2.5.11

ruído branco

Don DeLillo escreve com fina ironia. “White Noise” é um delicado registro da vida moderna, de uma classe média cercada de informações e “gadgets”, de uma sociedade marcada pelo consumo e pela confusão entre realidade e mídia. É também um livro sobre a morte no mundo moderno: sobre como reagimos com frieza aos grandes espetáculos trágicos e exteriores, ao mesmo tempo em que, imersos no conforto familiar e no narcisismo, encaramos nossa própria morte como a violação mais acabada da ordem natural das coisas.
Jack Gladney é o protagonista narrador. É professor da cátedra sobre Hiltler numa universidade no interior dos EUA. Vive com sua quarta mulher e com quatro crianças de diferentes casamentos, seus e de sua mulher, Babette. Vivem moderníssima vida familiar, o consumo, a onipresenças das formas de comunicação. Um dia ocorre o espetacular: uma nuvem tóxica estaciona sobre a cidade e contamina o protagonista. Ao mesmo tempo, Babette tenta aplacar o medo de morrer participando de uma experiência com um remédio que reduz o pavor ante a morte. Para isso, ela tem de oferecer favores sexuais. O casal entra em parafuso pela mistura de medo, depressão, ciúme e doença, até que Gladney resolve se vingar do cientista que se aproveita de Babette.
A morte é vista com a ambigüidade que a vida moderna lhe confere. Digerimos grandes tragédias pela mídia, querendo mais. A morte alheia e espetacular confirma que estamos vivos. Já o conforto em família e o isolamento moderno criam a impressão de vida acabada e perfeita, que não pode se extinguir. Sem outra preocupação que não a própria existência, vem a obsessão com a idéia do fim, da extinção do eu. Para o narrador, invejoso do destemor dos antepassados, o pavor da morte é uma invenção moderna.
Delillo trata também da confusão entre ficção e realidade, simulação e existência. No mundo do espetacular, não apenas as tragédias apresentadas pela mídia compõem nossa fantasia. Também as tragédias que vivemos são espetaculares e, portanto, fantasiosas. As simulações programadas dos acidentes, das emergências, dos desastres são tão ou mais reais do que a realidade. A nuvem tóxica do livro é combatida por especialistas em eventos simulados; as simulações organizadas na cidade mobilizam a todos, mas o novo acidente real que se segue provoca indiferença ou desconfiança da população.
Essas idéias são mais interessantes do que a própria trama do livro, que é esgarçada por dois artifícios. O primeiro é a inverossimilhança da ocorrência de dois eventos raros e “high tech” em torno de uma mesma família, numa mesma época: a nuvem tóxica e o teste da pílula revolucionária. O segundo é a introdução de soluções fáceis, que levam ao desfecho final da vingança: o revólver dado pelo sogro, a descoberta do endereço do cientista pela química amiga de Gladney, a acusação de Babette quanto ao natural instinto assassino do homem traído. Quase que do nada, tanto material quanto psicológico, constrói-se de repente um assassino convicto.
Mas Delillo tem muitas habilidades narrativas que compensam fragilidades da trama. Uma delas é a capacidade de observar e comentar com muita ironia o novo mundo criado pelo consumo e pela mídia. São primorosas as descrições dos supermercados e os diálogos sobre cultura “pop” entre os professores universitários. Outra virtude é o seu olhar sensível da família contemporânea, a classe média de hoje, com seus filhos opiniáticos e pais acuados. Ele constrói de modo brilhante a intimidade familiar.
Delillo é um grande escritor, com sua ironia, inteligência, bom uso do diálogo e das elipses. Mesmo o tom um tanto acadêmico de professores que comentam a modernidade soa natural. Mais por este quadro de comentários sobre o mundo de hoje e sobre a morte do que pela trajetória da família Gladney, é que “White noise” (o ruído branco da morte e das ondas invisíveis que inundam o mundo moderno) é um belo livro.

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