5.10.14

a vida nova


Não sei o que impressiona mais em César Aira, a prodigalidade de histórias ou a originalidade de estilo(s). São quase 70 livros de ficção, e aqueles que li (naturalmente, um percentual muito limitado do universo Aira) me pareceram não só imaginosos no limite do nonsense, mas também com estilos marcadamente diferentes. Já é difícil classificar o que Aira faz como gênero: ele mesmo diz que não escreve romances/novelas, mas “artefatos literários”, “poesia escrita como exercícios de prosa”. E dentro dessa enorme coleção de artefatos ou exercícios, o que menos há é repetição, homogeneidade.
Apesar da indefinição do objeto literário, em Aira convivem a imaginação vertiginosa e a precisão. O fabulista e o dicionarista. O devaneio e o método. Ele é capaz de inventar um personagem César Aira que quer controlar o mundo roubando o DNA de Carlos Fuentes, mas como a mosca que programou acaba picando a gravata e não a pele de Fuentes, clonam-se por engano gigantescos bichos da seda, que destroem a cidade de Caracas (“El congreso de literatura”). Esse mesmo Aira, o autor, não o personagem, é capaz de redigir mais de 600 verbetes sobre os mais diferentes escritores latino-americanos, com o rigor e a minúcia de um ourives-escrivão (“Diccionario de autores latinoamericanos”).
“La vida nueva” é a quinquagésima-sexta “novela” de Aira. Na verdade, não mais do que um parágrafo de 76 páginas narrado em primeira pessoa por um escritor que (como Aira) vive em Flores, arredores de Buenos Aires. Pode ser lido como uma brincadeira séria em torno de algumas idéias caras a Borges. As possibilidades do e no tempo. As bifurcações possíveis. Os futuros possiveis de um homem. A gratuidade dos eventos que nos levam a uma vida ou a outra. Não surpreende que o protagonista do livro, que nunca consegue lançar seu primeiro romance, desfie aqui e acolá anedotas sobre Borges, como a visita que teria feito à redação de uma revista para enfiar exemplares de seu primeiro livro nos bolsos dos casacos pendurados nos cabideiros.
As agruras do escritor inédito em “La vida nueva” são retratadas com tons surreais, buñuelescos, que parecem derivar mais de uma essência absurda da vida do que de contingências objetivas e materiais que atingem o personagem, até porque seu manuscrito goza de bom conceito entre seus leitores e de um editor disposto a publicá-lo (embora nunca capaz de fazê-lo, pelas razões mais diversas). A novela é sobretudo uma reflexão sobre a circularidade da vida, o eterno e gratuito retorno, o homem como Sísifo, sempre mais patético a cada volta. Aira esgarça e subverte o tempo da narrativa, transformando semanas em anos ou décadas, para realçar o absurdo e a gratuidade de cada gesto, de cada tentativa. O homem em geral sim, mas é sobretudo o escritor na sua particularidade quem carrega a pedra que nunca se fixa no alto.

“Nos despedimos con un “hasta pasado mañana”, que sonaba a una variación casi humorística del clásico “hasta mañana”. Lo llamé, efectivamente, pero no a los dos días sino mucho más tarde. Cuánto? Perdi la cuenta. Seis, siete años después. Quizás más. Pasaron tantas cosas, y a la vez parecía como si no pasara ninguna.”

As noções tradicionais de tempo não fariam sentido porque não há causalidade linear, relação clara entre o que supostamente seria causa e o que supostamente seria efeito. A graça da novela de Aira está nesta dupla transgressão do tempo e da racionalidade, em mais uma de suas críticas à verossimilhança como base do romance pós-século XIX, período que, segundo o autor, teria esgotado todas as possibilidades do romance realista. Aira chega a ser quase didático na voz de seu alter ego:

“Cada pequeño incidente de la sucesión (y ésta era una sucesión de incidentes y de nada más) venía provisto de causa y efecto, pero las causas y efectos, que por lo demás se estaban transformando unas en otros todo el tiempo, eran a su vez pequeños incidentes atorbellinados que partían en todas direcciones.”

Não é, no entanto, apenas o esgotamento de um modelo artístico que desautoriza a linearidade e a verossimilhança. A narrativa em “La vida nueva” desenrola-se em saltos e descontinuidades porque a memória e a identidade constroem-se dessa maneira. O protagonista de existência flácida é inseguro de seu passado e parcialmente inconsciente do seu presente porque é assim que a identidade individual se forma. Nunca de maneira exaustiva, contínua, homogênea no tempo, apesar da existência ininiterrupta no tempo. Isso é agravado quando se escreve, já que é preciso refabular a fábula que é a memória:

“Quizás era improcedente hablar de recuerdo y olvido cuando el objeto de la memoria era uno mismo: el recuerdo exigía una discontinuidad, y uno no había dejado de ser uno mismo desde su más remoto pasado, no había habido interrupción. (...) Con la vida de los escritores siempre se había fantasiado mucho, lo que a la larga debía de haber afantasmado un poco las vidas reales de los escritores reales, a tal punto que correspondía preguntarse si no sería todo una gran fantasía: vidas que no vivía nadie, ni siquiera los que vivían (lo que terminaba siendo otra contradicción.)”

Para além de uma alegoria sobre as dificuldades de publicação do escritor inédito, sobre a improvisação romântica de escritores e editores, “La vida nueva” é uma reflexão um tanto irônica, um tanto séria, sobre o desenrolar do tempo: o tempo na vida, com as escolhas e ciclos que marcam o indivíduo; o tempo na memória, com sua seletividade, seu ritmo, seu método; o tempo na literatura, com suas possibilidades menos ou mais inovadoras.