A vida não parece ter sido fácil para o paulistano João Antônio (1937-1996), o contista e cronista da malandragem e dos subúrbios de São Paulo e Rio, talvez o herdeiro mais competente do olhar marginal e inconformado de Lima Barreto. “Malagueta, Perus e Bacanaço”, a coleção de contos que o notabilizaria, teve de ser reescrita de memória, depois que os originais foram queimados num incêndio que deixou o escritor só com a roupa do corpo. Alguns anos depois, no final dos anos 60, João Antônio iria casar-se e logo largar mulher, filho, automóvel e trajes formais para se dedicar à literatura e se reaproximar da marginalidade que o fascinara como tema. A morte não lhe foi mais suave: morreu solitário em seu apartamento em Copacabana, e seu corpo só foi encontrado quinze dias depois.
Vida e obra talvez se completem na aspereza e na desilusão. Quando se lê um conto de João Antônio a impressão que fica é a de uma perdição estrutural, de personagens enredados nas armadilhas de seu meio e nos limites de suas capacidades e vícios. “Malagueta, Perus e Bacanaço”, conto que dá nome ao primeiro livro de João Antônio, é, juntamente com “Meninão do caixote”, um de seus textos mais interessantes e retrata, numa atmosfera de melancolia, de fim dos tempos, a malandragem das rodas de sinuca em bairros pobres de São Paulo.
O cafetão Bacanaço, o velho Malagueta e o menino Perus perambulam pela madrugada de São Paulo, de bar em bar, de bairro em bairro, em busca do jogo que lhes dê algum dinheiro. O bilhar é o meio precário de vida de que dispõem, e os três procuram aliar suas habilidades e misérias para arrancar um trocado de jogadores desavisados. João Antônio narra a trajetória do trio como a queda de um império já falido, em que a fome e a desesperança só fazem crescer quanto mais os protagonistas tentam superá-las. Conhecemos as visões diferenciadas dos três personagens em seqüência, um ponto de vista por vez, à medida que as tentativas de triunfo vão caindo por terra a cada bar (Paratodos, Salão Ideal, Celestino, Joana D’Arc, Jeca, Americano) e a cada bairro (Lapa, Água Branca, Barra Funda). Conforme a frase célebre de abertura de “Anna Karenina”, de Tostói, segundo a qual todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira, cada malandro de João Antônio reflete um modo particular de sofrimento, por mais homogêneos que sejam os constrangimentos que o meio social e econômico lhes impõe.
Talvez o melhor em João Antônio sejam justamente os perfis de personagens. Bacanaço, por exemplo, “era taco melhor, jogador maduro, ladino perigoso da caixeta, do baralho e da sinuca, moreno vistoso e mandão, malandro de mulheres. Camisa de Bacanaço era uma para cada dia.” Já o Sorocabana era “trouxa, coió-sem-sorte, andava esbagaçando um salário-prêmio recebido pelos vinte anos de trabalho efetivo na lida brava da estrada de ferro. Sim. Casado, três filhos, um homem de vida brava. Um inveterado, um pixote se metendo a gente, um cavalo-de-teta. E Bacalau (outro malandro) perguntava-se: “Para que trouxa quer dinheiro?”” Muitas vezes, os perfis traçados pelo autor incorporam a visão de mundo de personagens que, apesar de virem da periferia, reproduzem uma mentalidade conservadora”: Teleco, por exemplo, “vestida como homem, era mulher que gosta de mulher. (...) Àqueles ombros tarimba sobrava, que foram cinco os anos curtidos no pavilhão feminino do presídio da Alegria. À boca pequena, boquejava-se que lá Teleco se fartava, e quando em liberdade até estranhou e precisou arranjar uma amiga.” Ou no caso do malandro Caloi:
“Jogava que jogava Caloi. Osso duro de roer. Deu trabalho a muitos tacos, era um artista, era um cérebro, um atirador. Mas deu também para mulheres, e sua mão começava a tremer no instante das tacadas. Foi indo, indo, tropicando. Quando deu fé, parecia um galo cego que perdeu o tino. Deu, então, para a maconha e uma feita ficou célebre – vez em que um pixote lhe tomou quinze contos num dia de carnaval lá na rua Barão de Paranapiacaba. Aquilo o encabulou, arruinou o seu juízo de jogador. A maconha desfez o homem, lhe apodreceu o cérebro e Caloi acabou falando sozinho, feito um tantã de muita zonzeira lá num pavilhão do Juqueri.”
João Antônio combina gírias locais do submundo com linguagem formal na tentativa de retratar o universo particular da baixa marginalidade, dos malandros otários, que mais se enganam do que aos outros. Na maioria das vezes a mistura dos registros funciona bem e parece refletir o próprio desejo do malandro de florear seu discurso: “Qualquer palavra ganha dignidade na boca da polícia e ninguém ri. Ademais, Lima era um tira aposentado e ainda sustentava influências. Palavra dele tomava tamanho nas possíveis e inesperadas batidas da policia.” Ou: “E quando é madrugada até um cachorro na praça da República fica mais belo. Luz elétrica joga calma em tudo.”
Em outras situações, no entanto, o esforço de criar uma linguagem ao mesmo tempo fiel ao meio e rica do ponto de vista literário torna-se ostensivo, e o texto perde em naturalidade: “Chegara-lhes depois um vizinho safado empurrando-lhes a gana para bem longe.” Nesses casos, o uso excessivo de pronomes oblíquos em ênclise ou do pretérito mais que perfeito acaba por entrar em choque com a leveza e a coloquialidade do vocabulário. Em alguns momentos, João Antônio parece querer mostrar, a qualquer custo, seu rico arsenal de gírias, como se precisasse exibir os resultados de um trabalho antropológico. As longas enumerações soam um tanto artificiais: “o joguinho se aprende jogando, tudo o mais é ilusão, engano, embandeiramento, onde de otário”; ou “àquela tarde, tinham manha, tinham charla, boquejavam a prosa mole”. Quase sempre a enumeração é tripla: “E vão como viradores, sofredores, pés-de-chinelo.”
Mais do que registrar a linguagem de um meio, João Antônio parece querer reproduzir aquele mundo esquecido e marginal. Vale-se não só do vocabulário específico, mas também da descrição de jogos, truques e ambientes, especialmente dos botecos. O desejo de refletir uma realidade chega ao ponto de João Antônio introduzir no conto personagens “reais”, como o célebre “Carne Frita”, campeão brasileiro de sinuca, que interage com os personagens ficcionais.
Para Antonio Candido, “João Antônio faz para as esferas malditas da sociedade urbana o que Guimarães Rosa fez para o mundo do sertão, isto é, elabora uma linguagem que parece brotar espontaneamente do meio em que é usada, mas na verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de uma estilização eficiente”. É sempre difícil cotejar autores. Se João Antônio conseguiu um feito semelhante ao de Rosa, é matéria controversa. Mas não há dúvida de que retratou, com fina observação e talento literário, um mundo até então pouco lembrado pela literatura brasileira.