2.7.11

o milagre secreto


O tema principal do conto “El milagro secreto”, da seção “Artifícios” do livro Ficciones, de Borges, é a questão do tempo, sua forma e limites. Em que medida o tempo é linear ou cíclico, limitado ou infinito? Um instante é indivisível ou pode compreender uma hora, um dia, a eternidade?
Jaromir Hladík, um escritor de origem judaica, é preso em Praga pela Gestapo cinco dias após a invasão da cidade pelas forças alemãs, em março de 1939. Sua sentença à morte logo lhe é revelada, e ele terá de esperar dez dias para sua execução: a demora “se debía al deseo administrativo de obrar impersonal y pausadamente, como los vegetales y los planetas.” Nesses dias finais, imaginará execuções para si (com a expectativa de que “prever un detalle circunstancial es impedir que este suceda”), buscará consolo na idéia da eternidade de uma noite, de um momento (“mientras dure esta noche (y seis noches más) soy invulnerable, inmortal”) e acabará encontrando o verdadeiro refúgio na idéia de concluir sua única obra que lhe parece digna de permanecer, o drama em versos “Los enemigos”. Hladík dedica-se à tarefa, mas consciente do escasso tempo para concluí-la, implora a Deus um ano mais. Por meio de um sonho, Deus avisa que seu pedido será atendido.
No dia 29 de março, dia da execução, Hladík é conduzido ao pátio, os soldados perfilam-se à sua frente, o sargento dá a ordem final. Nesse momento, “el universo físico se detuvo. Las armas convergían sobre Hladík, pero los hombres que iban a matarlo estaban inmóviles (...). En una baldosa del pátio una abeja proyectaba una sombra fija (...). Hladík ensayó un grito, una sílaba, la torsión de la mano. Comprendió que estaba paralizado.” O escritor não podia mover-se, mas podia terminar sua obra, com o ano que lhe foi conferido. Não trabalhou para a posteridade, nem para Deus, “de cuyas preferências literárias poco sabía.” Após um ano, após terminar sua obra, o escritor soltou um grito enlouquecido e “la cuádruple descarga lo derrimbó.” 
“El milagro secreto” é mais um conto de Borges construído a partir de uma idéia fantástica e filosófica ou, melhor dizendo, fantástica porque nas fronteiras inapreensíveis do pensamento filosófico. A agonia de Hladík é mais um pretexto para Borges liberar suas deliciosas fantasias sobre o tempo. 

24.6.11

Herzog


Saul Bellow era desses raros escritores que combinavam uma inteligência muito privilegiada e uma espantosa capacidade de narrar e ironizar. À frente de Philip Roth, Bernard Malamud e Isaac Bashevis Singer, Bellow foi o personagem principal da geração de escritores judeus que fizeram o que há de melhor na literatura americana do pós-Guerra.
“Herzog” é um livro e tanto. Engraçado, auto-irônico, ao mesmo tempo sádico e compassivo com o protagonista, autobiográfico e, portanto, sádico e compassivo com o próprio Bellow. Diz-se que tudo que Bellow escreve é fortemente autobiográfico. Ao ler-se “Herzog”, com seu completo desnudamento do personagem, com a brilhante dissecação de suas fraquezas, idéias e fracassos, que revelam um ser inteiro, não se pode pensar que seja produto da imaginação. É Bellow em grande medida, embora nem por isso seja menos genial.
Com seu auto-exame permanente, com sua coleção de dramas e humilhações, Moses Herzog desperta grande empatia no leitor, que por ele se compadece ou com ele se diverte. As descrições que o apresentam de início já são impagáveis, pela ironia e concisão: “He went on taking stock, lying face down on the sofa. Was he a clever man or an idiot? (...) What sort of character was it? Well, in the modern vocabulary, it was narcissistic; it was masochistic; it was anachronistic. (…) Was he intelligent? His intellect would have been more effective if he had an aggressive paranoid character. (…) Resuming his self-examination, he admitted that he had been a bad husband – twice. (…) To his son and his daughter he was a loving but bad father. (…) With his friends, an egotist. With love, lazy. With brightness, dull. With power, passive. With his own soul, evasive”.
Herzog, o personagem, é um professor de vasta inteligência mas de pouco sucesso, que passa a vida (erros e desencantos) em revista, escreve cartas compulsivamente a destinários reais ou imaginários, vivos ou mortos, e pergunta-se, incerto de sua própria sanidade mental e emocional, se ainda tem alguma chance para o recomeço. Sua vida foi estraçalhada pela separação da segunda mulher: perdeu Madeleine, que amava, teve de afastar-se da filha June, que também amava, e perdeu também o melhor amigo, Valentine, que ficou com Madeleine. O ressentimento e a desilusão o corroem, por ter investido tanto na relação, por ter sofrido a sórdida traição e o triunfo magistral da mulher e do amigo que ajudara, e por temer que ambos maltratem a filha. O livro é uma sucessão de pequenas tragédias rememoradas, cômicas apenas pela ironia com que Bellow fragiliza e expõe Herzog, sem retirar-lhe no entanto uma dignidade que faz do leitor seu aliado. A única força que resta a Herzog é o seu charme já um tanto decadente, sua vitalidade ainda viril, seu gosto pelas mulheres, e em particular sua relação com Ramona, a ex-aluna européia-argentina, deusa do sexo e da conversa, que pede a ele que esqueça o passado e inaugure com ela uma vida nova.
Mas a revolta e as lembranças o assombram a todo tempo, como a imagem da separação, aquele exato momento em que Madeleine sentencia, agressiva e vitoriosa, que tudo acabou, que não há mais jeito. A cena é construída de modo sensível e sutil: há um contraste não apenas entre um Herzog passivo e acuado, que conserta a casa, e uma Madeleine exultante, segura de si, pronta para ir à vida, mas também entre a luminosidade que atravessa os vitrais e garrafas e o pensamento turvo e confuso de Herzog. A mensagem ali já está clara, embora Herzog só mais tarde a conheça e entenda: enquanto para ele a separação é fracasso e fim, para ela, é libertação e recomeço (“He realized that he was witnessing one of the very greatest moments of her life”). É o sinal de um triunfo e de uma crueldade quase patológica, que só aos poucos ele reconhecerá na ex-mulher.
Igualmente humilhantes para Herzog, e geniais pela ironia de Bellow, são as cenas do personagem com o amigo advogado Sandor, com o amigo zoólogo Lucas Asphalter, e com a tia de Madeleine, Zelda. Na cena com Sandor, Bellow chega a ser sádico na caracterização da passividade de Herzog e na frieza de Sandor, fazendo suspeitar que mais um amigo terá caído nos encantos da ex-mulher. Com Asphalter e sua melancolia pela perda da macaca querida, Bellow constrói um ambiente depressivo, fétido, decadente, patético, para revelar a Herzog a história da traição da mulher e dos supostos maus tratos à filha. Para completar o ultraje e desnudar de vez o protagonista, Tia Zelda irá dizer o quanto Madeleine se insatisfazia com a ejaculação precoce de Herzog.
Não é, no entanto, às custas do patético apenas que Bellow constrói seu personagem. Sua pena também é eficiente ao retratar o belo. Uma das cenas mais inspiradas do livro é a do fascínio de Herzog ao observar Madeleine se vestindo numa manhã já distante, do tempo em que ainda eram apenas namorados, ele um adúltero do primeiro casamento. É o encanto dele diante de uma Madeleine “se fazendo mais velha no banheiro”, maquiando-se, deixando intocada apenas sua “eyeball” (globo ocular), transformando-se como uma atriz, senhora de si e do novo personagem que emergirá do banheiro, completamente estranho àquele que saíra da cama. Ali, naquela cena sutil e inaugural, já se prenunciava o choque entre quem contempla e ama e quem executa e ignora. Antecipa-se o fim, em que Herzog pensa em matar Madeleine e Valentine, mas apenas consegue bater o carro em que carrega a filha, desperdiçando de vez a chance de ganhar sua custódia. Herzog não é um homem de ação; ele não sabe fazer as coisas. Sabe apenas pensar e escrever, pensar sobre assuntos completamente deslocados da realidade e escrever cartas que não enviará.
Saul Bellow é muito sofisticado na narrativa. Começa com a narrativa em terceira pessoa, mas o megulho na cabeça do personagem é tão profundo que o escritor, ao compartilhar as idéias e sentimentos de Herzog com o leitor, acaba por avançar para a primeira pessoa. O narrador pensa como Herzog, deixa que ele exponha diretamente seus pensamentos.
“Herzog” é também um livro em que Bellow discute idéias por meio de seu alter-ego. Professor e obsessivo, Herzog escreve cartas para todos e sobre tudo, o que dá a Bellow certa liberdade para discorrer sobre qualquer tema, sem soar professoral e didático. Seu romance não é mero pretexto para apresentar teses; as tese misturam-se na verborragia de Herzog, marcam sua desorientação e estabelecem uma pausa entre uma humilhação e outra. Mais do que um vendedor de idéias, o romancista deve ser um construtor de personagens, e é isso que Bellow faz de maneira refinada, seja na sucinta caracterização de uma figura secundária (como o erudito Shapiro, que “was not good-humored, although his face was a good-humored face”), seja na revelação dos personagens principais, como Madeleine, rica o suficiente em contornos e nuances, principalmente na relação com os pais, para que sua personalidade avassaladora não pareça caricatural ou inverossímil.
Saul Bellow é um grande retratista do homem moderno, este homem que pode ser ao mesmo tempo sofisticado de intelecto, cético de espiríto e inseguro de emoções. Com “Herzog”, Bellow atinge o alvo na mosca, criando um personagem que é ao mesmo tempo um retrato de si e de sua época.

18.6.11

os crimes da rua Morgue

Quão significativo é o fato de que a primeira história de detetive (que Edgar Allan Poe, o inventor, enquadrou numa categoria mais ampla que chamava de “tales of ratiocination”, “histórias de raciocínio”) tinha como assassino um orangotango? Seria a transição do gótico e do bestial, outro domínio por excelência do autor, para o analítico e o cerebral, passando pela figura híbrida do animal que também é um assassino?
“The Murders in the Rue Morgue” vale pelo ineditismo e pela inventividade do novo gênero que Poe inaugurava e que iria guiar tantos autores, de Conan Doyle a Agatha Christie, de Dashiell Hammett a Raymond Chandler, e toda uma indústria editorial própria. É a história do assassinato de mãe e filha (Madame e Mademoiselle L’Espanaye) e da descoberta do autor do crime por um leigo brilhante e excêntrico, o aristocrático e empobrecido Auguste Dupin. Para chegar ao orangotango, Dupin destrinchará a barafunda de informações dadas pelas testemunhas e reproduzidas nos jornais, visitará o local por meio de seus contatos parisienses e conduzirá seu amigo, e narrador da história, pelos meandros de seu processo de dedução. Apesar do inusitado da solução, o conto já se estrutura exatamente da maneira como o gênero das histórias de detetives iria consolidar-se um século mais tarde: apresentação de uma infinidade de pistas – verdadeiras e falsas –, intervenção da mente analítica e superior, narração da solução do caso com a introdução tardia de uma pista ou outra da qual o leitor não tinha conhecimento antes. Envolvendo tudo há uma névoa de incerteza, no limite da inverossimilhança, como se atesta por cenas como a do orangotango emulando o dono no movimento de barbear o rosto com uma lâmina.
Além dessa condição de peça inaugural, o conto tem ainda outras pequenas virtudes. Diverte pelo passeio pela Paris do século XIX e pela relação de admiração e crítica ante os franceses; Dupin, o dedutor, tinha de ser um francês, um cartesiano típico, mas o egocentrismo seria o preço, como nota o narrador e amigo (“I was deeply interested in the little family history which he detailed to me with all the candor which a Frenchman indulges whenever mere self is the theme.”). Também são interessantes as reflexões de Poe sobre os processos analíticos e perceptivos, as diferenças de capacidade mental, as virtudes do jogo do whist, em contraposição ao xadrez, o problema da coincidência e da possibilidade, a questão do foco do pensamento e da visão, como na bela reflexão sobre a maior acuidade do olhar oblíquo, de canto de retina. Poe inaugura não só o gênero das histórias de detetive, mas também a própria teoria que o fundamenta. 

16.6.11

Blue Note, Nova York

Não há como se mover no Blue Note. Se tivessem anunciado que Miles e Coltrane ressuscitaram e voltariam a tocar juntos esta noite, não caberia uma alma a mais.
O caminho até o palco é longo e estreito. Dave Brubeck está atrás do garoto do bar, com as duas mãos apoiadas em seus ombros, e seguem devagar, como duas crianças perfiladas na entrada do jardim de infância. “Jazz goes to kindergarten” seria um bom nome para um disco novo. O rapaz é um andador competente, gentil em seu silêncio. 
Ele sobe ao palco com a ajuda de Bobby Militello, o saxofonista, que tem fôlego e massa suficientes para erguer o quarteto inteiro. 
Senta-se ao piano em câmera lenta. 
É a terceira e última noite, antes da partida para Chicago, onde tocará com os filhos, no dia dos pais. Sente-se bem, os dedos sempre melhores do que as costas.
Não há como não fazer um agrado a Randy Jones. Randy sempre fica triste quando ele fala de Joe Morello nas entrevistas. Não é de mentir, e Randy sabe. Os jornalistas adoram perguntar sobre o “quarteto clássico”, sobre Paul, sobre Joe. Ele sempre diz que o quarteto atual é clássico em dobro, está junto há mais tempo do que o “quarteto clássico”. Mas como não elogiar Joe Morello quando perguntam sobre ele?
Com a voz rouca, quase um fiapo, anuncia “Take Five” para encerrar. Quando Randy começa seu solo de bateria, ele se levanta do piano e assiste de pé, no meio da música, ao solo do amigo. Aos 90 anos, não é fácil erguer-se sozinho, mas ele sabe que Randy ficará feliz ao vê-lo assim, de pé, em homenagem a ele.

7.6.11

a consciência de Zeno

“A Consciência de Zeno”, de Italo Svevo, não deixa de causar estranheza. É o relato, ao psicanalista, feito por um homem angustiado com suas manias – dores inexplicáveis, fumo compulsivo, obsessão por mulheres. Zeno Cosini, o protagonista, num exercício de auto-revelação, confessional, discorre sobre o percurso de suas fraquezas, e o resultado é o retrato de uma vida desinteressante, a história de um anti-personagem literário, mais marcada pela mediocridade e por uma discreta vilania do que por gestos generosos ou trágicos.
Zeno divide seu relato em cinco partes, as grandes questões da sua vida: o fumo, a morte do pai, o casamento, a amante, a associação comercial. No capítulo “Fumar”, revela a inconformidade com seu vício e a incapacidade de superá-lo, como se o grande vício fosse a compulsão de tentar abandoná-lo, sempre sem sucesso. A obsessão com datas inaugurais, com metas de refazer-se, dá a medida do personagem mediano que nos acompanhará o livro todo. “A morte de meu pai” é o capitulo mais tocante, pela relação de amor e ódio entre os dois, e pela agonia final do pai. Como diz Zeno, “eu compunha versos à sua memória, mas compor versos não é chorar”. O trauma da morte é resumido na frase exemplar do protagonista: “eu me lembro de tudo, mas não compreendo nada.”
Em “História do meu casamento”, Zeno relata a paixão por Ada, a rivalidade com Guido, as propostas frustradas de casamento a Ada e à irmã Alberta, e ainda a proposta bem sucedida à terceira e menos interessante das três irmãs, Augusta, sua mulher de vida inteira. O caso com Carla é contado em “A esposa e a amante”, em que Zeno revela todos os seus pequenos ardis e fraquezas na relação com as duas. Finalmente, em “História de uma associação comercial”, Zeno fala da relação profissional com Guido, seu concunhado e sócio, cujas aventuras financeiras levam a um desfecho trágico que nem Zeno, solidário e já sem o rancor pelo casamento de Ada com Guido, consegue evitar. O relato final ao psicanalista, em que Zeno critica o método, especialmente a ênfase no Complexo de Édipo, pouco acrescenta à construção de uma personalidade esmiuçada em suas facetas mais mesquinhas e baixas.
O mérito do livro é transformar o demasiadamente humano em literário, embora nem sempre a pobreza de espírito, para o bem ou para o mal, encante. Talvez seja isso que Joyce e tantos outros tenham admirado no livro de Svevo.