27.1.13

Malagueta, Perus e Bacanaço


A vida não parece ter sido fácil para o paulistano João Antônio (1937-1996), o contista e cronista da malandragem e dos subúrbios de São Paulo e Rio, talvez o herdeiro mais competente do olhar marginal e inconformado de Lima Barreto. “Malagueta, Perus e Bacanaço”, a coleção de contos que o notabilizaria, teve de ser reescrita de memória, depois que os originais foram queimados num incêndio que deixou o escritor só com a roupa do corpo. Alguns anos depois, no final dos anos 60, João Antônio iria casar-se e logo largar mulher, filho, automóvel e trajes formais para se dedicar à literatura e se reaproximar da marginalidade que o fascinara como tema. A morte não lhe foi mais suave: morreu solitário em seu apartamento em Copacabana, e seu corpo só foi encontrado quinze dias depois.
Vida e obra talvez se completem na aspereza e na desilusão. Quando se lê um conto de João Antônio a impressão que fica é a de uma perdição estrutural, de personagens enredados nas armadilhas de seu meio e nos limites de suas capacidades e vícios. “Malagueta, Perus e Bacanaço”, conto que dá nome ao primeiro livro de João Antônio, é, juntamente com “Meninão do caixote”, um de seus textos mais interessantes e retrata, numa atmosfera de melancolia, de fim dos tempos, a malandragem das rodas de sinuca em bairros pobres de São Paulo.
O cafetão Bacanaço, o velho Malagueta e o menino Perus perambulam pela madrugada de São Paulo, de bar em bar, de bairro em bairro, em busca do jogo que lhes dê algum dinheiro. O bilhar é o meio precário de vida de que dispõem, e os três procuram aliar suas habilidades e misérias para arrancar um trocado de jogadores desavisados. João Antônio narra a trajetória do trio como a queda de um império já falido, em que a fome e a desesperança só fazem crescer quanto mais os protagonistas tentam superá-las. Conhecemos as visões diferenciadas dos três personagens em seqüência, um ponto de vista por vez, à medida que as tentativas de triunfo vão caindo por terra a cada bar (Paratodos, Salão Ideal, Celestino, Joana D’Arc, Jeca, Americano) e a cada bairro (Lapa, Água Branca, Barra Funda). Conforme a frase célebre de abertura de “Anna Karenina”, de Tostói, segundo a qual todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira, cada malandro de João Antônio reflete um modo particular de sofrimento, por mais homogêneos que sejam os constrangimentos que o meio social e econômico lhes impõe.
Talvez o melhor em João Antônio sejam justamente os perfis de personagens. Bacanaço, por exemplo, “era taco melhor, jogador maduro, ladino perigoso da caixeta, do baralho e da sinuca, moreno vistoso e mandão, malandro de mulheres. Camisa de Bacanaço era uma para cada dia.” Já o Sorocabana era “trouxa, coió-sem-sorte, andava esbagaçando um salário-prêmio recebido pelos vinte anos de trabalho efetivo na lida brava da estrada de ferro. Sim. Casado, três filhos, um homem de vida brava. Um inveterado, um pixote se metendo a gente, um cavalo-de-teta. E Bacalau (outro malandro) perguntava-se: “Para que trouxa quer dinheiro?”” Muitas vezes, os perfis traçados pelo autor incorporam a visão de mundo de personagens que, apesar de virem da periferia, reproduzem uma mentalidade conservadora”: Teleco, por exemplo, “vestida como homem, era mulher que gosta de mulher. (...) Àqueles ombros tarimba sobrava, que foram cinco os anos curtidos no pavilhão feminino do presídio da Alegria. À boca pequena, boquejava-se que lá Teleco se fartava, e quando em liberdade até estranhou e precisou arranjar uma amiga.” Ou no caso do malandro Caloi:

“Jogava que jogava Caloi. Osso duro de roer. Deu trabalho a muitos tacos, era um artista, era um cérebro, um atirador. Mas deu também para mulheres, e sua mão começava a tremer no instante das tacadas. Foi indo, indo, tropicando. Quando deu fé, parecia um galo cego que perdeu o tino. Deu, então, para a maconha e uma feita ficou célebre – vez em que um pixote lhe tomou quinze contos num dia de carnaval lá na rua Barão de Paranapiacaba. Aquilo o encabulou, arruinou o seu juízo de jogador. A maconha desfez o homem, lhe apodreceu o cérebro e Caloi acabou falando sozinho, feito um tantã de muita zonzeira lá num pavilhão do Juqueri.”

João Antônio combina gírias locais do submundo com linguagem formal na tentativa de retratar o universo particular da baixa marginalidade, dos malandros otários, que mais se enganam do que aos outros. Na maioria das vezes a mistura dos registros funciona bem e parece refletir o próprio desejo do malandro de florear seu discurso: “Qualquer palavra ganha dignidade na boca da polícia e ninguém ri. Ademais, Lima era um tira aposentado e ainda sustentava influências. Palavra dele tomava tamanho nas possíveis e inesperadas batidas da policia.” Ou: “E quando é madrugada até um cachorro na praça da República fica mais belo. Luz elétrica joga calma em tudo.”
Em outras situações, no entanto, o esforço de criar uma linguagem ao mesmo tempo fiel ao meio e rica do ponto de vista literário torna-se ostensivo, e o texto perde em naturalidade: “Chegara-lhes depois um vizinho safado empurrando-lhes a gana para bem longe.” Nesses casos, o uso excessivo de pronomes oblíquos em ênclise ou do pretérito mais que perfeito acaba por entrar em choque com a leveza e a coloquialidade do vocabulário. Em alguns momentos, João Antônio parece querer mostrar, a qualquer custo, seu rico arsenal de gírias, como se precisasse exibir os resultados de um trabalho antropológico. As longas enumerações soam um tanto artificiais: “o joguinho se aprende jogando, tudo o mais é ilusão, engano, embandeiramento, onde de otário”; ou “àquela tarde, tinham manha, tinham charla, boquejavam a prosa mole”. Quase sempre a enumeração é tripla: “E vão como viradores, sofredores, pés-de-chinelo.”
Mais do que registrar a linguagem de um meio, João Antônio parece querer reproduzir aquele mundo esquecido e marginal. Vale-se não só do vocabulário específico, mas também da descrição de jogos, truques e ambientes, especialmente dos botecos. O desejo de refletir uma realidade chega ao ponto de João Antônio introduzir no conto personagens “reais”, como o célebre “Carne Frita”, campeão brasileiro de sinuca, que interage com os personagens ficcionais.
Para Antonio Candido, “João Antônio faz para as esferas malditas da sociedade urbana o que Guimarães Rosa fez para o mundo do sertão, isto é, elabora uma linguagem que parece brotar espontaneamente do meio em que é usada, mas na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de uma estilização eficiente”. É sempre difícil cotejar autores. Se João Antônio conseguiu um feito semelhante ao de Rosa, é matéria controversa. Mas não há dúvida de que retratou, com fina observação e talento literário, um mundo até então pouco lembrado pela literatura brasileira.

10 comentários:

  1. Ainda não li, mas comprei o livro por 10 reais! João Antônio é um daqueles escritores ainda esquecidos pelo Brasil.Escrevi sobre o Leão de Chácara no blog
    http://literaturabr.blogspot.com.br/2012/08/a-leonagem-de-joao-antonio.html

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    1. Obrigado pelo comentário. O livro vale mais do que 10 reais. Aproveite.

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  2. Olá, Maurício. Conheci seu blog hoje, e numa olhada geral percebi que temos algumas opiniões semelhantes, como a de que Auster não sabe amarrar suas histórias, e que Um Punhado de pó, do Waugh e alguns contos de Cortázar são frouxos, apesar de serem bons escritores. E gosto muito de Proust, de Herzog e Lot 49. Minhas opiniões só não bateram mais com a desse blog porque não sei o que você acha de Sebald, Stendhal e Melville...

    Até.

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    1. Paulo, obrigado pelo comentário. Também gosto do Sebald e do Meville (mas dele só li Moby-Dick e alguns contos). Stendhal é coisa muito séria: curto mais do que o próprio Flaubert, outro monstro. Mas sofro do problema que você identifica na sua crônica "O livro impossível" (seu blog é ótimo): "quanto mais leio, menos leio", pela progressão do não-lido que descobrimos.

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  3. Não li muito Flaubert, mas o conto Un Coeur Simple tem algo de inexplicável que me faz gostar mais dele até que de Mme Bovary (mas não mais que do Vermelho e o Negro). Por sinal, penso que o romance de Flaubert de alguma maneira muito direta é um irmão mais velho de O Leopardo. Um me ressoa bastante o outro (mas são opiniões de leitor comum).

    O problema "quanto mais leio, menos leio" me é uma verdade cada vez mais retumbante. Não parei de ler um só dia de 2007 pra cá, mas minha lista (e a fila de livros na beira da cama) cresce cada vez mais.

    No mais, fico na espera de um texto sobre algum desses autores.

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    1. O Vermelho e o Negro é um dos meus romances favoritos. Tinha vontade de escrever algo sobre o livro aqui, mas na época em que li, já há um bom tempo, não fiz anotações. Seria temerário fazer comentários sobre um livro já tão comentado e canônico usando só a memória, que, no caso desse livro, é para mim tão afetiva quanto intelectual.

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  4. Olá Mauricio,

    Estou terminando de ler seu romance, e o que me faz cativo é o modo como você revela um interesse e um talento especiais nas possibilidades expressivas do diálogo na ficção (e esse atributo engradece os personagens enormemente.)

    Nesse ponto, há uma convergência de estilos entre sua prosa, a de Evelyn Waugh e Christopher Isherwood, na minha opinião.

    No "Memória", os personagens se revelam, se traem e se condenam pelo que dizem, enquanto o narrador mantém um certo afastamento; não há uma abstenção total do narrador, posto que ele não escapa impune a certos questionamentos morais e psicológicos.

    A personagem Marina é tocante e o capítulo em que narras a morte da personagem no Cruzeiro é antológico, visceral. Já voltei e o reli umas duas vezes.

    João Antônio soube ser, de um outro modo, sob outra perspectiva, um baita escritor. Ele, um autêntico outsider, viveu entre os tacos de sinuca e os botecos, entre a sordidez e a solidariedade; nos meio dos caídos, convalescentes, bandidos. Concordo quando você põe na mesa o quanto de cansaço causa certos maneirismos do João Antônio; mas isso passa e logo a azia vai embora (foi o meu caso, rsrsrs.)

    Rápido, sobre o Melville: numa época onde os altos índices de violência, a intolerância, os discursos políticos (insanos) e a desigualdade social beiram o absurdo, a arte parece investir cada vez mais nos extremos para atrair os olhares.

    São exposições de tripas humanas plastificadas, fotos reunindo dezenas de pessoas nuas, filmes de catástrofes, serial killers e invasões alienígenas, livros sobre conspirações históricas, códigos e escadas rolantes, e choques culturais entre o ocidente e oriente.

    O que os adeptos do denuncismo a base do tratamento de choque não sabem, porém, é que a duração de um tapa na cara não passa de alguns minutos, enquanto um simples gesto pode ser mais perturbador. O livro Bartleby, o escriturário, escrito por Herman Melville, é um exemplo disso.

    Com sutileza, o gênio de Herman Melville constrói Bartleby como a antítese de uma época onde os valores materiais e o trabalho adquiriram status de indispensabilidade e a ganância o maior dos atributos.

    Seu personagem, sem nem precisar falar, consegue inverter essa lógica e coloca os leitores diante de um dilema paradigma – quem tem a vida mais absurda?

    Em meio aos monstros, pastores horrendos, pedófilos, escroques de gravata, terroristas e assassinos, a renúncia silenciosa do inofensivo Bartleby é a que causa mais destruição.

    Valeu, e espero que você segure a peteca. O "MEMÓRIA DA PEDRA" é um aceno significativo e dignificante de que nós temos um longo, belo (e árduo!) caminho a percorrer. Livraço, como dizem e como eu gosto de dizer.

    Arsenio Meira Junior

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    1. Arsenio,
      Andei um pouco distraído do blog e só agora vi seu comentário, que me deixou muito contente. Obrigado pela leitura do Memória da Pedra e pela maneira generosa como você falou do livro. Interessante o que você disse sobre o distanciamento do narrador. Por ser ser a principal forma de revelação, o diálogo permite sim o afastamento do narrador, mas, como você nota, não há isenção moral, não há neutralidade possível. Como o narrador está de certa maneira colado ao protagonista da cena (quase sempre Eduardo, mas também Gilberto ou Laura), sua visão é marcada pelos dilemas enfrentados pelo personagem. Não é uma narrativa numa 3a pessoa neutra, onisciente, e sim uma 3a circunscrita ao pensamento de 1a pessoa, (free indirect speech, na expressão do James Wood). É o tipo de narrador que mais me agrada (revelador da psicologia do personagem sem o aspecto abertamente confessional da 1a pessoa). E foi o que tentei fazer no livro. Obrigado também pelo comentário sobre o capítulo do cruzeiro, que foi o que mais me emocionou no longo processo de elaboração do livro.
      Bartleby já estava na minha lista de prioridades, e subiu ainda mais com suas observações.
      Um abraço.

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  5. Mauricio, verifiquei que esse blog é bastante variado e recheado de conteúdo significativo não só de literatura e letras como de outros temas de humanidades. Parabéns.

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