18.6.11

os crimes da rua Morgue

Quão significativo é o fato de que a primeira história de detetive (que Edgar Allan Poe, o inventor, enquadrou numa categoria mais ampla que chamava de “tales of ratiocination”, “histórias de raciocínio”) tinha como assassino um orangotango? Seria a transição do gótico e do bestial, outro domínio por excelência do autor, para o analítico e o cerebral, passando pela figura híbrida do animal que também é um assassino?
“The Murders in the Rue Morgue” vale pelo ineditismo e pela inventividade do novo gênero que Poe inaugurava e que iria guiar tantos autores, de Conan Doyle a Agatha Christie, de Dashiell Hammett a Raymond Chandler, e toda uma indústria editorial própria. É a história do assassinato de mãe e filha (Madame e Mademoiselle L’Espanaye) e da descoberta do autor do crime por um leigo brilhante e excêntrico, o aristocrático e empobrecido Auguste Dupin. Para chegar ao orangotango, Dupin destrinchará a barafunda de informações dadas pelas testemunhas e reproduzidas nos jornais, visitará o local por meio de seus contatos parisienses e conduzirá seu amigo, e narrador da história, pelos meandros de seu processo de dedução. Apesar do inusitado da solução, o conto já se estrutura exatamente da maneira como o gênero das histórias de detetives iria consolidar-se um século mais tarde: apresentação de uma infinidade de pistas – verdadeiras e falsas –, intervenção da mente analítica e superior, narração da solução do caso com a introdução tardia de uma pista ou outra da qual o leitor não tinha conhecimento antes. Envolvendo tudo há uma névoa de incerteza, no limite da inverossimilhança, como se atesta por cenas como a do orangotango emulando o dono no movimento de barbear o rosto com uma lâmina.
Além dessa condição de peça inaugural, o conto tem ainda outras pequenas virtudes. Diverte pelo passeio pela Paris do século XIX e pela relação de admiração e crítica ante os franceses; Dupin, o dedutor, tinha de ser um francês, um cartesiano típico, mas o egocentrismo seria o preço, como nota o narrador e amigo (“I was deeply interested in the little family history which he detailed to me with all the candor which a Frenchman indulges whenever mere self is the theme.”). Também são interessantes as reflexões de Poe sobre os processos analíticos e perceptivos, as diferenças de capacidade mental, as virtudes do jogo do whist, em contraposição ao xadrez, o problema da coincidência e da possibilidade, a questão do foco do pensamento e da visão, como na bela reflexão sobre a maior acuidade do olhar oblíquo, de canto de retina. Poe inaugura não só o gênero das histórias de detetive, mas também a própria teoria que o fundamenta. 

Um comentário: