that you wouldn’t have liked at school. He has a bad skin and rasping voice and a fixed idea – lechery.” E do tipo de festas que os Warburtons costumam dar: “It was the kind of party where everybody has taken a shower and put on their best clothes, and where some old cook has been peeling mushrooms or picking the meat out of crab shells since daybreak.” Ou de sua mulher, Christina: “Now Christina is the kind of woman who, when she is asked by the alumnae secretary of her college to describe her status, gets dizzy thinking about the variety of her activities and interests. And what, on a given day, stretching a point here and there, does she have to do? Drive me to the train. Have the skis repaired. Book a tennis court. Buy the wine and groceries for the monthly dinner of the Société Gastronomique du Westchester Nord. Look up some definitions in Larousse. Attend a League of Women Voters symposium on sewers. Go to a full-dress lunch for Bobsie Neil’s aunt. Weed the garden. Iron a uniform for the part-time maid. Type a two and a half pages of her paper on the early novels of Henry James (…)”, e assim vamos tendo uma idéia não só de Christina, mas de toda uma sociedade em que circulam os protagonistas, seus amigos e a mente de Cheever.
É também particularmente tocante a maneira como o protagonista examina de longe sua mãe solitária (“I thought of her now without rebellion or anxiety – only with sorrow that all our exertions should have been rewarded with so little clear emotion, and that we could not drink a cup of tea together without stirring up all kinds of bitter feeling.”) ou suas próprias angústias, como ladrão amargurado (“I had committed adultery, and the word “adultery” had no force for me; I had been drunk, and the word “drunkenness’ had no extraordinary power. It was only “steal” and all its allied nouns, verbs, and adverbs that had the power to tyrannize over my nervous system, as if I had evolved, unconsciously, some doctrine wherein the act of theft took precedence over all other sins in the Decalogue and was a sign of moral death.”
Talvez o final da história, com a reconversão de Hake após o convite para voltar ao emprego que largara, seja um tanto fácil ou convenientemente feliz. Mas não altera o fato de que “The Housebreaker of Shady Hill” é um dos grandes contos de Cheever.

15.5.11

pastoral americana


Philip Roth é um grande narrador e um refinado comentarista da vida moderna. Seu “American Pastoral”, apesar de um pouco longo para a história que conta, é um belo livro, que relata o inferno vivido por uma família-modelo de classe média americana aparentemente a caminho do paraíso na terra e no céu. A superfície plácida do sonho americano esconde muitas vezes o fio da tragédia. “Pastoral Americana” é um título que ironiza e homenageia o romance clássico de Theodore Dreiser, “An American Tragedy”. 
O “Sueco”, Seymour Levov, é um judeu, que nasceu em bairro de classe média judia e prosperou nos esportes, como grande atleta, nos negócios, herdando a fábrica de luvas do pai, e no casamento, ou assim ele achava. Essa pastoral americana implode quando sua filha adorada e gaga resolve entrar para a guerrilha urbana nos EUA contra a Guerra do Vietnã e explode o correio local, matando um médico que lá passava. Daí para diante é um desenrolar de novas dores: vida clandestina da filha, novos atentados, internação da mulher, assédio de supostos companheiros da filha na guerrilha, personalidade intrusiva do pai-patriarca, agressividade do irmão, decadência da fábrica, adultério da mulher, reencontro com a filha, que vira uma “jaina” (seguidora do jainismo), tudo nas costas do inabalável e invulnerável “Sueco”. "Invulnerabilidade" que o leva ao câncer e à morte. O livro é um recontar circular, pelo colega de escola do irmão e fã, tornado escritor bem sucedido, da pastoral inicial e da tragédia final que fazem a vida do “Sueco”.
Roth é genial no trágico: cria situações sufocantes, como os encontros de Levov com os companheiros da filha que o chantageiam, o reencontro com a filha no quartinho sórdido, o jantar final com suas alfinetadas, crises e uma cena memorável de adultério. Ele só é maçante, e não poderia ser diferente, no banal: cansam um pouco as descrições das atividades do ramo das luvas de couro e as digressões sobre o concurso de miss da mulher do “Sueco”. Exasperam até, porque Roth leva ao exagero a técnica de criar suspense e curiosidade no leitor pela quebra da narrativa principal, para entremeá-la com reflexões do passado ou descrições exaustivas do presente.
Essa auto-indulgência se observa também em alguns diálogos. O tempo psicológico, com as reflexões dos personagens, atrasa o tempo das falas, e o que se ganha em densidade se perde em verossimilhança. Mas, do ponto de vista técnico, Roth usa brilhantemente a narrativa em estilo indireto livre (“free indirect style”), em que a voz em terceira pessoa se funde aos pensamentos e ações do protagonista. O texto é narrado em primeira pessoa por um escritor que  relata a vida do protagonista, o que na prática generaliza a terceira. Mas a terceira contamina-se pela voz em primeira pessoa do protagonista, fechando o ciclo. A técnica é sutil, provoca empatia com o personagem, embora não seja muito fácil criar identificação com um protagonista socialmente correto ao ponto da auto-anulação, como o “Sueco” Levov.
“Pastoral Americana” é um bom exemplar da inspirada biblioteca legada pelos escritores judeus norte-americanos do pós-Guerra. Se Roth não atingiu aqui a altura de um Bellow ou de um Singer, juntou mais um romance à sua lista de grandes livros.

13.5.11

el Sur

Sobre o seu conto “El Sur”, o último do livro “Ficciones”, Borges diz no prólogo: “es acaso mi mejor cuento; básteme prevenir que es posible leerlo como directa narración de hechos novelescos y también de otro modo”.
“El Sur” é a história de um funcionário de biblioteca pública, Juan Dahlmann, neto de um pastor evangélico de origem alemã e de um militar que morreu romanticamente, alvejado por índios de fronteira. Juan afeiçoa-se mais pelo passado do militar e tem veleidades de gaucho urbano, saudoso de um sul que nunca viveu. Um dia, retornando à sua casa, fere-se no rosto com uma aresta de porta e adoece, com septicemia. Será internado e o acompanharemos sem saber se o que experimenta – a reclusão no hospital, a alta, a viagem ao Sul, as imagens do trem, a refeição num bar, a provocação, o duelo que o reconcilia com sua idealização do gaucho – é de fato algo que vive ou apenas um sonho ou delírio de doente. Juan é um alter-ego de Borges, o burocrata fascinado pela mitologia gauchesca, pela virilidade dos duelos, mas que mal poderia empunhar a faca (“su esgrima no pasaba de una noción de que los golpes deben ir hacia arriba y con el filo para adentro”).
Borges nos intriga no conto por induzir-nos a esperar uma solução aparentemente surpreendente, mas no fundo previsível (a de que tudo não passa de um delírio, à espera de que Juan volte a si) ou uma solução engenhosa e labiríntica a seu estilo (um eventual corte na cara durante o duelo imaginado/rememorado fecharia o ciclo do delírio ao fazer-nos retornar ao momento original do ferimento do rosto na porta), mas acaba por negar-nos um e outro. Concebe um final aberto, de expectativa em relação tanto ao resultado do duelo como à sua natureza mesma, realidade ou alucinação.
O que mais fascina em "El Sur" é a elegância com que é escrito, com belas passagens, especialmente sobre a viagem de trem, com seu toque nostálgico e ligeiramente onírico. Começa na cidade, após a saída do hospital (“La ciudad, a las siete de la mañana, no había perdido ese aire de casa vieja que le infunde la noche”), e segue pelas imagens da janela do trem (“y todas esas cosas eran casuales, como sueños de la llanura. (...) Todo era vasto, pero al mismo tiempo era íntimo y, de alguna manera, secreto”).
Embora menos espetacular em sua fantasia do que outras histórias de Ficciones, “El Sur” tem uma delicadeza e um tom contido, de trama e de linguagem, que nem sempre se encontram nos contos mais imaginosos de Borges.