22.7.12

a montanha da alma


Já se vão alguns anos desde que li “A montanha da alma” (“Soul Mountain”), de Gao Xingjian, o primeiro chinês a ganhar um Nobel de Literatura. Algumas lembranças fortes e, sobretudo, certa atmosfera onírica permanecem. Foi dos livros mais originais e impressionantes que já li.
Parte da melancolia que encanta no livro vem desse personagem que perambula pela China depois de ganhar uma segunda vida; já no começo, somos informados de que o protagonista havia descoberto que o laudo sobre sua suposta doença terminal estava equivocado, como de resto aconteceu com o próprio Gao Xingjian, erroneamente diagnosticado com um câncer de pulmão. Depois desse momento revelatório, o alter-ego de Gao irá percorrer o interior da China recolhendo histórias miúdas, locais, narrando ou testemunhando os acontecimentos como um personagem existencialista metido em vilarejos da imensidão chinesa, uma espécie de Roquentin ou Mersault fora do lugar.
Há histórias extraordinárias, de homens (o homem perdido na montanha; a menina contorcionista; o homem picado pela cobra; a prostituta), de rituais chineses (os festivais; o barco-dragão; os sacrifícios aos ancestrais), de animais (tigres; pandas que precisam de homens para alimentar-se). A graça maior está em seu entrecruzamento, na vertigem provocada pela sucessão e costura das histórias, pela maneira como se desdobram de fatos e sensações. Como diz Gao, “fiction is different from philosophy because it is the product of sensory perceptions” (“a ficção é diferente da filosofia porque é o produto de percepções sensoriais”).
Esse aspecto fabuloso e envolvente é reforçado pela maneira original como Gao multiplica suas vozes e pontos de vista. Há algo de hipnótico na alternância entre a narrativa em 1a pessoa (o protagonista em busca, ao longo do Yang-Tsé, da “realidade” que quase lhe escapa pela morte) e em 2a pessoa (a busca de Lingshan, a “montanha da alma”). A voz na 2a pessoa, narrada no presente, é elegantemente eficaz para expressar certo distanciamento e a sensação de irrealidade que o livro provoca: “In the orange-yellow sunlight of early morning, the mountain scenery is fresh and the air is clean, and it doesn’t seem that you had a sleepless night.” (“Na luz laranja-amarela do sol do começo da manhã, o cenário da montanha é fresco e o ar é limpo, e não parece que você passou a noite sem dormir.”)
“A montanha da alma” é um belo livro sobre associação e indistinção entre memória e realidade. O envolvimento não vem apenas do exótico, das histórias e a da atmosfera chinesa, mas da agradável estranheza causada pela maneira como Gao as desfia e tece. A certa altura, o protagonista, num exercício de auto-reflexão, afirma, “it seems in the end that I am just a connoisseur of beauty” (“parece que, no fim das contas, sou apenas um connoisseur de beleza”). Mais do que um mero conhecedor da beleza, Gao Xingjian produziu um dos romances mais enigmáticos e belos da literatura contemporânea.

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