1.6.11

Circe


“Circe” é um conto interessantíssimo de Cortázar. Aqui misturam-se duas das maiores virtudes do escritor: a atenção muito refinada ao contexto familiar, doméstico, de uma certa classe média da periferia bonaerense, e o gosto pelo fantástico.
É a história de Mario, um bancário de dezenove anos que se encanta por Delia Mañara, uma menina de uma família um tanto reclusa que perdeu dois noivos, o primeiro numa síncope, o outro num suicídio. O conto gira em torno do amor suave e paulatino de Mario, de seu ceticismo diante das desconfianças e das fofocas dos vizinhos a respeito desta Circe. Que há algo de estranho na vida dos Mañara e de Delia em particular, Cortázar nos indica desde o começo, pela referência à ninfa grega, pelo jeito esquivo da moça, sua curiosa relação com os bichos, pelas peculiaridades dos pais. O que deixa no ar é se atenderá à expectativa do leitor de que Mario não seja o terceiro noivo a morrer. O segredo de Delia – os bombons tão delicadamente artesanais e tão trabalhadamente gourmets que prepara escondem em seu recheio não apenas toques e gostos sutis, mas também o corpo de uma barata – só será revelado ao final, mas Cortázar se diverte deixando ao longo do texto pequenas pegadas do que estará por vir, fragmentos tão bem escondidos como o próprio inseto: a agulha no bombom (“Mario sintió un raro malestar, una dulzura de abominable repugnancia”); a textura interna (“la sensación agradable de encontrar un apoyo entre esa pulpa dulce y esquiva”); o gosto (“un dejo raramente salado (en lo más lejano del sabor) como si al final del gusto se escondiera una lágrima”); o comportamento de Delia (“a Mario le pareció un instante que su gesto ante la luz tenía algo de la fuga enceguecida del cienpiés, una loca carrera por las paredes”).
A excelência do conto está em que Cortázar vai diluindo esses detalhes e sinais em meio a um texto cuidadosamente costurado com observações saborosas sobre a vida dos Mañara, sobre os passeios, as tardes de ócio em que Mario os visitava, os progressos do noivado, e finalmente a descoberta da razão que levara à morte dos noivos anteriores. É o fantástico destilado a conta-gotas, de modo quase imperceptível, num contar anti-kafkiano, em que a barata é um personagem, mas não de forma ostensiva e chocante, e sim como um sabor secreto.

2 comentários:

  1. eu gosto muito do cortázar, mas esse eu não li. gostei do seu blog. beijos, pedrita

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  2. Gosto muito deste conto... Arrepiante.

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