A relação, substantiva e
formal, entre a literatura e as demais formas de manifestação artística pode
ser tanto um bom tema como um instrumento de renovação da prosa de ficção.
Algumas linhas da literatura
brasileira das últimas décadas, especialmente a ficção urbana representada pela
figura maior de Rubem Fonseca e seus herdeiros, parecem influenciadas pelo
ritmo, caráter fragmentário, elíptico e essencialmente visual da narrativa do
cinema, o que gerou e continua a gerar algumas boas obras e outras menos
inspiradas. Mais recentemente começou a ganhar relevância, embora em escala
menor, outra vertente da literatura brasileira, que explora a interação entre a
prosa e as artes visuais, desenvolvida – com maior ou menor sucesso, com ou sem
uso de fotografias ao estilo Breton/Sebald – por escritores-artistas (ou
artistas-escritores), como Nuno Ramos, Verônica Stigger e Laura Erber.
Curiosamente, uma das tentativas
mais bem sucedidas na literatura brasileira contemporânea de estabelecer um
diálogo entre artes (e, portanto, de enriquecer formalmente a própria ficção)
foi realizada por Sérgio Sant’Anna num belo conto que aproxima a literatura não
do cinema ou das artes visuais, mas do teatro e da música.
“O concerto de João Gilberto
no Rio de Janeiro”, publicado pela editora Ática, em 1982, e reeditado agora pela
Companhia das Letras, é o conto principal do livro de Sérgio Sant’Anna que leva
o mesmo nome, e possivelmente um dos contos mais significativos do autor.
Centrado num show que João
Gilberto se recusou (no dia mesmo) a fazer no Canecão por inadequação de
acústica, o conto é uma interessante reflexão sobre o lugar do silêncio tanto
na música quanto na literatura. É no fundo uma defesa do não-dito
(não-emitido/não-pronunciado) como fundamento, por contraste, da própria arte,
seja ela musical ou literária. Somente a redescoberta do silêncio em meio à hipertrofia
de estímulos, à balbúrdia e à cacofonia restabeleceria o valor artístico do som
ou da palavra.
O tema do silêncio é
recorrente ao longo do conto. Já na cena inicial, no aeroporto em Nova York,
John Cage (compositor de pausas e silêncios) presenteia João Gilberto com uma
gaiola (“cage”) vazia, onde está o suposto pássaro da perfeição. João o leva
para o Rio e, tanto quanto o pássaro invisível e mudo, não cantará no dia do
concerto, para não quebrar o silêncio com o som inadequado, aquém da perfeição.
A economia do som (e da palavra) é a condição de sua qualidade, de seu impacto e
valor como arte.
Formalmente, Sant’Anna
traduz esse elogio à abstenção por meio de um texto recortado, uma colagem de vinhetas,
diálogos, citações e situações que realçam o silêncio e o vazio entre as cenas
e, por extensão, tornam cada cena mais expressiva: a chegada de João Gilberto e
Luís Carlos Prestes ao Rio; o comentário do diretor do Pinel, ao lado do
Canecão; a notinha da revista Amiga; os instantâneos de conversas de bar do
autor e seus amigos. Também ele, autor, precisa deixar de dizer para reforçar o
sentido de cada fragmento que ajuda a construir a sua história. Como se
buscasse o contraponto literário da parcimônia de João Gilberto e John Cage.
O diálogo interartístico no conto
não se limita à interação entre autor e compositor, entre ficção e música. Além
de João Gilberto, outro interlocutor do narrador/autor é o diretor Antunes
Filho. Sant’Anna não esconde seu interesse pelo teatro, o que se revela não
apenas nas incursões noturnas e reflexões do seu alter-ego narrador, mas na própria
montagem dos fragmentos do conto como sketches, pequenos números teatrais, em
que os personagens muitas vezes parecem mais representar do que ser ou estar:
Bob Wilson e Antunes como personagens de si; Caetano Velloso como repositório de
uma sabedoria inapreensível; o urubu mensageiro carioca como interlocutor do urubu
da Condor Filmes (ou mesmo do pato da Bossa Nova); o “autor” Sérgio Sant’Anna
como personagem do escritor Sérgio Sant’Anna. Num dos muitos exercícios de
metaliteratura no conto, Sant’Anna chega a citar o comentário de Silviano
Santiago de que seus personagens são acima de tudo atores, aos quais ele mal dá
a liberdade de se desenvolverem plenamente. Como no teatro, os personagens no
conto revelam-se muito mais por enunciação própria, nos diálogos, do que por uma
descrição ou caracterização psicológica intermediada pelo narrador.
Há no conto, na justaposição
e criatividade dos fragmentos, uma leveza de invenção e irreverência que,
ironicamente, também faz lembrar o cinema, o frescor jovem e criativo de um
Goddard dos anos 1960, no jocoso fingimento de não se levar muito a sério. De
um lado, vemos cenas que remetem a um Rio mitológico, insouciante, do Botafogo de Garrincha à Ipanema de Jobim, do
Canecão de João Gilberto ao Maracanã de Sinatra; de outro, descobrimos uma
riqueza de jogos e pequenos achados literários que dão graça e colorido à
narrativa.
Se há algo a questionar é o
desejo de Sérgio Sant’Anna de explicar alguns achados e truques que insere ao
longo do texto, como se precisasse certificar-se de que o leitor irá percebê-los.
O efeito é reduzir o charme e a sutileza de algumas das tiradas metaliterárias,
dos pequenos achados musicais, visuais ou verbais, tão frequentes no conto. Os
elementos de metaliteratura – a auto-referência a Sérgio Sant’Anna, o diálogo
com Silviano Santiago ou Rubem Fonseca, os dilemas explicitados do
autor/narrador na construção do conto sobre João Gilberto – são quase sempre
oportunos e mesmo necessários, mas em alguns poucos casos Sant’Anna retira do
leitor a graça de desvendar os seus enigmas por si só. Isso acontece, por
exemplo, na brincadeira do autor/narrador sobre o Hino Nacional (pg. 170), na
bela imagem do corpo branco sob a capa preta ao som da canção bicolor de Tom e
Chico (pg. 186) e, sobretudo, em alguns dos momentos em que Sant’Anna procura
analisar a estrutura e estilo do conto que está escrevendo (o texto como
ensaio, os fragmentos como integrantes de uma orquestra, o fragmentário como o
novo realismo, o comentário sobre Syberberg...). Uma coisa é a literatura que
se comenta pelo apelo do jogo de espelhos, e por toda a ressonância de
significados que gera; outra, a literatura que se explica como forma de legitimação.
Nesse último caso, o silêncio, como endossaria o próprio Sant’Anna, talvez fosse
a solução estilisticamente mais elegante.
São escolhas do autor no
sempre difícil equilíbrio entre o dito e o não-dito, e que mesmo ao juízo de um
leitor que pode se sentir subestimado, não tiram o brilho do conto. Para além
dos achados e jogos, Sant’Anna produz pequenas preciosidades de texto,
inseridas aqui e ali como frases despretensiosas (“Quando eu bebo, só tenho
medo no dia seguinte”) ou como metáforas simples (“O Planeta rolando
vertiginosamente no Cosmos e você ali boiando nas ondas do mar, como um
passageiro de primeira classe”), sempre com um ótimo efeito no desenrolar do
conto.
“O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro” é,
ao mesmo tempo, uma homenagem às figuras centrais da cultura brasileira
das décadas de 1960 e 1970 (como JG, Tom, Gláuber, Chico, Caetano, Antunes,
Rubem Fonseca...) e uma inventiva e divertida experiência de fecundar o conto
por meio do diálogo com a música e o teatro. Um belo show de Sérgio Sant’Anna
sobre o expressivo no-show de João
Gilberto.
Nenhum comentário:
Postar um comentário