23.1.12

as mênades; ônibus


“Las ménades” (“As mênades”) é um conto de natureza fantástica de Cortázar. Como em “Circe” (outro de seus contos), o autor recorre à mitologia grega para dar título a uma história cujos personagens se comportam de maneira desviante, em que o limite do verossímil é ultrapassado por uma espécie de patologia do comportamento, que tende ao violento ou ao mórbido. No caso de “Circe”, os namorados de Delia Mañara morriam pelo estranho hábito de Delia de fabricar bombons morbidamente recheados.
Em “Las ménades”, um assíduo freqüentador de concertos vai ao teatro ouvir mais uma apresentação da orquestra da cidade, conduzida pelo dedicado maestro, que completa "bodas de prata" na regência. O programa, com Strauss, Debussy, Mendelssohn e Beethoven, parece adequado à “gente tranquila y bien dispuesta que prefiere lo malo conocido a lo bueno por conocer”, conforme comenta nosso melômano assumidamente resmungão. Em primeira pessoa, ele nos relatará o completo embevecimento da platéia a cada número apresentado, a comoção lacrimosa, a “fratenidad en la admiración que por un momento hace tan buenos a los seres humanos”: “de todas maneras, esos rostros rubicundos, esos cuellos transpirados, ese deseo latente de seguir aplaudiendo aunque fuera en el foyer o el médio de la calle, me hacían pensar en las influencias atmosféricas, la humedad o las manchas solares, cosas que suelen afectar los comportamientos humanos”.
O que parece um encantamento um pouquinho excessivo vai se revelando com o passar do concerto como a mais rematada loucura coletiva: “casi nadie oyó el primer grito porque fue ahogado y corto” (“quase ninguém ouviu o primeiro grito porque foi afogado e curto”). Dos gritos aqui e ali ao assédio físico e violento da turba ao maestro e aos músicos, será um processo em crescendo, que Cortázar revelará em doses progressivas, para espanto do narrador desiludido e dos leitores. A exemplo das mênades, musas impulsivas e violentas de Dioniso, a platéia enlouquece em sua paixão pelos músicos, intoxicada pela notas e pela figura do maestro. Restará aos músicos a tentativa de fuga, frustrada pela fúria gulosa dos espectadores.

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Se o fantástico é um dos elementos mais interessantes nos contos de Cortázar, outro muito freqüente em suas histórias – e muito próximo a este – é o surreal, onde se soma um elemento mais puramente onírico e de maior subversão do real.
Tome-se o conto “Omnibus” (“Ônibus”), que narra a curiosa viagem de ônibus por Buenos Aires de uma moça chamada Clara. Ela pega o 168 em Villa del Parque e quer ir a Retiro, perto da Recoleta, na Torre dos Ingleses, tendo de passar, no caminho, pelo cemitério de Chacaritas. Sobe, paga o seu bilhete inteiro (o que já causa estranheza, ao indicar que não descerá no cemitério), senta-se e é observada por todos os demais passageiros, com olhares de indiferença (“y la miró dulcemente como una vaca sobre un cerco”), desconfiança ou até mesmo hostilidade. Todos estão com flores nas mãos, flores dos mais diversos tipos. Só ela e um segundo passageiro desavisado, que sobe em seguida, não carregam flores. Depois que todos os outros descem em Chacaritas (“se alinearon las margaritas, los gladiolos, las calas”), o motorista parte a toda velocidade, avança e freia bruscamente, desrespeita sinais e guardas e se levanta do volante de tempos em tempos para tentar atacar Clara e seu companheiro sem flores, impedido sempre pelo bilheteiro. Clara e o rapaz se penitenciam de seus erros (“Si por lo menos me hubiera puesto unas violetas en la blusa”) e salvam-se saindo a toda carreira quando o ônibus pára no ponto certo. Mais tranqüilos, compram no florista da praça “dos ramos de pensamientos” e seguem caminhando, “cada uno llevaba su ramo, cada uno iba con el suyo y estaba contento.”
Cortázar faz, neste caso, a transição da dúvida e da incongruência iniciais ao absurdo mais rematado no final, com direito à bela imagem dos ramos de flores de pensamento. Dá-nos uma história surrealista com paisagem e personagens buenairenses, tão ao seu gosto. 

15.1.12

o jogo dos papéis


“O jogo dos papéis” (Il giuoco delle parti) é um peça de teatro filosófica e surrealista de Luigi Pirandello. Nela, um homem procura afastar-se de seus próprios sentimentos e agir conforme a vontade alheia, particularmente a de sua mulher. Sempre lhe diz sim e lhe dá liberdade total, não se importando que ela viva sozinha e tenha outros relacionamentos. Exasperada com o comportamento submisso do marido, ela o leva a aceitar um duelo com um hábil esgrimista. Na última hora, ele renuncia a seu papel de provedor das vontades alheias e consegue fazer com que não mais ele, mas o amante de sua mulher, assuma o desafio e o duelo. Livre, retorna ao vazio de sua vida.
Pirandello criou uma peça estranha e incômoda, que parte de duas idéias básicas, duas teses. A primeira é a de que não só é possível desligar-se dos desejos e sentimentos pessoais, encarnando um personagem à mercê dos desejos alheios; haveria mesmo certa sabedoria e autodefesa em abandonar o próprio ego: o personagem que representa esse budismo laico de Pirandello é Leone Gala, o marido. A segunda idéia é a de que a liberdade total é uma prisão quando concedida, já que o gesto de concessão da liberdade anula o seu caráter libertador, como demonstrado pelo comportamento da mulher de Leone, Silia.
Com base nessas hipóteses, Pirandello cria um conflito entre dois pólos inconciliáveis -- Leone e Silia, renúncia e liberdade, nada querer, tudo querer. O casal Gala é complementado pela figura do amante de Silia, Guido Venanzi, vítima da dupla justamente por não encontrar papel no jogo neurótico que eles constroem. O triângulo circula pela peça movido por diálogos pouco verossímeis, com um toque surrealista, e por uma trama fácil, um tanto tola, que vai da invasão de domicílio da esposa à obrigação de desafiar o invasor ao duelo. São situações e diálogos que não sustentam ou aprofundam a caracterização dos personagens, e o resultado é uma peça de alguma ousadia mas de pouca graça. “O jogo dos papéis” não chega, portanto, ao nível das melhores peças de Pirandello, como “Assim é se lhe parece” ou “Seis personagem à procura de um autor.”

8.1.12

tema do traidor e do herói


“Tema del traidor y del héroe” é o terceiro conto da seção “Artifícios”, de Ficciones, de Jorge Luis Borges. A exemplo de “La forma de la espada”, conto do mesmo livro, também fala de uma história de heroísmo e traição entre irlandeses revolucionários. É, no entanto, um conto mais sutil e sofisticado, porque desenvolve – com inteligência e delicadeza – a idéia de que a história pode imitar a literatura.
Ryan quer descobrir o mistério em torno da morte do avô, o herói irlandês Fergus Kilpatrick, que teria sido assassinado por um traidor em um teatro, em 1824, às vésperas da revolução com que tanto sonhou. Em sua pesquisa, Ryan vai revelando uma série de coincidências do crime com a história (o assassinato de Júlio César) e com a literatura (elementos de Macbeth). Descobre ao fim que a morte de Kilpatrick foi de fato tramada, mas não pelos inimigos da revolução, e sim pelos próprios revolucionários, já que Kilpatrick, o líder, era na verdade o traidor. Desmascarado e sentindo-se culpado, Kilpatrick aceita “atuar” em seu próprio assassinato, que é planejado com base em Shakespeare (não só “Macbeth”, mas também “Julius Cesar”) e executado com precisão, como se fosse a morte não de um traidor, mas de um herói. A revelação de sua traição seria um golpe à causa e aos demais revolucionários; já sua morte heróica daria impulso à revolução.
O conto é muito inventivo, econômico (nada sobra) e ainda termina de modo genial:

“En la obra de Nolan (o verdadeiro herói, que desmascara Kilpatrick e com ele planeja sua morte gloriosa), los pasajes imitados de Shakespeare son los menos dramáticos; Ryan sospecha que el autor los intercaló para que una persona, en el porvenir, diera con la verdade. Comprende que el también forma parte de la trama de Nolan... Al cabo de tenaces cavilaciones, resuelve silenciar el descubrimiento. Publica un libro dedicado a la gloria del héroe; tal vez eso, también, estaba previsto.”

Não deixa de ser irônico que Borges diga que os executores do crime tenham utilizado as partes menos dramáticas das duas peças de Shakespeare. Borges não esconde sua relação de amor e ódio com o bardo, que ele julgava ser, em espírito, muito mais italiano e judeu do que propriamente inglês, pelo seu amor do drama e da hipérbole. Como disse Borges numa entrevista à Paris Review, um tanto ciumento e injusto com Shakespeare,

“He was very bombastic. (...) Even in such a famous phrase as Hamlet’s last words, I think: “The rest is silence.” There is something phony about it; it’s meant to impress. I don’t think anybody would say anything like that.”
(Ele era muito bombástico. (...) Mesmo numa frase famosa, como a das últimas palavras de Hamlet, creio que “O resto é silêncio”. Há algo de falso, de impostura nisso; foi feita para impressionar. Não acho que alguém diria algo assim.)