12.4.15

os detetives selvagens


Um dos temas centrais de “Los detectives salvajes”, de Roberto Bolaño, é a impossibilidade de apreender uma individualidade, de saber do outro. Mais do que uma obra sobre a literatura, com suas referências diretas ou indiretas ao baixo e ao alto clero da literatura mexicana e hispano-americana em geral, o livro é uma reflexão sobre a opacidade do indíviduo e sobre as possibilidades precárias, narrativas, apenas aproximativas, de se construir/compreender a identidade do outro.

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A ideia da busca do outro estrutura-se no livro como uma busca dupla, em dois níveis: os “protagonistas” Arturo Belano (alter ego de Bolaño) e Ulises Lima procuram desvendar a vida e a obra de uma poeta dos anos 1920, Cesárea Tinajero, que consideram uma precursora do movimento real-visceralista que os dois lideram; os leitores, por sua vez, como detetives em busca dos detetives, serão “apresentados” aos protagonistas sempre de maneira indireta, por aproximações, pela sobreposição de narrativas daqueles que entraram em contato com os dois, ouviram falar de suas vidas, viveram experiências já distantes no passado. Da mesma maneira que Cesárea é uma inspiração fugidia, mais mito que existência no imaginário dos dois (que sequer conheciam um poema dela), Arturo e Ulises nunca nos falam em primeira pessoa, nem nos aparecem por meio de uma terceira pessoa onisciente, confiável. Arturo e Belano ouvem o relato precário, alcoolizado, do velho Amadeo Salvatierra sobre Cesárea; nós lemos os relatos desencontrados, cacofônicos (ainda assim, quase sempre sedutores, brilhantes) das histórias que ajudam a formar, embora precariamente, suas identidades.

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No livro, a explicitação da busca de si mesmo, implícita ou não nas buscas do outro, é um breve interregno. Circunscreve-se à primeira e menor das três partes do livro. O jovem aspirante a poeta, García Madero, de 17 anos, que conheceu os protagonistas e ao fim os acompanhará numa fuga que é ao mesmo tempo a busca do passado de Cesárea, tenta dar conta, em seu diário, de uma identidade “em formação”, o jovem que começa a se definir afetivamente, sexualmente, artisticamente. Nesse esboço de Bildungsroman, mais sobre a iniciação sexual do que literária do narrador, envolvido com a garota María Font e a garçonete Rosaria, vemos um México provinciano, violento, mas um tanto romântico e alternativo, com seus personagens desviantes, adoravelmente loucos ou idealistas, como o pai de María, Quin Font.

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Os relatos da segunda parte do livro, a principal, compõem um mosaico vertiginoso, um labirinto de referências à vida de Arturo e Belano a partir das histórias daqueles que conviveram com os dois. Como em Balzac e sua criação de todo um arco de relações que insere e define o personagem, Bolaño traça uma complexa rede de relações em torno de Arturo e Belano, como se fosse a trama em torno do indivíduo que ajudasse a identificá-lo, a estabelecer uma identidade. Os ângulos são os mais diversos, da intimidade sexual ao ouvir dizer do meio social ou literário. Ainda assim, os relatos revelam muito mais sobre os depoentes do que sobre os retratados. O retrato do outro será sempre parcial, incompleto; nem a intimidade a dois permite o conhecimento. O indivíduo não é mais do que o conjunto de discursos daqueles que o cercam. Sua identidade, oblíqua, turva, narrativa, aproximativa, é literatura.

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Arturo e Ulises são espelhos, um do outro, ambos embaçados, envoltos numa névoa que se dissipa e retorna. Não conhecemos seus pensamentos. Conhecemos apenas seus atos, filtrados pela memória alheia. O ato faz o homem, embora nunca se saiba exatamente o que é o homem. Bolaño presta assim uma homenagem indireta aos autores que diziam rejeitar a psicologia, a narrativa psicológica, a começar por Borges. A ironia é que para sabermos algo sobre Arturo e Ulises, entramos na cabeça de todos os que, por suas vozes, relatam seus contatos com eles. Uma das façanhas do livro é justamente a montagem desse universo múltiplo, complexo de figuras que cercam os protagonistas e que nos são revelados também por sua riqueza psicológica.

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A busca de Cesárea por Arturo e Ulises, assim com a busca dos dois pelo leitor, é também a expressão de uma dor, a melancolia da impermanência do ser. Aquele que viveu, ao começar a desaparecer da memória alheia, passa a inexistir da forma mais completa, morto primeiro como ser, depois como imagem recordada. Daí a busca desesperada, irracional, em plena aridez e vazio dos desertos de Sonora, pela obra e vida de Cesárea, à beira do desaparecimento último. Daí a celebração do encontro de um de seus poemas, tão insubstancial quanto enigmático. No limite, não saberemos quem existiu, e por quê, como nos relata Luis Sebastián Rosado (p.353):

“Antes yo había hablado con algunos amigos, gente que se dedicaba a la historia de la literatura mexicana y nadie supo darme ningún dato sobre la existencia de aquella poeta de los años veinte. Una noche Piel Divina admitió que tal vez era posible que Belano y Lima se la inventaran. Ahora los dos están desaparecidos, dijo, y ya nadie puede preguntarles nada.”

Parte da revolta dos protagonistas ante figuras como Octavio Paz vem sim da disjunção entre o canônico e o marginal, mas também da indignação ante o fato de que o cânone representaria a superação do olvido, a suposta eternização de alguns poucos (justa ou injustamente), em contraste com o desaparecimento completo dos demais.

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Um dos propósitos da segunda parte, que contém os relatos dos conhecidos de Arturo e Ulises, é criar uma atmosfera de mistério, quase sempre esfumaçada, quase sempre duvidosa, em torno dos dois protagonistas. Em alguns casos, Arturo e Ulises revelam-se mais estranhos que interessantes, e o envolvimento do leitor com os testemunhos é afetado em alguma medida pela falta de carisma e charme dos dois. No mais das vezes, no entanto, os próprios depoentes, ou a maneira como enredam suas histórias, despertam o fascínio do leitor.

É extraordinário, por exemplo, o relato de Auxilio Lacouture, a uruguaia que se refugiou no banheiro da UNAM (Universidade Nacional do México) durante a invasão e a tomada da universidade pelos militares em 1968. Comove seu amor da poesia, dos poetas mexicanos, de Arturo Belano, do idealismo, da literatura e sua voz de resistência, uma voz tão romântica quanto latino-americana: assim lemos seus 10 ou 15 dias sem comer nem sair do banheiro da faculdade (pg. 190-199). Mais desconcertante é o depoimento de Xosé Lendoiro, advogado galego que conta a queda do garoto no fosso escuro e o resgate pelo vigia do camping, que vem a ser Arturo Belano. A relação com Arturo, que passa a namorar sua filha, a revista de poesia que Lendoiro edita, a autoimagem de gigante, a obsessão com o fosso e os urros diabólicos que vêm do buraco ajudam a compor uma história que impressiona pelo sombrio (p. 427-448).

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Os relatos mais marcantes são, no entanto, os que nos permitem compreender um pouco melhor as figuras de Ulises e Arturo. No caso do primeiro, a viagem a Israel e sua tortuosa paixão por Claudia. No caso do segundo, a fantástica viagem à África, em meio à guerra, à recorrência da doença, à aproximação da morte. Como para Marlow, em Coração das Trevas, de Conrad (um antecessor, e provável inspirador, de Bolaño na ideia do romance como busca de um personagem), o continente africano é para Arturo o lugar para perder-se, abandonar as angústias por meio do abandono da própria vida. A melancolia de sua trajetória africana, a consciência resignada de que há algo maior, diabolicamente e tragicamente maior, já é um reflexo do desejo de Arturo de desprender-se de uma existência anterior. Curiosamente, o leitor conhece um pouco melhor sua identidade justamente no momento em que Arturo quer desfazer-se dela. 

O romance se encerra com a retomada do diário de García Madero, agora descrevendo a viagem de carro pelo deserto, em parte fuga, pela proteção à prostituta María, perseguida por seu cafetão, em parte busca, pela visita aos vilarejos onde Cesárea viveu. Aqui vemos Arturo, Ulises e García Madero conjugarem seus desesperos.

Entre tantas virtudes, Bolaño é um extraordinário contador de histórias, e este seu “Los detectives salvajes”, publicado em 1998, ao apagar das luzes de um século marcado pela permanente desconstrução do romance, provavelmente sobreviverá ao esquecimento com um dos grandes romances latino-americanos do período.

2 comentários:

  1. quase 1 ano, desde essa última postagem, e eu encontro esse blog. a escrita - por aqui - cessou?
    se sim, é uma pena.

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    1. Obrigado. Pretendo voltar a escrever/postar quando terminar um romance já em fase final.

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