Abri “Jerusalém”, romance do
português Gonçalo M. Tavares, com a melhor das expectativas. Um livro premiado de
um autor freqüentemente enaltecido por sua obra de ficção e pela sensatez e
conhecimento com que faz seus comentários sobre literatura. Fechei-o, no
entanto, com a sensação de ter lido um bom escritor, mas de não ter me
envolvido com seus personagens alegóricos nem me impressionado com os elementos
inventivos de sua narrativa.
“Jerusalém” é a história de
uma série de relações de opressão e violência. Personagens construídos quase
como alegorias, como tipos ideais de sentimentos ou condições (Mylia, a oprimida;
Theodor, o cerebral; Ernst, o amante louco; Hanna, a prostituta; Hinnerk, o
violento; Kaas, o frágil) encontram-se e ferem-se em um meio marcado pela
experiência do passado como catástrofe coletiva (a guerra; o Holocausto; a
história do horror) e pela iminência da tragédia pessoal.
Gonçalo Tavares enreda os
personagens numa narrativa que vai e volta em suas vidas e revela aos poucos,
como num quebra-cabeça, os elementos quase sempre traumáticos que os unem. Há engenho
na maneira como o autor nos surpreende e revela a trajetória de cada um, como
quando descobrimos, já no capítulo 9, o que uniu Mylia e Ernst, tenuamente
interligados no começo do livro e, antes, companheiros de hospício, perdidos no
emaranhado de personagens e manias ao redor. Os títulos dos capítulos com
combinações de nomes de personagens já antecipam essas relações e têm um apelo
de concisão e elegância, embora a rearrumação dos nomes comece a parecer menos
intrigante conforme se avança no livro.
Embora articulados de
maneira engenhosa, os personagens de “Jerusalém” parecem descarnados, rasos. São
antes veículos de dores e mensagens do que figuras de carne e osso literário. Ao
analisar a obra de Thomas Pynchon, James Wood chama a atenção para as
dificuldades e riscos na criação de personagens alegóricos. A ousada aposta de
Kafka nem sempre dá certo quando não se é Kafka. Foi a sensação que tive ao ler
a história de Mylia, Ernst, Theodor e demais personagens de “Jerusalém”. Sua
natureza esquemática, opaca, nos impede o envolvimento. Acompanhamos suas
histórias, mas por falta de empatia não as sentimos e vivenciamos. O próprio
uso do tempo presente da narrativa, embora agilize a trama e dê um sentido de
urgência e iminência ao registro de cada personagem, acaba por agravar a
sensação de que os vemos de forma plana, estereotipada, vazios de conteúdo.
Também há certa
artificialidade e caricatura na maneira como Gonçalo Tavares nos revala
horrores já conhecidos. O problema de repetir em ficção a denúncia de horrores
óbvios, como o Holocausto, a guerra ou a violência dos hospitais psiquiátricos,
é que, por seu caráter extremo, tais flagelos não comportam ambigüidade e
dúvida e não há como pintá-los em cores e tons variados. O uso do preto e do
branco em literatura quase sempre assoma como esquemático. Veja-se, por exemplo, a
seqüência de capítulos intitulados “Europa 02”: são descrições curtas de aspectos de uma espécie
de prisão ou mundo kafkiano, que lembra um campo de concentração. O autor
procura introduzir elementos inovadores na forma (a linguagem de manual, os
subtítulos escritos na vertical da página), pela simples dificuldade de ser
original ou ambíguo na própria matéria tratada.
Há passagens fortes no
livro, que revelam uma aguda sensibilidade de Gonçalo Tavares para o tema da
vulnerabilidade humana ou da violência. Especialmente marcante é a imagem de
Kaas, o filho frágil e risível de Theodor, no momento em que ouve, na iminência
da briga com um colega de escola, a frase mais ofensiva e humilhante que um
garoto pode ouvir:
“(...) estavam assim os dois
naquele instante único onde o contato físico violento é inevitável e quase
imprescindível, quando subitamente o seu opositor, como que lembrando-se
naquele momento de algo que se esquecera com os insultos trocados, parou, e
afastando-se num movimento que em outras condições seria indiscutivelmente
considerado como cobarde, afastando-se, então, disse, para Kaas: eu não posso
lutar contigo.”
O mesmo Kaas, humilhado pela
recusa do mais forte em espancá-lo, irá surpreender-nos com o gesto aparentemente
gratuito contra a avó.
Algumas passagens
iluminadoras no livro convivem com trechos e imagens desnecessários. Gonçalo
Tavares é um escritor prolífico e, no romance, dá-nos a sensação de que quer
aproveitar todo e qualquer pensamento seu. Há comentários um tanto ociosos
(“uma mancha de tinta espessa, como se a tinta atribuísse a si própria a
responsabilidade de tornar mais alto o tampo da mesa”); metáforas de gosto
duvidoso (“havia, pois, em Theodor, a sensação de limpeza na própria vida, como
uma empregada que tivesse acabado de tirar do lugar um móvel antigo que
impedia, há décadas, o movimento rápido dentro de casa”); e até pleonasmos
duplos (“uma espécie de azedume fixo permanecia constante”). Embora curto,
“Jerusalém”, ao menos na edição portuguesa que li, da editora Caminho, ganharia
com uma revisão mais rigorosa.