7.5.11

el desbarrancadero


Se a função da literatura fosse a de edificar, o escritor colombiano Fernando Vallejo seria um praticante da anti-literatura. Seu romance com tintas autobiográficas “El Desbarrancadero” mistura uma brilhante violência verbal com um anti-humanismo militante que revolta e encanta ao mesmo tempo.
Vallejo nasceu em Medellín, e a primeira pergunta que vem à cabeça é se alguma outra cidade do mundo poderia produzir um escritor tão desencantado da vida e da humanidade. Medellín era a cidade mais violenta do mundo, com uma taxa de 140 homicídios por ano para cada cem mil habitantes (São Paulo, com toda sua violência, chegava a apenas 50). Nesse ambiente onde a vida é tão barata, onde é "mais fácil contratar um assassino de aluguel (“el sicario”) do que uma babá", Vallejo nasceu e cresceu, cercado de muitos irmãos em casa e de tiros e corpos pela rua.
Se em “La virgen de los sicarios”, Vallejo falava do inferno de sua cidade, neste “El desbarrancadero” ele conta as experiências de sofrimento e morte dentro de sua própria casa. É difícil saber o que há de verdadeiramente autobiográfico e de ficção no livro, mas o fato é que soa como um relato confessional de Vallejo a história em primeira pessoa de sua relação com a mãe fertilíssima (vinte filhos) e egocêntrica, com o pai sensível e estóico ao mesmo tempo, com o irmão aidético que ele ama como a ninguém mais e que sempre foi seu maior companheiro nas investidas homossexuais para aliciar as “bellezas” (os rapazes bonitos). A fotografia na capa da edição argentina mostra o próprio Fernando e o irmão abraçados quando tinham 4 e 3 anos, e Vallejo chega a fazer referencia à essa foto ao longo do texto.
O livro é estruturado em torno da agonia e da morte dessas duas figuras maiores e mais amadas na vida do autor, o pai e o irmão, o que corresponde aos dois momentos em que o narrador/Vallejo retorna do México, onde vive, para reencontrar a casa de Medellín, o ego da “Loca” (a mãe) e o próprio fantasma da morte, que cruza à sua frente e dialoga abertamente com ele. Vallejo tenta convencer-nos de que a morte em si é o elemento central do livro, e ele mesmo, à certa altura, com o humor de um Brás Cubas, diz-nos que é um narrador já morto, que morrera ao telefone justamente no momento em que soube da morte do irmão, moribundo há tanto tempo: “Me encontraron con el aparato en la mano, azuloso, translúcido, rígido, cual un San José estofado tallado en madera. Como no alcancé a colgar, la llamada desde Medellín le costó a Carlos (outro irmão), que fue el que la hizo, lo que valía esa casa. Bueno, dicen, yo no sé, ni me importa. A los muertos nos importa un pito lo que cuestan o no cuestan las casas.”; “Y en ese instante, con el teléfono en la mano, me morí. Colombia es un país afortunado. Tiene un escritor único. Uno que escribe muerto.”
É no seu ir e vir entre a cidade do México e Medellín, no reaparecimento das lembranças, no reencontro com os pais e os irmãos, que Vallejo vai destilando seu ódio, suas ilimitadas diatribes contra tudo e contra todos. Impreca contra a Colômbia, os presidentes, a Igreja, o México (país das propinas e da corrupção), a Nicarágua (“un país de borrachos y de bueyes que se agota en Rubén Darío, el poeta”), o Papa, Deus, Cristo (“imbécil que volviendo la otra mejilla abolió de un sopapo la ley de tálion e instauró la impunidad sobre la faz de la tierra”), a medicina, os negros (“perezosos por naturaleza, para lo único que sirven (y no siempre) es para el sexo”), as mães (“No sé por que la gente se avergüenza tanto de las enfermedades y jamás de sus madres. (...) Una madre vale otra madre y se acabó. Para arriba o para abajo, para adelante o para atrás, esto es una sola y la misma mierda.”), as laranjas, a reprodução humana e o crescimento demográfico, o homem (“En todo niño hay en potencia un hombre, un ser malvado. El hombre nace malo y la sociedad lo empeora.”), a família, a vida (“Que fumara, que tomara, que fornicara, que viviera que para eso estaba. O qué! Vá a dejar uno de vivir por cuidar de um sida? La vida es un sida.”)
A imprecação é a marca, o cacoete, o estilo de Vallejo, aparecendo a cada duas frases. A agressividade é tanto mais eficaz e corrosiva porque misturada ao humor: “Detesto la samba. La samba es lo más feo que parió la tierra después de Wojtyla, el cura Papa, esta alimaña, gusano blanco viscoso, tortusoso, engañoso.” O humor não dilui a desilusão e a tragédia; torna-as mais fundas. Nem o irmão Darío, tão amado, lhe escapa: “Los horrores que me hizo a mí no tienen cuento. Cuando el eminentíssimo doctor Barraquer me transplanto una córnea, Darío de un guitarrazo en la cabeza me desprendió la retina!”
O ódio é para quase tudo, o amor para poucos. Além do pai e do irmão já mortos, só ama os animais, as ratas do prédio de Nova York onde trabalhou, os cães sacrificados de outro irmão: “Amo a los animales: a los perros, a los caballos, a las vacas, a las ratas, y el brillo helado de las serpientes cuando las toco me calienta el alma. En cuanto a los que se llaman a si mismos “racionales” – blancos, negros, verdes o amarillos – ah, eso ya sí es otro cantar, mejor dejemos así la cosa.” Como em Coetzee, para Vallejo o humano já está fundamentalmente perdido; resta dar consolo aos animais que sofrem apesar de sua pureza.
Vallejo faz uso de um estilo solto, circular, vai e volta no tempo, nas lembranças, conversa com o leitor, com a própria editora/revisora, para que não o censure em suas diatribes contra figuras e valores sagrados. Há no que escreve uma curiosa mistura de iconoclastia e moralismo, um ataque a valores tradicionais e humanistas, e ao mesmo tempo uma condenação à corrupção, à mentira, aos desmandos, à ambição, à venalidade dos políticos, do clero, do homem. Talvez poucos autores consigam alcançar esse paroxismo da violência verbal sem perder o encanto literário. Depois do realismo mágico de García Márquez, a Colômbia nos dá esse ultra-realismo herético e diabólico de Vallejo.

2 comentários:

  1. Cuidado con lo que se dice. Todo lo que está escrito en la obra de Fernando Vallejo no es del todo cierto, por ejemplo en sus obras ha matado hermanas que todavía están vivas.
    En el desbarrancadero cuenta cosas y las exagera, en Medellín no es más caro un sicario que una niñera y, como expresa en la vida de los sicarios esta no es una ciudad de homicidos ni ladrones cada segundo. Se puede caminar por las calles con tranquilidad.
    Recuerden que al fin y al cabo es una novela literaria, no se crean el cuento así como lo creyeron los que leyeron cien años de soledad y pensaron que la historia era así. Entre la realidad política y la novela literaria aunque hay similitudes y encuentros, hay una distancia y sarta de mentiras, gracias a la imaginación del escritor. Y UN BUEN LECTOR DEBE SABER DIFERENCIAR ESO

    ResponderExcluir
  2. Obrigado pelo comentário. Coloquei aspas na frase sobre assassinos de aluguel e babás para ficar claro que são referências à obra de Vallejo. Como eu disse no texto, "é difícil saber o que há de verdadeiramente autobiográfico e de ficção no livro", mas o fato é que Vallejo, como escritores brasileiros ou de qualquer outro lugar, reflete uma realidade muito violenta, e isso não há como esconder ou ignorar.

    ResponderExcluir