2.5.11

admirável mundo novo

Ficção científica pode ser literatura de qualidade? Alguns citarão “The Time Machine”, de H. G. Wells, como um clássico do gênero. Não fiquei impressionado e diria um tanto candidamente que o delicado “Contact”, de Carl Sagan, me agradou mais. A mesma sensação que tive ao ler Wells, da dificuldade de fazer boa literatura com ficção científica, me veio da leitura de “Brave New World”, de Aldous Huxley.
Duas coisas incomodam no gênero. Primeiro, a tendência à rasura psicológica dos personagens, o que talvez se explique pelo justificado receio dos autores de construir psiquês à semelhança das de nosso tempo. Segundo, o didatismo da narrativa, que se esgarça para incluir explicações de como funciona, nos seus aspectos mais banais, o novo mundo. Embora seja um livro que estimula uma reflexão sobre os caminhos de nossa sociedade, “Brave New World” sofre daqueles dois males: os personagens não provocam empatia, e o mundo é apresentado como uma aulas para estudantes medianos, como na “palestra” dada pelo “Director of Hatcheries and Conditioning” nos primeros capítulos e no diálogo entre o “World Controller” Mustapha Mond e os transgressores já no final do livro.
O “admirável mundo novo” é de qualquer maneira instigante, ao menos como exercício de futurologia. Estamos no ano A.F. (F para Ford) 632, onde tudo se faz em nome da estabilidade social e política, após o cataclisma da guerra arrasadora dos dez anos, que inaugurou nova era. Nada que provoque dúvida ou incerteza é permitido: arte, religião, ciência especulativa ou contemplação solitária são banidas. Tudo se faz em nome da satisfação de todos, satisfação que é sensorial, física. Por meio do condicionamento (“hypnopedia” e treinamento pavloviano), de um alucinógeno (“soma”), da manipulação genética (castas biologicamente distintas) e de uma total liberdade sexual (e a eliminação das relações familiares), satisfaz-se o indivíduo com o máximo de respeito à ordem. Há um freudismo inerente à lógica do novo mundo: a satisfação dos impulsos sexuais é condição para a estabilidade do indivíduo e, portanto, para a tranqüilidade social e política.
Este mundo novo é confrontado com nosso velho mundo pela presença exótica do selvagem, o jovem John, que sai de uma reserva antropológica onde ainda imperam a religião, a família, a culpa e a contemplação. Mas o choque não é entre barbárie e civilização, mas sim entre duas formas incivilizadas e cruéis de organização. De um lado, o primitivismo das crendices e rituais bárbaros; de outro, a assepsia de um mundo expurgado da doença, da morte, da dúvida, da dor, da individualidade mental e, portanto, do humano. Huxley é profundamente pessimista e anti-utópico.
Ao mesmo tempo, e embora seja um livro de ficção científica, “Brave New World” é uma típica obra inglesa de sua época. Está lá, por exemplo, o confronto entre duas civilizações distintas, na descoberta do selvagem, fixação da Inglaterra colonial, como também em Conrad, em Golding, ou mesmo em Waugh de “A Handful of Dust”. Está lá também o fascínio do livro, da literatura, como revelação, no meio da barbárie iletrada. À semelhança da obra de Dickens no livro de Waugh ou do livro de navegação numa cabana perdida em “Heart of Darkness”, de Conrad, as obras completas de Shakespeare sobressaem como peça sagrada para John na reserva sem escrita ou literatura.
É do jovem John, aliás, e de suas descobertas, que aparece o melhor do livro. O capítulo VIII é uma bela coleção de histórias, contadas com sensibilidade e fluência, sobre o garoto, sua infância, a relação com a mãe, o conhecimento da exclusão e da morte, o contato com a palavra e a literatura. A memória como construção da realidade, em contraste com o mundo sem memória e sem passado do admirável novo mundo. É a palavra que dá forma e vida à realidade, como no ciúme que John sente do amante da mãe: “he never really hated him because he had never been able to say how much he hated him”.
Huxley entedia um pouco ao apresentar sua anti-utopia, mas convence quando revela o humano.

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