31.12.11

guerra e paz - primeira parte


O que dizer de Liev Tolstói? Talvez o que mais impressione seja a sua capacidade de criar, à maneira de Balzac, um mundo próprio e auto-suficiente, vasto como a vida, todo um planeta extensamente povoado de personagens marcantes e seus, de tramas que vão e vêm como marés em toda a sua complexidade e inexorabilidade, de reflexões inteligentes sobre tudo e sobre todos. Em suma, uma monstruosa capacidade de escrever, de combinar a imaginação vertiginosa com a fluência absoluta da expressão, o divagar, o descrever, o narrar. Pode-se criticar uma parte ou outra de suas obras por ser previsível, ou mesmo dispensável. O que não se pode é desprezar o poder demiúrgico que poucos escritores como Tolstói tiveram de criar um universo.
Da leitura da primeira parte de “Guerra e Paz”, o que fica é justamente o assombro diante do inverossímil, inverossímil não na obra, que segue sem dor os cânones realistas e até históricos, já que se trata de um romance histórico, mas na fluência de Tolstói. Encerra-se a leitura do primeiro volume de mil páginas (eu tinha lido a versão francesa da Folio Classique, já que Tolstói escreveu várias partes em francês e não havia ainda a tradução do Rubens Figueiredo) com a impressão de que tudo ainda está no começo, de que o escritor desenterrou um mundo tão amplo e insondável, que aquilo é apenas uma amostra, um pedaço pequeno e visível de uma montanha.
Diversas histórias se cruzam – o desabrochar da bela Natacha, as dores do amor e da guerra para André, a relação entre o Príncipe Bolkonsky e a filha Maria, as danças e os bailes dos Rostov, o idealismo ingênuo de Nicolas, as dúvidas e a solidão de Pierre –, tudo contra o pano de fundo da guerra contra Napoleão, com os detalhes de cada batalha, da primeira salva alegre e ingênua do canhão, de cada movimento, cada paisagem vista na distância, na fronteira inimiga, cada ato de heroísmo ou tolice, cada dor da derrota. O romance não tem centro, é um vasto painel de uma época, de uma elite russa ao mesmo tempo afrancesada e em guerra contra a França, uma coleção intrincada de personagens marcantes e relações complexas que se constroem e desconstroem com o passar do tempo, com o deslocar de vidas e poderes entre Moscou, São Petersburgo, Austerlitz....
Se algo é referência maior talvez sejam as dúvidas do grande, gordo e benigno Pierre Bezoukhov, possível alter ego de Tolstói, com sua fortuna herdada, seu desprezo pela mulher ao mesmo tempo nobre e arrivista, seu fascínio súbito e naïve pela maçonaria, seu olhar perdido, sua inconveniente atração por Natacha:

“Pierre appartenait au nombre de ces hommes qui ne sont forts que quand ils se sentent absolument purs. Et depuis le jour où le désir s’était emparé de lui tandis qu’il se penchait sur la tabatière chez Anna Pavlovna, un sentiment inavoué de culpabilité paralysait sa volonté.”

É o personagem mais interessante de uma rede de personagens fascinantes, que falam e agem vivíssimos, com vida própria, uma das maiores virtudes de Tolstói. Basta um parágrafo para encher um personagem inteiro, um toque sutil que já diz muito, como essa breve descrição de Anna Pavlovna, anfitriã da festa que abre o livro:

“L’enthousiasme était devenu sa fonction sociale et il lui arrivait de se montrer enthousiaste alors même qu’elle n’en avait aucune envie, uniquement pour ne pas décevoir l’attente de ceux qui la connaissaient. Le sourire contenu qui jouait constamment sur le visage d’Anna Pavolovna, bien qu’il ne se harmonisât guère avec ses traits flétris, exprimait, comme chez les enfants gâtés, qu’elle avait conscience de ce charmant défaut dont elle ne voulait, ne pouvait et ne trouvait pas nécessaire de se corriger.”

Ou a descrição elogiosa do bom diplomata Bilibine (pg. 258), ou sutilmente irônica do militar Berg:

“Berg s’exprimait toujours avec précision, d’un ton posé et poli, et parlait uniquement de lui-même; quand la conversation roulait sur un sujet qui ne le concernait pas directement, il gardait calmement le silence, et il pouvait ainsi se taire pendant des heures sans en éprouver la moindre gêne, sans en provoquer chez les autres; mais aussitôt que l’entretien le touchait personnellement, il parlait d’abondance et avec un plaisir évident.”

Ou o hábito do sucesso no Príncipe Basile, tão astuto nas suas ações e tão seguro em seus ardis:

“C’était tout simplement un homme du monde qui avait réussi dans le monde et s’était fait de cette réussite une habitude.”

Tolstói é particularmente brilhante na descrição dos dramas interiores dos personagens, dos seus momentos de descoberta, dúvida ou perplexidade. Tome-se por exemplo, a esupefação de André com o seu próprio desejo de glória, em que se imagina capaz de tudo, de todos os sacrifícios, até da vida ou da família, em meio à desilusão da derrota em Austerlitz (p.435). Ou o misto de dúvida e de culpa que se apodera de Pierre no momento crucial em que é induzido pelo Príncipe Basile a pedir a mão de Helène, numa das cenas mais geniais do livro (p.353-354). Ao contrário de seu contemporâneo Eça de Queiroz, Tolstói constrói de modo magistral as cenas de amor e de anúncio de casamento, e são raros os trechos em que escorrega um pouco, e recorre a um clichê ou outro, a uma linguagem mais fácil do que o costume, como na hora de descrever a paixão que sente Natacha no momento em que avista André:

“La tête levée, les joues roses, essayant visiblement de contenir sa respiration haletante, elle le regardait. Et la vive lumière d’un feu intérieur auparavant éteint brillait de nouveau en elle. Elle était complètement transfigurée. De laide elle était devenu telle qu’elle avait été au bal.”

Logo em seguída, Tolstói corrige-se ao descrever o sentimento de André no momento em que decide casar-se:

“Le Prince André tenait ses mains dans les siennes, la regardait droit dans les yeux et ne retrouvait plus en lui le même amour. Quelque chose avait soudain basculé dans son âme: ce n’était plus l’enchantement poétique et mystérieux du désir, mais un sentiment de pitié pour sa faiblesse de femme et d’enfant, de crainte devant sa confiance et son abandon, et la conscience douloureuse et pourtant joyeuse du devoir qui le liait à elle à jamais. Le sentiment actuel, bien que moins lumineux et poétique, était plus grave et plus puissant.”

Um terceira cena genial de noivado reúne o cinsimo do pretendente e da pretendida, uma vez que Boris procura esconder certo sentimento de repugnância, ao passo que Julie parece exigir o que lhe cabe:

“-- Vous connaissez mes sentiments pour vous!...
Il n’était pas nécessaire d’en dire davantage; le visage de Julie rayonnait de triomphe et de vanité; mais elle obligea à lui dire tout ce qu’on dit en pareil cas, à lui dire qu’il l’aimait et n’avait jamais aimé aucune femme comme il l’aimait. Elle savait que pour les propriétés de Penza et les forêts de Novgorod, elle avait le droit d’exiger cela, et elle obtint ce qu’elle exigeait.”

Há outras cenas e passagens memoráveis no livro, como a caça das lebres e dos lobos, o papel de homens, cavalos e cachorros, a preparação, a coreografia no momento do bote, toda uma história à parte que já teria vida e luz própria (p.805-830).
Dizer que o livro só têm virtudes seria um exagero, já que há pontos da trama que pecam por certa inverossimilhança, por viradas ou reviravoltas que parecem atender mais ao oportunismo e à conveniencia do autor do que ao curso possível e esperado dos eventos. Como explicar que a intensa paixão de Natacha por André se transforme subitamente no enamoramento por Anatole? Nem a resistência da família de André nem a distância entre os dois parece dar conta do súbito desinteresse pelo amado, muito menos de uma paixonite por um Anatole tolo e vaidoso, tão diferente de André.
O que permanece do livro é, no entanto, a inteligência com que Tolstói constrói seus personagens centrais e descreve os dilemas que atravessam. Há um elemento de imponderabilidade na construção de algumas figuras (como é o caso de Pierre) que nos faz lembrar os personagens de outro genial conterrâneo seu, Dostoiévski. O que dizer do comportamento desse atormentado Pierre, que, no meio do maremoto emocional que envolve André e Natacha, dois de seus amigos mais próximos, consegue desenterrar o estranho sentimento que nutria há tempos, mais inconscientemente do que conscientemente, por Natacha e fazer-lhe uma críptica declaração de amor, inesperada até para ele mesmo? 

2 comentários:

  1. Acabei de ler o livro 1 da cosac e naify e é realmente imppressionante a capacidade de tolstoi de descrever, exprimir emocoes, construir enredos e tramas e capacidade de observacao. Sobre a inverossimilhanca que voce citou por exemplo no caso da paixao de Natasha por Andrei e por troca-la pela paixonite por Anatole, nao acho que seja tao inverossimil assim, ao contrario, achei bem de acordo com o carater e emocoes que Natasha demonstrou ao longo do livro ate o momento - extremamente voluvel com relacao ao amor e muito impressionavel por qualquer coisa.

    Muito boa resenha, parabens.

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  2. Obrigado pelo comentário. Talvez não seja mesmo um problema de verossimilhança, e sim de reprovação moral da conduta de um personagem. Tolstói nos envolve tanto nas histórias, que nos faz tomar partido em certas situações.

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