Edgar Allan Poe é quase sempre hiperbólico no que escreve, o que, no seu caso, é antes uma virtude do que um defeito. Poe carrega na adjetivação, no uso de imagens e metáforas extremas para expressar o que está no limiar. Isso é particularmente perceptível nos seus contos que envolvem fenômenos da natureza que estão na fronteira do sobrenatural, ou já a ultrapassaram, como no exemplo de “A Descent into the Maelström” (“Uma descida no Maelstron”), já resenhado aqui.
Outro conto nessa linha é “Ms. Found in a Bottle” (“Manuscrito encontrado numa garrafa”), com que Poe, iniciando-se como contador de histórias, ganhou um prêmio de US$ 50 do “Baltimore Saturday Visitor”, em 1833. O narrador relata sua estranha experiência nos mares do sul. Seu navio, que partira de Java, é atingido por uma espécie de furacão de espumas, que mata todos os seus tripulantes, menos o narrador e um velho sueco. O navio será levado ainda mais em direção ao sul, à noite de um pólo navegável e onde, durante meses, não se pode conhecer o dia. Mais tarde, o navio entrará em novo redemoinho e, ao chocar-se com outra embarcação muitas vezes maior e mais pesada, o narrador acabará por cair nesse outro barco. A história centra-se na natureza misteriosa desse segundo navio, fantástico e antigo, onde tudo e todos são muito velhos, os tripulantes, os instrumentos, a madeira, o próprio navio, que faz lembrar um galeão espanhol de séculos anteriores. Os tripulantes, como fantasmas de outro tempo, não percebem a presença do intruso, que com eles não tem como interagir e limita-se a registrar em seu diário, no “manuscrito encontrado numa garrafa”, sua perplexidade, suas experiências e mais um abismo, agora de gelo, em que o navio misterioso sucumbirá.
Não é um conto à altura de “A Descent into the Maelström”. Não há em “Ms. Found in a Bottle” um evento único, cristalizador da história, mas uma sucessão de furacões e redemoinhos, o que fragmenta um pouco a narrativa e mina a própria credulidade do leitor, posta à prova a cada nova peripécia. Mistura-se o “sobrenatural” da natureza (os furacões, os redemoinhos, o pólo sul navegável) com o “sobrenatural” do homem (a sobrevivência do narrador, a tripulação fantasma) e o que se tem é um acúmulo de mistérios sem respostas, num conto que é sobretudo uma coleção de perguntas. Perguntas que, como todas as hipérboles de Poe, e apesar do charme das suas histórias, são sempre feitas com pontos de exclamação.