2.5.11

o senhor das moscas


“Lord of the Flies”, de William Golding, é a história de um grupo de garotos em uma ilha deserta cuja convivência, ordinária no começo, aos poucos degenera no mais violento tribalismo. O escritor inglês revela uma natureza humana obscura e abominável, que se liberta quando desimpedida de constrangimentos sociais. Se o conterrâneo Orwell havia feito a parábola do regime comunista em “Animal Farm”, Golding faz em “Lord of the flies” a parábola dos homens em seu estado de natureza.
O autor cria um ambiente hermético, sem referências externas, à exceção das lembranças de casa do protagonista, Ralph, o único que sobrevive tanto à tentação do barbarismo quanto às barbaridades dos demais. Mal se sabe como as crianças chegaram à ilha, como sobreviveram à queda do avião; há uma críptica referência a uma guerra nuclear. Apesar do mar, a ilha sufoca, e a natureza desumaniza.
A violência ocorre num crescendo. De início, é a violência corriqueira das crianças: o deboche, o desejo de mandar, o egoísmo. Com a ação do meio e a ausência da autoridade, transforma-se na violência física, no terror, no ritual de sacrifício. São de imensa brutalidade as cenas de morte de Simon e de Piggy e o desaparecimento do tímido e assustado “littlun”, nome dado às crianças menores. O linchamento de Simon, culminando sua estranha trajetória e o ritual assustador da tribo em formação, tudo em meio ao pavor da besta e do temporal, é a passagem fundamental do livro. Ali, transpõe-se a fronteira entre o humano e o bestial.
Golding tem um estilo elegante. Como em Conrad, as descrições do ambiente natural revelam estados de espírito, uma atmosfera de sentimentos. Os diálogos são centrais, especialmente os das assembléias e dos confrontos entre os dois personagens que representam a razão e a barbárie, Ralph e Jack. O autor tem uma sensibilidade fina para desenhar crianças, com suas dúvidas, manias e ingenuidade.
O “senhor das moscas” representa a selvageria e é simbolizado no livro pela cabeça do porco cercada de moscas e espetada em pau fincado no chão, como as cabeças humanas de “Coração das trevas”. Como Conrad, Golding faz um belo livro sobre o íntimo bárbaro e insondável do homem.

1.5.11

o jardim dos caminhos que se bifurcam


Em “El jardín de senderos que se bifurcan”, de Borges, há dois núcleos independentes, dois temas, uma história e uma idéia, arbitrariamente conectados, que dividem nossa atenção. É a história da fuga, na Inglaterra, de um espião chinês que serve ao Governo alemão durante a Primeira Guerra e que, para transmitir a seus chefes o segredo da localização de uma nova base militar inglesa, irá assassinar um homem com o mesmo nome da cidade onde será instalada, Albert. Já a idéia imaginada por Borges é a de um “jardim de caminhos que bifurcam”, projeto e obsessão do falecido avô do espião chinês, que alguns pensam ser um labirinto gigantesco escondido nas montanhas, mas que na verdade é um romance na forma de labirinto, onde as partes se intercomunicam e subvertem a ordem normal do tempo e da narrativa. É uma espécie de livro-vertigem, que ninguém havia compreendido e que dá voltas sobre si mesmo, sem fim, idéia tão borgiana – infinita, absurda -- quanto a Biblioteca de Babel. “Creía en infinitas series de tiempos, en una red creciente y vertiginosa de tiempos divergentes, convergentes y paralelos.” A unir história e idéia há o sinólogo Stephen Albert, que revela ao protagonista o segredo do labirinto do seu avô e será, com sua morte, o mensageiro involuntário do segredo militar.
O conto seduz pela curiosidade que nos causam tanto a história do espião quanto a idéia do romance circular, mas não deixa de soar arbitrária a sobreposição de uma coisa e outra, como se Borges quisesse aproveitar num mesmo conto duas idéias intrigantes mas dissociadas.

a chave de vidro


“The Glass Key”, de Dashiel Hamett, é um legível e agradável “hard boiled crime novel” (romance policial noir). Hammet notabilizou-se por ser tão econômico quanto eficiente na apresentação de personagens e situações.
O centro aqui é a relação entre dois irmãos, Ned Beaumont e Paul Madvig. O primeiro, um Bogart inteligente, solitário, noturno, estóico, desambicioso, vela pelo irmão mais velho, que, embora menos sagaz, é dono da cidade, de sua vida noturna e aparato político e policial, num estilo mafioso suave. Beaumont contorna os problemas do irmão inconsciente e ingrato, mas sofre a dúvida sobre a inocência de Madvig no crime fundamental da trama. Hammett constrói de modo brilhante este Beaumont-Bogart e sua relação quase paternal, de amor e ódio, com Madvig.
O narrador é quase transparente. Na terceira pessoa, limita-se a apresentar os diálogos, a descrever brevemente os personagens e ambientes e a narrar os gestos (o charuto na boca, o olhar). Não opina, julga ou se estende em descrições desnecessárias. A trama aparece cristalina e desimpedida de reflexões. Hammett é um bom contador de histórias.
A “glass key”, como o “catcher in the rye”, de Salinger, aparece num sonho, mas desta vez não do protagonista, e sim da mocinha que compõe o triângulo amoroso com a dupla de irmãos. Janet Henry, a filha do senador, desejada por Madvig mas desejosa de Beaumont, sonha estar com este, ambos famintos e cansados, à porta de uma cabana no meio de uma floresta. Lá dentro, há comidas que eles percebem, e cobras que ignoram. Abrem a porta com uma chave de vidro, que se quebra. As cobras atravessam a porta e os atacam, e eles não podem trancá-las com a chave quebrada. É uma metáfora da busca de Janet pelo assassino do irmão.
O sonho é o único desvio da trama, mas não deixa de ser interessante o seu efeito suspensivo na sofreguidão do leitor interessado no desfecho.

à medida que uma mulher envelhece


O que encanta em J. M. Coetzee é o estilo seco, contido e profundo ao mesmo tempo. Sua sobriedade e economia fazem-no certeiro no que interessa: revelar o íntimo de um personagem, quase sempre em queda ou a caminho de um encontro consigo mesmo. É assim no brilhante romance “Disgrace”.
Não é muito diferente no conto “As a Woman Grows Older”. Elizabeth Costello é uma escritora australiana septuagenária que vai a Nice para encontrar a filha, que lá vive, e o filho, que mora nos EUA e está a caminho de uma conferência. Teme o conluio, ainda que seja um doce conluio para tê-la mais próxima. Não a convencerão, naturalmente, mas irão ouvir suas idéias sobre a morte, sobre o ocaso do cérebro, a história que está escrevendo. Até jogarão cartas juntos, e ela se surpreenderá com a facilidade com que ainda vence a ambos, com seu espírito visceralmente competitivo. Como em “Disgrace”, a relação entre um pai e um filho sempre parece excessivamente madura e fria, tardia e resignada.      
Coetzee é um pouco menos lacônico neste conto; dá mais liberdade aos pensamentos de um personagem que é ao mesmo tempo mulher e ficcionista. Há, no entanto, a desilusão e o senso de medida que estão em tudo o que escreve.

o apanhador no campo de centeio


“The Catcher in the Rye”, de Salinger, fala da trajetória solitária de um adolescente que não se ajusta ao seu papel. É uma pequena tragédia de fim-de-semana, uma sucessão de fracassos na vida de Holden Caulfield: expulsão da escola, brigas com colegas, virgindade e terror diante da prostituta, caminhadas pelo frio e pela chuva, solidão na noite. O protagonista-narrador sofre suas pequenas derrotas até a exaustão emocional e a internação. Tudo em tom resignado e derrotista.
A linguagem simples, coloquial, com muitas gírias, explica o enorme sucesso entre o público jovem. Salinger não descreve. O texto é só ação e pensamento. O autor chega a se auto-ironizar por meio do personagem Stradlater, que não consegue fazer uma redação descritiva para o colégio. Pede ao protagonista que a faça, algo como uma descrição de um quarto, mas este acaba por descrever-dissertar sobre a luva de beisebol do irmão Allie, morto prematuramente.
O melhor do livro são as memórias das pessoas queridas, o irmão Allie, a irmã Phebe e a paixão da infância, Janet, lembrada no belo capítulo 11. O carinho fraternal é o que há de mais puro em Caulfield; é seu vínculo mais forte com um mundo que não quer acolhê-lo. Ao lado de Caulfield, o outro personagem é Nova York, fria, chuvosa, quase deserta.
O “catcher in the rye” (apanhador no campo de centeio) é uma imagem que aparece num sonho do narrador: ele, num campo, à beira de um precipício, apanhando pequenas crianças que, ao brincarem distraídas, caminhavam para a queda. Um bonito título para um livro de Salinger que vai alem do seu charme adolescente.